Plinio Corrêa de Oliveira

 

Sou Católico: posso ser contra a reforma agrária?

 

Ed. Vera Cruz - Fevereiro de 1981

Secção I – Perigosas distinções sobre os tipos de propriedade em que mal se disfarça a influência marxista

TEXTO DO IPT

2 . Terra de exploração e terra de trabalho

82 . Essa mensagem de Deus está viva na mente de grande número de nossos trabalhadores rurais. Os posseiros a expressam quando lutam pela “posse e uso” de sua terra, mais do que pela “propriedade”. Esta, a propriedade, em muitos casos, é representada por grileiros, pelos grandes fazendeiros, pelas empresas agropecuárias e agroindustriais. Estas “negociam com a terra”: um bem dado por Deus a todos os homens.

COMENTÁRIO

O presente tópico parte de um fato real. Muitas vezes os ocupantes de terras abandonadas reivindicam a posse destas e não a propriedade. Trata-se, o mais das vezes, de gente simples, de instrução elementar, se tanto... Falam de “posse” porque têm a vaga noção de que não são proprietários. Ademais, em interlocução com pessoas gradas da respectiva zona – prefeitos, delegados de polícia, advogados, oficiais de justiça ou particulares – vêem-se qualificados de “posseiros”. Repetem pois a qualificação maquinalmente. E só. Nem vai mais longe o pobre discernimento deles.

O IPT manipula esse modismo da linguagem popular, transformando-o em argumento para suas teses: se os ocupantes das terras se mostram satisfeitos com o qualificativo de posseiros, é porque sabem que a posse (a qual inclui, de fato, a gestão e a administração) é para eles o elemento mais útil da propriedade. De forma que se reputam explicavelmente mais senhores da terra do que se fossem dela proprietários sem posse [1].

Argumentar com base em pequenos malabarismos verbais como este é o que se qualifica em francês “faire flèche de tout bois” (fazer flecha com toda e qualquer madeira, por menos que esta se preste a tal).

Essa hipotética inversão dos elementos constitutivos do direito de propriedade, o IPT a qualifica com grandiloquencia mística ou poética, de “mensagem de Deus ... viva na mente de grande número de nossos trabalhadores rurais”.

O IPT parece deduzir dessa “mensagem viva” uma conseqüência considerável: a posse da terra é sempre de quem a trabalha, ainda que o faça por conta do proprietário. O que de nenhum modo se coaduna com o conceito jurídico de posse. Mas certamente com a concepção marxista de trabalho.

E essa posse do trabalhador, ou gestor, constituiria o elemento mais substancioso e respeitável – senão a mesma substância – do direito de propriedade. Do que se deduziria que, no trabalho do assalariado, este é o dono legítimo da terra, e não o proprietário.

TEXTO DO IPT

83 . Esta consciência do povo nos alerta para a distinção entre os dois tipos de apropriação da terra que, merecem nossa atenção: terra de exploração, que nosso lavrador chama terra de negócio, e terra de trabalho. Essa distinção, entretanto, não desconhece a existência da terra como terra de produção, da propriedade rural que respeita o direito dos trabalhadores, segundo as exigências da doutrina social da Igreja.

COMENTÁRIO

As considerações feitas a propósito do tópico 82 tornam inteiramente explicável a distinção que o IPT faz entre “terra de trabalho” e “terra de exploração” (ou “terra de negócio”), com o peculiar alcance que atribui a essa distinção. Ou seja, entre o proprietário que trabalha a terra, de um lado, e, de outro lado, o que não a trabalha:

a)    porque a deixa inculta para valorizar;

b)    porque a loca, ou

c)     porque, de qualquer outro modo, aufere lucros ou vantagens dela – embora à distância – por meio de prepostos.

Quaisquer dos que locam a terra a terceiros não teriam a verdadeira propriedade sobre ela. No fundo, como se verá, e em que pese a ressalva do período final do presente tópico, o proprietário que não trabalha a terra seria um explorador: qualificação muito próxima, ou até idêntica, à de sanguessuga.

Com vistas à planejada Reforma Agrária, esta distinção de capital importância (e de sabor marxista, pois pressupõe que a terra é só de quem a trabalha) deveria ser perfeitamente definida pelo IPT. Tal definição pressuporia, por sua vez, a de dois outros conceitos, isto é, o de “trabalho” e o de “exploração”.

a ) “Trabalho”, para o IPT designa tão-somente o trabalho do lavrador-proprietário, no qual a faixa de importância do labor manual normalmente absorve ou excede de muito a do labor mental? Ou inclui também o trabalho do proprietário que reside em sua terra e a cultiva por meio de assalariados, fazendo-se ajudar, na direção dela, por dirigentes de segunda plana, como administrador e fiscais, e eventualmente também por auxiliares técnicos, como contador, engenheiro agrônomo, veterinário etc.? Mais precisamente, segundo o IPT, só é trabalho o manual? A tese é pejada de conotações marxistas... Ou o IPT reconhece a parte de inegável importância que, no processo global da produção agrícola ou pecuária, cabe ao proprietário e aos técnicos, dirigentes e fiscais do trabalho manual? Em caso afirmativo, isto é, desde que o IPT reconheça toda a importância do trabalho não manual, não se vê o que, na específica perspectiva dele, caracteriza a “terra de exploração”.

Suponha-se um proprietário (pessoa física ou jurídica) que cultive intensamente sua terra, mas o faz por meio de técnicos, administradores, gerentes etc. Ele próprio, embora acompanhando-lhes assiduamente o processo de produção, controlando-os, dirigindo-os etc., nela não reside (o que aliás, em qualquer caso, é deplorável do ponto de vista humano). Pela mera ausência do dono, a terra passa da categoria (com a qual o IPT simpatiza) de “terra de trabalho” para a de “terra de negócio”, ou “terra de exploração” (com a qual o IPT antipatiza)? E no caso de pertencer a terra a uma pessoa jurídica, como se efetivaria tal residência na sede?

Se o proprietário faz produzir intensamente sua fazenda, e concorre para tal com o seu próprio trabalho (diretivo, e não manual), por que motivo essa terra não pode ser qualificada “terra de trabalho”? Mais uma vez: o que é “trabalho”?

b ) Mas – poderia alegar alguém – as expressões “terra de trabalho” e “terra de negócio” têm significados bem definidos no vocabulário corrente: “de trabalho” é a terra cultivada, trabalhada; “de negócio” é a terra não trabalhada, que o proprietário ocioso, ou ocupado com outros afazeres, deixa inaproveitada, para lucrar tão-só com a valorização que essa possa ter. – O que há nisto de censurável? Por que substituir por um rótulo novo (“terra de exploração”) uma expressão corrente (“terra de negócio”)?

É fácil notar que, ao contrário da linguagem corrente, o IPT é infenso à “terra de negócio”. Passando por cima da linguagem popular e baseado na “mensagem de Deus ... viva na memória de grande número de trabalhadores rurais” (no. 82), ele inventa para a “terra de negócio” um rótulo depreciativo, chamando-a “terra de exploração”.

De fato, esse rótulo assume facilmente uma conotação pejorativa, pois em nosso idioma a palavra “exploração” tem sentidos diversos. Por exemplo, explorar uma terra pode significar fazê-la produzir, o que é uma operação honesta. Pelo contrário, explorar uma pessoa é induzi-la por engano ou forçá-la por qualquer meio de pressão, a aceitar um negócio que a ela é prejudicial. Quanto à “terra de exploração”, o sentido da palavra fica dependendo portanto de saber quem é o explorado, se a terra, se o trabalhador. A se referir ao trabalhador manual a palavra “exploração”, a conseqüência seria que, segundo o IPT, todo tipo de propriedade que não fosse de dimensões familiares seria desonesto. Afirmação que, aliás, se harmonizaria facilmente com a linha geral de pensamento do IPT, eivada de influência marxista.

Aliás, a definição de “terra de exploração”, feita no tópico seguinte, não deixa nenhuma dúvida a esse respeito.

* * *

À primeira vista, a unilateralidade do IPT, várias vezes aqui apontada, encontraria no período final do presente tópico uma atenuante. Mas o conceito que aí se introduz é tão desprovido de afinidade com o contexto geral do IPT, que se seria propenso a considerar incrustado neste para despistamento doutrinário.

Ou seja, para atuar ex machina, como defesa contra objeções eventuais que – com sobras de razão – o IPT parece recear.

Na realidade, a introdução do novo conceito em nada favorece o IPT. Pelo contrário, a confusão dessa pluralidade de “terras” – “terra de exploração”, “terra de trabalho” – ainda é agravada com a menção à “terra de produção”.

Segundo o sentido normal das palavras, a designação se aplica genericamente a toda terra capaz de produzir. Ou, mais especificamente, a toda terra que efetivamente produz. É, pois, inteiramente arbitrário que o IPT reserve essa rotulação só para aquela, dentre as terras de produção, que “respeita o direito dos trabalhadores, segundo as exigências da doutrina social da Igreja”.

Se pelo menos o IPT reservasse esse qualificativo para as terras que respeitam os direitos de ambas as partes habitualmente empenhadas no esforço da produção rural, isto é, o proprietário e os trabalhadores! Dir-se-ia então – ainda que com alguma impropriedade – que “terra de produção” é aquela que é cultivada segundo a doutrina social da Igreja. O rótulo seria arbitrário, mas o conteúdo dele faria sentido, máxime em um documento da CNBB. Não, porém. Basta que sejam respeitados os direitos de uma das partes, isto é “dos trabalhadores, segundo as exigências da doutrina social da Igreja”. Quanto ao direito dos proprietários, também assegurado pela “doutrina social da Igreja”, dele se desinteressa o IPT.

* * *

Sobre este ponto, cabe ainda uma observação.

À primeira vista, as palavras “doutrina social da Igreja” parecem aludir ao conjunto de todos os documentos eclesiásticos sobre a matéria, a partir, por exemplo, da célebre Encíclica Rerum Novarum de Leão XIII, de 1891.

Na realidade, porém, em vários tópicos o IPT destoa dessa doutrina. De onde se conclui que, ou ele a ignora, ou então dá por “superados”, revogados e como que não escritos, vários ensinamentos tradicionais da Igreja nessa matéria.

Caso o IPT ignore a doutrina social da Igreja, sua definição de “terra de produção” se esvazia.

Caso ele dê por sem efeito alguns ensinamentos tradicionais da Igreja sobre a matéria social (o que seria de todo em todo arbitrário e inaceitável por um católico) importa perguntar qual é – segundo o IPT – a presente doutrina social da Igreja.

Os responsáveis pelo IPT não poderiam deixar de responder que essa doutrina é... a que o mesmo IPT ensina.

Neste caso, a definição de “terra de produção” seria a seguinte: “propriedade rural que respeita o direito dos trabalhadores segundo as exigências do presente documento”.

Em qualquer das perspectivas postas por estas inarredáveis alternativas, o conceito de “terra de produção” acaba sendo de nenhum peso, quer no seu texto, quer no contexto em que se insere. E deixa intactos os conceitos de “terra de trabalho” e de “terra de exploração”, fortemente impregnados de sabor marxista.[2]

TEXTO DO IPT

84 . Terra de exploração é a terra de que o capital se apropria para crescer continuamente, para gerar sempre novos e crescentes lucros. O lucro pode vir tanto da exploração do trabalho daqueles que perderam a terra e seus instrumentos de trabalho, ou que nunca tiveram acesso  a eles, quanto da especulação, que permite o enriquecimento de alguns à custa de toda a sociedade.

COMENTÁRIO

Todas as considerações feitas a propósito do tópico anterior se agravam com o fato de que o conceito pejorativo de “exploração” está inteiramente enunciado no presente tópico.

O proprietário que não trabalha manualmente a terra e nela não reside, aparece apresentado aí abstrativamente como “o capital” que visa dois fins encarados como danosos:

a)    crescer continuamente”;

b)    gerar sempre novos e crescentes lucros”.

Não se vê o que isso tenha de intrinsecamente ilícito ou danoso. Todo proprietário tende (e deve tender) a tirar de sua terra produtos “crescentes” em quantidade e qualidade. E o faz para auferir proventos “crescentes”... com vantagem concomitante para o bem comum.

O IPT parece atribuir, por sua vez, à palavra “lucro”, não o sentido equivalente a provento líquido da produção, mas outro. “Lucro” seria, segundo ele, a porcentagem espúria que tocaria ao capital por uma participação nos proventos, sob a alegação antinatural e injusta de que ele é também um fator de produção. Quando o único fator de produção clara e insofismavelmente reconhecido pelo IPT é o trabalho. Assim, os proventos deveriam ser só do trabalho. O que quer dizer, em última análise, que o capital é ilegítimo.

Para o IPT há “lucro” quando há “exploração do trabalho daqueles que perderam a terra e seus instrumentos de trabalho”. Ou, ainda, quando há “exploração” dos “que nunca tiveram acesso” à terra ou aos ditos instrumentos. Ou, por fim, quando há “especulação, que permite o enriquecimento de alguns à custa de toda a sociedade”.

Exploração do trabalhador, especulação anti-social, eis o que caracteriza a “terra de exploração”. Ora, este sentido de “lucro” é arbitrariamente adotado pelo IPT, e não corresponde ao da linguagem corrente... mas ao da doutrina marxista.

Tudo isto, que parece assemelhar de modo alarmante a doutrina do IPT com a doutrina comunista, torna ainda mais premente a necessidade de uma definição clara da CNBB sobre as várias perguntas há pouco feitas relativamente aos conceitos de “trabalho” e de “trabalhador” (cfr. Comentário ao no. 83). Na falta do que, o IPT não deixa grande dúvida a respeito de seu pendor de favorecer a propriedade de dimensões familiares, com prejuízo das propriedades grandes e médias. Obviamente porque nega a propriedade em si mesma, e só reconhece como fonte de enriquecimento legítimo o trabalho.

* * *

Não é possível passar adiante sem formular, entretanto, ainda uma pergunta a respeito do tópico 84. A “especulação” que acarrete o “enriquecimento de alguns à custa de toda a sociedade” é obviamente nociva, do ponto de vista social, como também toda a concentração fundiária tal, que a terra esteja em mão de um número exíguo de proprietários grandes e médios. Porém, ainda aqui o IPT emprega uma palavra corrente como “especulação” em um sentido arbitrariamente restritivo.

Especular em imóveis pode ser, por exemplo, comprar para vender com lucro. Ou comprar sem o intuito imediato de plantar, mas para constituir, com suas economias, um fundo de reserva destinado a garantir o futuro do proprietário e de seus herdeiros. Ou, ainda, para revender o imóvel quando estiver valorizado. Estas operações são lícitas, segundo a doutrina católica?

Por vezes, investimentos imobiliários que não importam imediatamente em plantio nem em pastoreio podem até favorecer o bem comum. O “especulador” que compra uma terra inculta e a revende loteada a terceiros, pode atrair com isto riquezas e trabalho para o lugar. Neste sentido, ele participa, como fator indireto mas autêntico, do aproveitamento efetivo da terra. O investidor que aplica em terras suas economias, não com o intuito de cultivar, mas como fundo de reserva para si e sua família, tem, segundo todos os moralistas, um verdadeiro direito à valorização que o povoamento progressivo acarrete para sua propriedade, como arcará também com os eventuais prejuízos de uma estagnação ou retrocesso econômico.

Como todas as atividades ou aplicações essencialmente legítimas, também estas podem ser acidentalmente ilegítimas. Por exemplo, quando a manutenção da terra inculta lesa ponderavelmente o bem comum. Ou quando o loteamento é feito segundo preços que lesam quer o comprador – freqüentemente rústico – da gleba rural, quer os compradores dos lotes menores, próximos aos centros urbanos.

Mas estas eventualidades não justificam o enfoque evidentemente unilateral e carregado de antipatia, com que o IPT se refere à “especulação”. Com efeito, segundo já foi dito, esta última palavra comporta, além de seu óbvio sentido pejorativo, outro não pejorativo, que o IPT omite arbitrariamente. E com tal omissão, focalizando toda especulação como má, o IPT coloca em posição desfavorável todo especulador honesto. O que redunda, por sua vez, em mais um fator de cerceamento da legítima liberdade do proprietário rural.

O IPT contraria, pois, o sentir de todos os moralistas católicos tradicionais, ao afirmar sumariamente que o proprietário beneficiado pela valorização de suas terras se locupleta com um lucro lesivo a todo o corpo social. É notório que, em todos os tempos, e sem oposição da Igreja, os proprietários se reputaram, em inteira tranqüilidade de consciência, donos da accessio de valor de seus imóveis.

Assim como, segundo o direito, “res perit domino” (a coisa perece por conta do dono), do mesmo modo “res fructificat domino” (os frutos de uma coisa pertencem ao seu dono), o que se entende do acréscimo decorrente do curso natural das coisas, sem a colaboração do trabalho humano.

* * *

Em suma, o IPT tende a subestimar, cercear, desdourar, tolher, negar tudo quanto na vida do campo resulta do direito de propriedade. E a só admitir como legítimo – enquanto só apresenta como digno de proteção da Igreja e do Estado – o fator trabalho. E, ao que parece, trabalho manual. Impostação evidentemente marxista, que por sua vez conduz à luta de classes.

TEXTO DO IPT

85 . Terra de trabalho é a terra possuída por quem nela trabalha. Não é terra para explorar os outros nem para especular. Em nosso país, a concepção de terra de trabalho aparece fortemente no direito popular de propriedade familiar, tribal, comunitária, e no da posse. Essas formas de propriedade, alternativas a exploração capitalista, abrem claramente um amplo caminho, que viabiliza o trabalho comunitário, até em áreas extensas, e a utilização de uma tecnologia adequada, tornando dispensável a exploração do trabalho alheio.

COMENTÁRIO

O IPT é coerente consigo quando, ao prorromper em louvores à “terra de trabalho”, menciona, com uma complacência visível, as várias modalidades de propriedade não capitalista: a “propriedade familiar”, a “tribal”, a “comunitária”, e a mera “posse” do não proprietário. E, a essa altura, os louvores se transformam em programa: essas “formas de propriedade, alternativas à exploração capitalista, abrem claramente um amplo caminho, que viabiliza o trabalho COMUNITÁRIO ... tornando dispensável a EXPLORAÇÃO do trabalho alheio” (destaques do autor). Da propriedade individual à propriedade comunitária, eis a trajetória que o IPT deseja para a agricultura brasileira.

Qual é, entretanto, no pensamento do IPT, o verdadeiro sentido do adjetivo “comunitário”? A esse respeito, o IPT se mostra pouco claro. Pois ele procura explicar o sentido de “propriedade comunitária” pelo conceito de “trabalho comunitário”. Porém não explica o que seja este último. Na vasta gama de significados que medeia entre comum e comunismo, onde precisamente situa o IPT o seu conceito de comunitarismo? Questão capital, que o IPT deixa flutuando no ar.

De qualquer forma, é notória a propensão do documento a que o território brasileiro seja, por assim dizer, “tribalizado”, e o salariado, extinto. Com que fundamento nos documentos tradicionais do Supremo Magistério pleiteia ele tão imensa transformação? Ele não o diz! Cooperativas e famílias, tribos e grupos comunitários de índios, de mestiços ou de brancos, eis as modalidades de organização rural que o IPT aplaude.

O IPT afirma que essa transformação “viabiliza o trabalho comunitário, até em áreas extensas, e a utilização de  uma tecnologia adequada”. Em que experiência se funda ele para isso? Onde, no Brasil ou fora do Brasil, há provas dessa “viabilidade”, não neste ou naquele caso, mas para todo o território de uma nação? Talvez nos kolkhozes? Sempre omisso em provar, o IPT silencia a esse respeito.

É porém digno de nota que, mesmo neste contexto laudatório, as esperanças de resultados práticos, enunciadas pelo IPT, são modestas. Ele se limita a afirmar a mera “viabilidade” do sistema, e sua simples capacidade de utilizar “até [!] em áreas extensas” (a exclamação é do autor), “uma tecnologia adequada”. Tudo somado, a única afirmação do IPT sobre os frutos concretos do regime que ele tanto quer implantar, consiste em que tal regime... pode funcionar! Menos não se pode prometer [3].

Ora, no caso concreto, o IPT não pede apenas a instauração de um regime novo, mas a supressão de um regime antigo. Uma tal reforma só poderia ser pleiteada em virtude da comparação entre um regime e outro. Entre o atual, portanto, cuja produção está tão acima do mero funcionar, e o outro, do qual só se espera que funcione.

Inadvertidamente, o próprio IPT faz a comparação!

À vista desta constatação, impõe-se a pergunta: é realmente o bem de toda a coletividade, ou pelo menos o da classe dos trabalhadores manuais, que o IPT visa? Ou quer ele tão-só a aplicação, com um teorismo implacável, de princípios igualitários abstratos, inspirados aparentemente na doutrina da Igreja e no zelo pelos menos afortunados?

TEXTO DO IPT

86 . Há no país uma clara oposição entre dois tipos de regimes de propriedade: de um lado, o regime que leva o conflito aos lavradores e trabalhadores rurais, que é a propriedade capitalista; de outro, aqueles regimes alternativos de propriedade, mencionados antes, que estão sendo destruídos ou mutilados pelo capital: o da propriedade familiar, como a dos pequenos lavradores do sul e de outras regiões; o da posse, no qual a terra é concebida como propriedade de todos e cujos frutos pertencem à família que nela trabalha, regime difundido em todo o país e sobretudo na chamada Amazônia Legal; a propriedade tribal e comunitária dos povos indígenas e de algumas comunidades rurais.

COMENTÁRIO

O que entende o IPT por “propriedade capitalista”? Toda propriedade que não é de dimensões familiares, ou não tem caráter tribal nem comunitário, é necessariamente capitalista?

Está aí outro ponto essencial, em que o IPT se manifesta estranhamente omisso. Ele se põe simplesmente em atitude de subestima ou de rejeição a todas as formas de propriedade que não se identifiquem com essas de sua preferência metafísica!

TEXTO DO IPT

87 . É oportuna a advertência de João XXIII: “Não é possível estabelecer, a priori, qual a estrutura que mais convém à empresa agrícola, dada a variedade dos meios rurais no interior de cada país e, mais ainda, entre os diversos países do mundo. Contudo, quando se tem um conceito humano e cristão do homem e da família, não se pode deixar de considerar como ideal a empresa que funciona como comunidade de pessoas: então as relações, entre os seus membros e estruturas, correspondem às normas da justiça (...). De modo particular, deve considerar-se como ideal a empresa de dimensões familiares. Nem se pode deixar de trabalhar para que uma e outra cheguem a ser realidade, de acordo com as condições ambientais” (Mater et Magistra, no. 139).

88 . No caso de pequenos e médios produtores, fica evidente que muitos são involuntariamente transformados em instrumentos de exploração de seus semelhantes, através da subordinação de sua produção aos interesses das grandes empresas que exercem um controle crescente, direto e indireto, sobre a economia agropecuária e que são as beneficiárias em última instância do seu trabalho e da  riqueza extraída da terra.

COMENTÁRIO

Aflora mais claramente no presente tópico do que em outros, uma lacuna do IPT, a qual projeta efeitos deformantes sobre todo o panorama por ele traçado acerca do problema fundiário.

Lido com atenção corrente, o tópico dá a impressão de que, no panorama agrofundiário brasileiro, só existem:

a)    os “pequenos e médios produtores”;

b)    as grandes empresas que ... são as beneficiárias em última instância do seu trabalho [isto é, do trabalho dos pequenos e médios proprietários]”.

É normal que, ante esse quadro, as simpatias do leitor se voltem para os “pequenos e médios produtores” e sua antipatia para “as grandes empresas” apontadas como sanguessugas. Tomada esta posição, o leitor passa adiante, julgando ter entendido bem a conclusão a que o longo período de 61 palavras conduz.

A realidade não é tão simples quanto o IPT descreve.

Onde há produtores tidos por médios, há necessariamente produtores tidos por grandes. Pois, por definição, o médio é eqüidistante entre o grande e o pequeno. E se não houvesse produtores grandes, os maiores dentre os médios seriam inevitavelmente qualificados de grandes.

Ora, o tópico se abstém de qualquer referência aos grandes produtores. De que maneira?

Ao tratar das “grandes empresas”, ele confunde – numa designação genérica e ambígua – entidades especificamente diversas. Pois o leitor fica sem saber se essas “grandes empresas” são rurais, ou tão-só comerciais, e portanto urbanas. Pois é explicável que sejam urbanas as empresas que organizam a compra em larga escala, da produção rural, e lucram manipulando os preços desta.

A que conduz mais esta confusão? A grande propriedade rural recebe críticas que, fundadas só no fato de ser ela grande, não são justas, mas que não raras vezes são merecidas pela grande empresa intermediária.

Ao denunciar o mal, o tópico não lhe indica com precisão a freqüência: “MUITOS são involuntariamente transformados ...” (destaque do autor). – “Muitos”? Quantos? – Pergunta-se. Que dados estatísticos há sobre esta matéria? Em temas como este, o adjetivo “muitos” é dos mais resvaladios. Por exemplo: se se diz que em uma cidade há muitos roubos, a afirmação implica a existência de um índice mais ou menos corrente e normal da incidência desse crime em várias cidades congêneres. É em função de tal padrão que a palavra muitos toma sentido. Em função de que padrão é freqüente a irregularidade, aliás altamente reprovável, denunciada pelo IPT? Este se mostra vago a tal respeito.

De outro lado, muitos não eqüivale a todos. Se o “controle crescente, direto e indireto, sobre a economia agropecuária” atinge a “muitos” produtores, ipso facto não atinge a todos. Não é fácil explicar como, então, as tais “grandes empresas” exercem uma como que tutela global sobre a “riqueza extraída da terra”. Dir-se-á que foi objetivo do IPT dizer, no presente tópico, que as exceções que escapam a esse controle são tão raras, que a produção, tomada como um todo, está sujeita ao tal controle artificial e injusto. Mas, para que esta assertiva fosse verdadeira, seria preciso que quase todos os “pequenos e médios produtores” (e não apenas “muitos” deles) fossem “transformados em instrumento de exploração” etc. O que é notoriamente inverídico.

* * *

O leitor talvez se pergunte qual a utilidade desse destrinçamento, palavra por palavra, do sentido do presente tópico.

Como adiante se verá, é pela importância intrínseca da matéria nele tratada. Convém entretanto registrar desde logo a importância que este tópico apresenta sob um ponto de vista que lhe é de algum modo extrínseco (isto é, referente à sua linguagem e ao seu método de exposição). Com efeito, aflora com particular nitidez no presente tópico uma técnica de exposição que contribui ponderavelmente para a força de penetração das teses e das insinuações do IPT. Consiste ela no uso freqüente de ambigüidades, de generalizações vagas, de contradições mais ou menos implícitas, de omissões destras, tudo operado em passagens essenciais, por assim dizer incrustadas em um contexto simples e claro. Assim, o leitor tem diante dos olhos um panorama que nem é inteiramente falso, nem inteiramente verdadeiro.

Desse modo, imaginando ter entendido tudo com clareza, o leitor pode ser conduzido a conclusões das quais ele mesmo não tem o controle.

A análise do significado preciso, por assim dizer de cada palavra do texto, nos ajuda a perceber a cada passo o alcance dessa técnica.

* * *

Na realidade, as propriedades rurais no Brasil não podem ser classificadas simplesmente, como pequenas, médias e grandes. Há que mencionar também as supergrandes: à maneira da classificação que se faz hoje das potências, no panorama internacional.

As propriedades pequenas são as de dimensões familiares, ou pouco mais. Elas comportam a colaboração eventual de dois ou três assalariados. Em geral, o pequeno proprietário e sua família trabalham com as próprias mãos, ainda quando tenham assalariados.

Nas propriedades médias, o trabalho manual costuma estar a cargo de assalariados, alguns estáveis, outros temporários. Pode ocorrer, em certas situações, que o proprietário ajude um pouco o trabalho manual. Mas, em qualquer caso, sua principal atividade consiste na direção da empresa, nas atividades de compra e venda que o andamento desta comporta, nos contatos com as repartições fiscais e com a complicada e exigente máquina burocrática do País. Não é raro que o proprietário médio exerça alguma outra profissão no centro urbano próximo: professor, advogado, médico, veterinário etc. Seus filhos habitam em geral a cidade durante o ano letivo, para estudar e conquistar diplomas secundários ou universitários.

O grande proprietário, que sempre cultiva sua terra por meio de trabalhadores manuais assalariados, vive – em função de sua propriedade rural, bem como dos centros urbanos médios e grandes – uma vida que, guardadas as proporções, é análoga à do proprietário médio.

Cumpre acrescentar que, freqüentemente, o regime de salariado, costumeiro em nossas fazendas, é conjugado com a parceria ou meação.

Tal quadro geral resulta, em considerável parte, do princípio consignado na legislação brasileira, e aceito como pressuposto indiscutível pela opinião pública, de que na família cabe a cada filho um quinhão igual ao dos demais, na herança paterna. Assim, cada casal que morre deixa os filhos em situação econômica sensivelmente inferior à sua própria, o que produz nos padrões sociais em que viverão os filhos, efeitos fáceis de imaginar.

A aversão social a qualquer forma de decadência, é, no homem, um reflexo do instinto de conservação. Cada qual cuida habitualmente de sua situação sócio-econômica com esmero análogo ao que dedica ao cuidado de seu próprio corpo. Ele procura, para esse corpo, a saúde, o bem-estar, a aparência correta e digna. Não só, portanto, o esse, isto é, o existir,  mas ainda o bene esse,  isto é, o conforto. E deseja correlatamente, para sua situação social, estabilidade, largueza, possibilidade de promoção etc.

Diante da perspectiva de que a herança rural paterna não lhes bastará para se manterem exatamente no nível dos pais, ao qual estão afeitos, os filhos – até mesmo dos grandes proprietários com prole numerosa – tendem a abraçar profissões complementares à agricultura, quando não a abandonar inteiramente o campo.

Muito diversa é a situação dos proprietários supergrandes. Ao contrário dos grandes, são o mais das vezes pessoas jurídicas (freqüentemente sociedades anônimas). O próprio da pessoa jurídica consiste em poder atrair capitais que excedem de muito o vulto normal do patrimônio do grande agricultor. Pela própria natureza das coisas, as relações das pessoas jurídicas com os assalariados são impessoais, “mecânicas” e frias. A magnitude dos investimentos feitos pelas supergrandes lhes permite mecanizar em grau tão intenso a cultura, que chegam a aplicar só em máquinas muito mais do que o valor global de uma propriedade normalmente tida por grande.

Esse fato leva ao anonimato nas relações entre o proprietário supergrande e o trabalhador, ao minguamento do papel dos trabalhadores manuais e conseqüente desemprego destes (desde que não se trate de mão-de-obra qualificada), e à valorização de técnicos – pequenos ou médios burgueses – responsáveis pela conservação e aproveitamento integral das máquinas.

O agricultor supergrande muitas vezes não se distingue de modo claro do comerciante. Pois, ou vende ele próprio seus produtos no mercado, a ponto de atingir direta ou quase diretamente o consumidor, ou por vezes admite o intermediário como acionista. Mas também ele próprio é sócio da empresa do intermediário. Sem dúvida, o proprietário meramente grande não tem poder econômico para tanto. E o mais das vezes não passa de produtor.

Quando o proprietário supergrande (e também o muito grande) é pessoa física, e não jurídica, os efeitos da sucessão hereditária podem ser outros. Pois não é raro que a propriedade muito grande ou a suprergrande contenha áreas ainda inexploradas, que possibilitem aos herdeiros aplicar seu trabalho integralmente na agricultura, e evitar, pelo aproveitamento de tais áreas, a diminuição do padrão sócio-econômico a que estão habituados. De outro lado, tais propriedades proporcionam de ordinário meios suficientes para que os herdeiros possam aplicar, de imediato, os mais modernos recursos para fazer render com crescente intensidade as áreas já exploradas. O que não só os absorve a todos na vida rural, como lhes permite também a cobiçada manutenção do padrão sócio-econômico.

* * *

Quem lê o tópico 88 – como tantos outros do IPT – é levado a confundir o proprietário grande com o supergrande. E a aceitar subconscientemente como válidas para os grandes, as críticas que o IPT faz, não raras vezes com razão, aos supergrandes.

Ora, sucede que o número de supergrandes é muito menor do que o das grandes, na escala das propriedades fundiárias brasileiras. De onde ter o IPT por efeito – em virtude de suas próprias incorreções de linguagem e de exposição – atingir de fato, e sistematicamente, as propriedades grandes.

Cumpre acrescentar que o IPT faz às propriedades supergrandes críticas por vezes exageradas e vagas. É oportuno um exemplo. O IPT se refere, com louvável inconformidade, às manipulaões de preços de produtos agropecuários, operadas por intermediários (nos. 43 a 46). Essas manipulações frustram muitas vezes o produtor mal pago e exaurem a economia do consumidor [4]. Mas o IPT omite de mencionar outro fator que pesa duramente sobre as populações rurais e urbanas: é a intervenção do Poder público na fixação dos preços da produção agropecuária. Tal intervenção múltipla, assídua, caprichosa, tantas vezes sem rumo definido, flutua ao sabor de superiores conveniências econômicas e financeiras do Estado. Conjuga-se ela por vezes com determinados interesses industriais e cambiais privados, aliás não raras vezes vantajosos para o bem comum. De todo este intrincado entrelaçamento só podem ter noção cabal uns poucos superempresários e super técnicos, e nunca ou quase nunca o agricultor, ainda que grande.

Essa política de preços produz sobre o mercado os efeitos mais variados, e dá origem a especulações (no pior sentido da palavra) de bolsa, contra as quais em geral só as empresas supergrandes podem defender-se. Pois só elas dispõem dos departamentos de estudo especializados, dos serviços de informação e dos técnicos que permitem prever metodicamente as mudanças de política de preços antes mesmo que estas sejam dadas ao público.

Em conseqüência, tudo isso forma um emaranhado de interesses políticos, bancários, industriais, comerciais, nos quais também se misturam – e nem sempre como a parte mais forte – produtores rurais supergrandes.

Não é necessário insistir sobre os inconvenientes tão óbvios dessa situação, a qual pode exercer influência sobre o próprio Poder público.

Entretanto, da atuação deste último, na específica linha de fatos da qual aqui se fala, pouco ou nada diz o IPT, quando, pelo contrário, tem sido tantas vezes fator importante do quadro de anomalias contra a qual o mesmo IPT investe.

Por que tal omissão? Como explicá-la dentro da lógica do IPT?

Não é difícil.

A animadversão do IPT vai toda ela para a propriedade privada, máxime quando é individual. E, portanto, as suas simpatias tendem para a coletivização da economia. Ora, como denunciar a ação deletéria do Poder público, quando é precisamente em benefício dele que a coletivização se opera?

TEXTO DO IPT

89 . Cumpre distinguir entre propriedade capitalista da terra e propriedade privada da terra. Enquanto a primeira é utilizada como instrumento de exploração do trabalho alheio, a segunda é usada como instrumento de trabalho do próprio trabalhador e de sua família, ou cultivada pelo proprietário com mão-de-obra assalariada, tendo função social e respeitando os direitos fundamentais do trabalhador. “A propriedade particular ou algum domínio sobre os bens exteriores conferem a cada um o espaço absolutamente necessário à autonomia pessoal e familiar; devem ser considerados como um prolongamento da liberdade humana” (Gaudium et Spes, no. 71).

COMENTÁRIO

A hostilidade do IPT em relação à propriedade privada parece flagrantemente desmentida pela primeira frase do presente tópico, a qual distingue a “propriedade privada da terra” – mencionada com evidente simpatia – da “propriedade capitalista da terra”, mencionada, pelo contrário, com antipatia óbvia.

Qual o sentido e o fundamento dessa distinção? O IPT nada diz de preciso a tal respeito.

As frases seguintes criam, com efeito, sensível ambigüidade acerca do direito de propriedade. O que desinfla as esperanças que a frase inicial despertara.

O que caracteriza a terra capitalista é: a “exploração do trabalho alheio”. Ou seja, do trabalho que não é o do próprio dono. Já se viu (cfr. Comentário aos nos. 83, 84 e 85) toda a ambigüidade do IPT a respeito do conceito de trabalho e o caráter exploratório que ele tende a conferir ao salariado, considerado “trabalho alheio”. Assim, a distinção entre “propriedade capitalista” e “propriedade privada” parece esfumaçar-se.

Considere-se agora a definição de “propriedade privada”: é aquela “cultivada pelo proprietário COM mão-de-obra assalariada” (destaque do autor). O que quer dizer isto, ao certo? Dentro da ótica peculiar do IPT, o que é cultivar? É trabalhar a terra com as próprias mãos? Ou é dirigir, sem a participação manual, o trabalho dos assalariados? A pergunta é de capital importância para conhecer que tipo de estrutura rural o IPT visa implantar.

Com efeito, se “cultivar” a terra significa principal ou exclusivamente trabalhar a terra manualmente (segundo a doutrina marxista, só o trabalho confere direito ao fruto da terra), o IPT admite apenas as propriedades pequenas, e as médias tão pequenas que quase se confundam com estas. O que, em termos de Doutrina Católica, é inadmissível.

Se, pelo contrário, “cultivar” significa também dirigir o trabalho manual sem participar dele, o IPT comporta uma aceitação efetiva da propriedade pequena, média ou grande. Porém, não da propriedade supergrande, o que se pode conceber em termos de Doutrina Católica, feitas as necessárias precisões e ressalvas.

Aceitação efetiva, foi dito há pouco. Porém não sem desconfiança. O IPT, ao falar da propriedade não familiar, lembra a justo título que ela deve desempenhar uma “função social” e respeitar “os direitos fundamentais do trabalhador”. Nada mais justo.

Contudo, por que relembrar essas exigências só no tocante às propriedades em que trabalham assalariados? Por que não acentuar que a pequena propriedade também possa se tornar injusta e faltar à sua função social a mesmo título? Quando, por exemplo, os proprietários – cônscios de que jamais poderão possuir mais do que seu alvéolo na estrutura rural, e privados portanto da estimulante esperança de enriquecer – trabalham a terra molemente, e com o intuito único de suprir às necessidades suas ou dos seus? Ou, ainda, quando a pequena propriedade se pulveriza tanto, que não comporta um cultivo em escala plenamente rentável, a ponto de, por vezes, nem sequer atender às necessidades elementares do minifundiário e de sua família?

Função social, o direito de propriedade a tem. Porém – como já foi dito – não só ele. Pois até o direito à vida tem função social, que os jovens exercem com sacrifício de seu sangue, quando são convocados para o campo de batalha. Não é explicável que o IPT pareça ignorar isto, e só em relação ao direito de propriedade lhe ocorra falar em função social. Como se este fosse um direito diminutae rationis e intrinsecamente propenso a voltar-se contra o bem comum.

Ademais, aqui ainda o IPT fala de respeito aos “direitos fundamentais do trabalhador”. E por que também não pede o mesmo para os direitos do proprietário?

Por fim, não é explicável que o IPT nada diga da função social do trabalho: função entretanto de grande alcance em várias situações, como greves de trabalhadores rurais na época das colheitas etc.

* * *

A estes vários fatores de perplexidade cabe acrescentar mais um. O IPT, no mesmo tópico 89, qualifica a terra de “instrumento de trabalho”: designação estranha, que subverte todo o conceito de propriedade. A terra é, por certo, um fator de produção. Porém não precisamente um instrumento de trabalho. Pois instrumento é o apetrecho de que se serve alguém para tornar mais forte ou mais ágil sua ação sobre algo. Não é porém aquilo sobre o qual tal ação se exerce.

Assim, o anzol ou a rede são instrumentos de trabalho do pescador. O mar e os peixes, pelo contrário, não são para ele instrumentos de trabalho, mas algo sobre o que seu trabalho se exerce.

Em outros termos, o direito de propriedade tem por objeto a coisa. Quando o homem se apropria de uma res nullius (coisa de ninguém), adquire sobre esta coisa o direito de propriedade. É o que acontecia, por exemplo, com algum navegante que chegasse outrora a uma ilha inabitada.

Ao qualificar a propriedade como instrumento de trabalho, o IPT parece fazer da propriedade uma mera derivação do direito do homem ao fruto de seu trabalho. O que restringe sensivelmente o âmbito e o próprio sentido do direito de propriedade.

Por certo, o trabalho pode ser uma das fontes do direito de propriedade. Porém de maneira nenhuma é a única fonte dele. Negá-lo importaria em negar a apropriação da coisa perdida ou abandonada, a herança, a doação, todos os modos de aquisição, enfim, nos quais o trabalho não tenha entrado.

Ou seja, como há pouco foi dito, importaria em reduzir o fundamento da propriedade ao trabalho. O que de nenhum modo é consoante com a Doutrina Católica (cfr. Textos Pontifícios ao fim desta Secção).

* * *

... instrumento de trabalho do próprio trabalhador e de sua família”. – A posição do IPT face à pequena propriedade de dimensões familiares, trabalhada pelo proprietário e por sua família com o auxílio eventual de um ou outro trabalhador contratado, salta aos olhos na leitura de todo o documento, em particular no presente tópico. O IPT a reputa, não só uma forma de propriedade ideal em seus aspectos sociais, cuja implantação é desejável sempre que congruente com os direitos constituídos de terceiros, e com a natureza da terra e da lavoura (e além disto não vai a Gaudium et Spes) mas como uma forma de propriedade absolutamente desejável, quer do ponto de vista social quer do econômico, para os 8,5 milhões de quilômetros quadrados de nosso tão variegado País-continente. Na perspectiva do IPT, em regime de propriedade privada, só a propriedade de dimensões familiares é inteiramente justa, só ela não cria problemas sócio-econômicos. Só ela, enfim, constitui a plenitude da normalidade na vida do campo.

A força desta impostação se faz notar especialmente à vista dos traços pronunciadamente marxistas que constituem parte saliente da própria contextura do IPT.

Com efeito, a redução de toda a estrutura agrária a uma galáxia de pequenas propriedades familiares, interligadas entre si por cooperativas rurais (sem as quais elas não podem levar a efeito os grandes investimentos financeiros inerentes à mecanização da lavoura), fica a um passo do regime soviético dos kolkhozes. Passo que qualquer disposição legislativa – referente, por exemplo, à autoridade “coordenadora” das cooperativas sobre as minipropriedades, e do Estado sobre as cooperativas – poderá facilmente transpor.

Assim, a meta última e ideal apresentada pelo IPT a seus leitores (segundo a qual ele se empenha em formar a mentalidade destes) está a dois passos do comunismo agrário, se tanto.

* * *

Parece em certa contradição com este aspecto óbvio do IPT o fato de que o documento não rejeita de modo inteiramente explícito a grande e a média propriedade.

Sempre que em um texto se faz notar uma contradição, a boa exegese procura encontrar a linha de pensamento segundo a qual esses elementos contraditórios se conciliam no espírito do texto.

Assente a posição do IPT sobre a pequena propriedade de dimensões familiares, é natural que o leitor influenciado pelo espírito do documento tenda a desejar que a parcela ainda não cultivada do território nacional seja dividida em minipropriedades de dimensões familiares.

Na parte do território já cultivada, é concebível, dentro desta lógica, que ele aceite (talvez pro bono pacis) a sobrevivência de propriedades médias e grandes. Mas essa aceitação tem, na lógica do IPT, as características da resignação.

Pois enquanto, segundo o utopismo do IPT, só a propriedade de dimensões familiares realiza idealmente a justiça e a paz social, porque “a terra é de quem a trabalha”, a média e a grande propriedade têm pelo menos algo de injusto. Por esta razão, e também porque – segundo o panorama do IPT, configurado na perspectiva da luta de classes – o empregador é suposto sempre de ter os impulsos da ave de rapina, em relação ao empregado.

Daí naturalmente – sempre segundo a perspectiva do IPT – a multiplicação crescente das “tensões sociais” na vida do campo. Tensões essas cuja solução é cronicamente o fracionamento da terra em propriedades familiares segundo a legislação agrária vigente, cuja aplicação efetiva o IPT aceita como alternativa viável (cfr. no. 99) [5].

Para criar tais “tensões”, agravá-las e levá-las ao paroxismo, bem se sabe quanto atuam no Brasil, por toda parte onde conseguem instalar-se, as conhecidas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

Assim, a “resignação” do IPT em relação à grande e à média propriedade tem muito de inautêntico e de precário.

De inautêntico, pois as esperanças utópicas na pequena propriedade familiar, sopradas pelo IPT (e pelos pronunciamentos congêneres que o antecederam e sucederam), não podem deixar de induzir, mais cedo ou mais tarde, ao desejo do fracionamento rural os trabalhadores das grandes e médias propriedades atuais, de suscitar, em favor desses fracionamentos, condutores de massas sedentos de popularidade, de criar no campo um clima psicológico “conscientizado” e irrequieto, favorável às reivindicações das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs); em suma à “nicaraguação” do País, tão desejada por importantes elementos de nossa “esquerda católica” [6].

A “aceitação” da grande e da média propriedade pelo IPT é portanto, além de inautêntica, fundamentalmente precária. Ela sujeita essas formas de propriedade, assim “aceitas”, a um deperecimento a fogo lento.

Lento? Não conterá este adjetivo certo otimismo? À vista da ênfase agro-reformista do IPT, quantas razões há para que essa “lentidão” se desenvolva segundo a lei da gravitação universal de Newton: isto é, que a divisão das propriedades se dê com um ímpeto que esteja na razão direta de seu tamanho, e na razão inversa do quadrado da distância que as separa da coletivização final. O que, tudo, deixa ver com quanto empenho o IPT empurra o País rumo a uma sociedade igualitária no campo, como aliás também na cidade.

TEXTO DO IPT

90 . Não pretendemos, com as distinções acima, trazer uma formulação jurídica com a precisão técnica que os textos de lei devem ter. Queremos, antes, indicar quais os valores positivos que se incluem no direito de propriedade privada e quais os contra-valores que foram introduzidos pela ganância opressora dos poderosos. Confiamos à objetividade dos juristas a missão de encontrar fórmulas jurídicas adequadas para a defesa do direito de acesso à propriedade da terra para aqueles que efetivamente querem cultivá-la de modo produtivo.

COMENTÁRIO

Quem redigiu o IPT parece ter sentido bem o quanto abre o flanco a críticas, com todas as suas imprecisões, sempre propícias à esquerda. De onde ter então procurado alguma escapatória para elas. Aqui estaria uma.

Por certo, ninguém pode pedir a um documento de Moral Social precisões de técnica jurídica especializada.

Mas a Moral tem suas próprias precisões, mais nobres e por isso mesmo mais subtis do que as do próprio Direito positivo, o qual dela deriva.

Outrossim, como os princípios da Moral são também os do Direito, o verdadeiro moralista sabe tratar sua matéria sem contundir com a terminologia jurídica indispensável para a formulação dos grandes princípios de ordem legal.

O tópico 90 em nada justifica as graves ambigüidades e omissões do IPT. E também em nada as remedeia.

TEXTO DO IPT

91 . “A terra é uma dádiva de Deus”. Ela é um bem natural que pertence a todos e não um produto do trabalho. Mas, é o trabalho sobretudo que legitima a posse da terra. É o que entendem os posseiros quando se concedem o direito de abrir suas posses em terras livres, desocupadas e não trabalhadas, pois entendem que a terra é um patrimônio comum e que enquanto trabalharem nela, não poderão ser expulsos.

COMENTÁRIO

É o trabalho SOBRETUDO que legitima a POSSE da terra” ... (destaques do autor).

A frase traz à mente o princípio marxista segundo o qual o principal fator de produção é o trabalho manual. Propriedade sobre a terra não há. Cessado o trabalho, cessa o direito do trabalhador sobre a terra.

Não se sabe se, segundo o IPT, esse princípio se refere ao direito de propriedade ou à posse. E – caso se refira também à propriedade – cabe perguntar se qualquer terra desocupada escapa ao direito do proprietário pelo próprio fato da desocupação.

A essa pergunta, o IPT impõe que se responda afirmativamente. Pois sentencia a liceidade de qualquer pessoa sem terra “conceder-se” o “direito de abrir suas posses em terras livres, desocupadas e NÃO TRABALHADAS” (destaque do autor).

O que quer dizer aí “livres”? Terras que são, por assim dizer, propriedade de ninguém (res nullius)? Em tese não as há. Pois toda terra que não esteja sob domínio privado é devoluta, e como tal pertence ao Estado.

Note-se de passagem quanto é estranho que o IPT autorize e até incite qualquer um a que penetre em terras “livres” e ali se instale sem nenhum título legal nem autorização judicial. Contra o dono das terras – o particular ou o Estado – cada um pode assim ser juiz em causa própria! Aqui, o IPT se mostra não só marxista, como subversivo, pois incita à transgressão das leis civis e penais, isto é, ao roubo da terra.

Se o IPT entendeu consagrar o princípio clássico da Moral católica, segundo o qual a propriedade da terra não depende do cultivo dela, nem da ocupação habitual (cfr. Textos Pontifícios ao fim da Secção H), não o poderia ter feito de modo mais obscuro e mais próprio a ser interpretado por qualquer leitor em sentido precisamente contrário. Com as vantagens obviamente daí decorrentes para a demagogia, a subversão e a luta de classes.

Note-se, por exemplo, a função da palavra “sobretudo”, na frase aqui comentada.

Se é o trabalho que “sobretudo” legitima a posse, parece que, segundo o IPT, há outros fatores que – embora em plano inferior – também a legitimam. Quais são eles? Escorregadio, o IPT nada diz a respeito. E passa a expor as conclusões concretas que tira do princípio posto. Ora, estas conseqüências são tais que negam implicitamente a existência de outra fonte do direito de propriedade que não o trabalho: “os posseiros ... entendem que a terra é um patrimônio comum e que enquanto trabalharem nela, não poderão ser expulsos”. Portanto, segundo o IPT, a presença do trabalhador na terra abandonada dá-lhe direito sobre ela. E esse direito cessa, se a deixa de trabalhar o posseiro [7].

TEXTO DO IPT

92 . Importa, enfim, não esquecer a terra de moradia, problema particularmente angustioso nas periferias urbanas, onde as famílias são obrigadas a viver em condições desumanas de promiscuidade e insegurança, e de onde, muitas vezes, são expulsas, até com violências, para se atenderem interesses das empresas imobiliárias ou por razões de urbanização.

93 . Essa expulsão da terra de moradia se apresenta mais injusta e desumana, porque as famílias ficam expostas ao total desabrigo e abandono.

Textos Pontifícios

Títulos legítimos de aquisição da propriedade e o problema da justa distribuição das riquezas

A instituição da família acarreta a hereditariedade dos bens

Encíclica Rerum Novarum de 15 de maio de 1981

“A natureza não impõe somente ao pai de família o dever sagrado de alimentar e sustentar seus filhos: vai mais longe. Como os filhos refletem a fisionomia de seu pai e são uma espécie de prolongamento da sua pessoa, a natureza inspira-lhe o cuidado do seu futuro e a criação dum patrimônio que os ajude a defender-se, na perigosa jornada da vida, contra todas as surpresas da má fortuna. Mas esse patrimônio poderá ele criá-lo sem a aquisição e a posse de bens permanentes e produtivos que possa transmitir-lhe por via de herança?

[Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, fasc. 2, 6ª ed., 1961, p. 9]. – Leão XIII

Inviolabilidade do direito de propriedade e do direito de herança

Encíclica Quadragesimo Anno de 15 de maio de 1931:

“Devem sempre permanecer intactos o direito natural de propriedade e o que tem o proprietário de legar os seus bens”.

[Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, fasc. 3, 5ª ed., 1959, p. 20]. – Pio XI

Títulos legítimos de aquisição da propriedade são a ocupação das coisas sem dono e a indústria, que aumenta o valor da coisa

Encíclica Quadragesimo Anno de 15 de maio de 1931:

“Títulos de aquisição do domínio são a ocupação de coisas sem dono, a indústria ou a chamada especificação, como o demonstram abundantemente a tradição de todos os séculos e a doutrina do Nosso Predecessor Leão XIII. De fato, não faz injustiça a ninguém, por mais que alguns digam o contrário, quem se apodera de uma coisa abandonada ou sem dono; de outra parte a indústria que alguém exerce em nome próprio, e com a qual as coisas se transformam ou aumentam de valor, dá-lhe direito sobre os produtos do seu trabalho”.

[Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, fasc. 3, 5ª ed., 1959, pp. 21-22]. – Pio XI

É lícito aos abastados que se enriqueçam justa e devidamente

Encíclica Quadragesimo Anno de 15 de maio de 1931:

“Nem é vedado aos que se empregam na produção aumentar justa e devidamente a sua fortuna; antes, a Igreja ensina que é justo que quem serve a sociedade e lhe aumenta os bens se enriqueça também desses mesmos bens conforme a sua condição, contanto que se faça com o respeito devido à lei de Deus e salvos os direitos do próximo, e os bens se empreguem segundo os princípios da fé e da reta razão”.

[Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, fasc. 3, 5ª ed., 1959, p. 51]. – Pio XI.

A lei natural requer que o trabalho esteja aliado ao capital

Encíclica Quadragesimo Anno de 15 de maio de 1931:

“Exige, porém, a lei natural, ou a vontade de Deus por ela promulgada, que se mantenha a devida ordem na aplicação dos bens naturais aos usos humanos: ora semelhante ordem consiste em ter cada coisa o seu dono. Daqui vem que, a não ser que alguém trabalhe no que é seu, deverão aliar-se as forças de uns com as coisas dos outros; pois que umas sem as outras nada produzem. Isto precisamente tinha em vista Leão XIII, quando escrevia: ‘de nada vale o capital sem o trabalho, nem o trabalho sem o capital’ (Encíclica Rerum Novarum, § 28). Por conseguinte, é inteiramente falso atribuir, ou só ao capital ou só ao trabalho, o produto do concurso de ambos; e é injustíssimo que um deles, negando a eficácia do outro, se arrogue a si todos os frutos”.

[Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, fasc. 3, 5ª ed., 1959, p. 22-23]. – Pio XI.

O regime do salariado é conforme à justiça

Encíclica Quadragesimo Anno de 15 de maio de 1931:

“Os que dizem ser de sua natureza injusto o contrato de trabalho e pretendem substituí-lo por um contrato de sociedade, dizem um absurdo e caluniam malignamente o Nosso Predecessor que na encíclica Rerum Novarum não só admite a legitimidade do salário, mas procura regulá-lo segundo as leis da justiça”.

[Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, fasc. 3, 5ª ed., 1959, p. 27]. – Pio XI

A justiça não exige a participação do operário na propriedade e na gestão da empresa

Radiomensagem de 14 de setembro de 1952 ao Katholikentag de Viena:

Por isso a doutrina social católica se pronuncia, entre outras questões, tão conscientemente pelo direito de propriedade individual. Aqui estão também os motivos profundos por que os Papas das Encíclicas sociais, e Nós mesmo, Nos recusamos a deduzir, quer direta, quer indiretamente, da natureza do contrato de trabalho o direito de copropriedade do operário no capital da empresa e, consequentemente, seu direito de codireção. Importava negar tal direito, pois por trás dele se enuncia um problema maior. O direito do indivíduo e da família à propriedade é uma conseqüência imediata da essência da pessoa, um direito da dignidade pessoal, um direito onerado, é verdade, por deveres sociais; não é porém exclusivamente uma função social”.

[Discorsi e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII, vol. XIV, p. 314] – Pio XII.

Não é lícito abolir a propriedade particular por meio de impostos excessivos

Encíclica Rerum Novarum de 15 de maio de 1891:

“Condição indispensável para que todas essas vantagens se convertam em realidade é que a propriedade particular não seja esgotada por um excesso de encargos e de impostos. Não é das leis humanas, mas da natureza, que emana o direito de propriedade individual; a autoridade pública não o pode pois abolir; o que ela pode é regular-lhe o uso e conciliá-lo com o bem comum. É por isso que ela obra contra a justiça e contra a humanidade quando, sob o nome de impostos, sobrecarrega desmedidamente os bens dos particulares”.

[Documentos Pontifícios, Vozes, Petrópolis, fasc. 2, 6ª ed., 1961, p. 30]. – Leão XIII.

A propriedade privada não pode ser substituída por um sistema de seguros ou garantias legais de direito público

Discurso de 20 de maio de 1948 no Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado:

“Estas reflexões [relativas à tendência de regular as relações entre os homens unicamente na base do direito público] valem acima de tudo nas questões de direito privado relativas à propriedade. Este é o ponto central, o foco ao redor do qual, por força das coisas, gravitam os vossos trabalhos. O reconhecimento deste direito está seguro ou desmorona como reconhecimento dos direitos e dos deveres imprescritíveis, inseparavelmente inerentes à personalidade livre, recebida de Deus. Somente quem recusa ao homem esta dignidade de pessoa livre pode admitir a possibilidade de substituir o direito de propriedade privada (e, consequentemente, a propriedade privada em si mesma), por não se sabe que sistema de seguros ou garantias legais de direito público”.

[Discorsi e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII, vol X, p. 92] – Pio XII.

Destaques em negrito e subtítulos do autor  



[1] O direito de propriedade é antes de tudo um direito de domínio, isto é, segundo o Código Civil Brasileiro (art. 524), o “direito de usar, gozar e dispor” (jus utendi, fruendi et abutendi). Sempre que, bem entendido, o exercício de tal direito não lese o bem comum.

O poder de gestão e de administração não é senão um dos elementos do direito de propriedade.

O Pe. FERDINAND CAVALLERA, professor do Instituto Católico de Toulouse, assim explana o direito de propriedade:

“A propriedade se define: o direito de dispor sem entraves de um bem material, nos limites da lei. De onde:

a)      ela não pode pertencer senão a uma pessoa, única capaz de ser sujeito de um direito;

b)      ela comporta, como se dizia, jus utendi et abutendi, quer dizer, o direito de usar e de consumir (não o de abusar, como se traduzia erradamente);

c)      este direito é pleno, exclusivo de toda ingerência humana: a pessoa não depende senão de Deus no uso deste direito, ao menos no que concerne à justiça comutativa;

d)      nos limites da lei.

A definição sendo geral, visa aqui tanto a lei natural, como a lei positiva divina ou humana; quer dizer, há restrições impostas pela própria natureza das coisas, as exigências do bem social ou de interesses maiores... Ninguém pode apropriar-se dos bens necessários, como o ar, a água, os caminhos; há a expropriação por razão de utilidade publica, mediante compensação justa; há o caso de extrema necessidade, no qual se deve preservar a vida do próximo, renunciando a seu próprio bem...” (Précis de la Doctrine Sociale Catholique, Action Populaire – Editions Spes, Paris, 1937, pp. 161-162).  

[2] Não estranha, pois, o elogio que o órgão comunista “Voz da Unidade” (no. 1, 30 de março a 5 de abril de 1980) faz do IPT, notadamente à distinção entre os conceitos de terra de exploração e terra de trabalho, os quais qualifica como sendo “úteis e fáceis de serem assimilados pelos camponeses num trabalho de conscientização”.

Et pour cause...

[3] A incompatibilidade natural entre produção abundante e distribuição igualitária foi posta ao alcance de todo observador em uma formulação espirituosa, mas igualmente lúcida e precisa, por VICTOR HUGO, o controvertido romancista francês do século passado: “O comunismo e a lei agrária pretendem ter encontrado solução para o segundo problema [a distribuição da riqueza]. Eles, porém, se enganam. A distribuição que propõem mata a produção. A distribuição igualitária extingue a emulação. E consequentemente o trabalho. É uma partilha feita pelo açougueiro, que mata aquilo que divide. É pois impossível aceitar essas pretensas soluções. Matar a riqueza não é distribuí-la” (Les misérables, Garnier Flammarion, Paris, 1967, tomo II, pp. 369-370).

[4] Sobre esse tema ver também Título II, Posso e devo ser contra a Reforma Agrária – Considerações econômicas, Cap. III, 2, A, c.

[5] O art. 15 do Estatuto da Terra diz expressamente: “A implantação da Reforma Agrária em terras particulares será feita em caráter prioritário, quando se tratar de zonas críticas ou de tensão social”.

[6] Cfr. “Catolicismo”, no. 355-356, julho-agosto de 1980.

[7] O lema “A terra para os que a trabalham” é caro aos revolucionários. SANTIAGO CARRILO, o bem conhecido secretário-geral do Partido Comunista Espanhol, o comentou nestes termos: “Em outubro de 1917, Lênin conseguiu concretizar a aliança dos operários com a maioria dos camponeses proclamando: ‘A terra para os que a trabalham’. Foi o slogan decisivo que permitiu aos bolcheviques tomar o poder” (Mañana España, Colección Ebro, Paris, 1975, p. 225). Ainda que, por meio de interpretações benévolas, se procure matizar muito o sentido do lema, ele se encaixa como uma luva no contexto do IPT, com inequívoco significado que lhe dá o lider comunista ibérico.

 


 Atrás   Índice   Adiante

Página principal