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Plinio Corrêa de Oliveira
Sou Católico: posso ser contra a reforma agrária?
Ed. Vera Cruz - Fevereiro de 1981 |
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Secção H – A manipulação da doutrina católica
sobre direito de propriedade
TEXTO DO IPT
II – Fundamentação
doutrinal 1 . A terra é um
dom de Deus a todos os homens 56 . Nesta parte
doutrinal, na qual procuramos descobrir os critérios para discernir
nossas opções pastorais a partir da realidade acima descrita, é claro
que não pretendemos elaborar um tratado exaustivo de toda a mensagem bíblica
e doutrinal da tradição cristã que a Igreja recebeu, enriqueceu e
fielmente conservou para nós. Queremos apenas lembrar alguns temas,
explicitar algumas idéias, que nos possam ajudar a compreender o problema
da posse e uso da terra numa visão cristã, socialmente justa e mais
fraterna. COMENTÁRIO “Nesta parte
doutrinal, na qual PROCURAMOS descobrir os critérios para discernir
nossas opções pastorais ...” (destaque do autor). – Estas palavras
parecem indicar que, na presente “fundamentação doutrinal”, o IPT não
se atribui a si próprio o caráter magisterial. Ele se apresenta como uma
tentativa – “procuramos” – algum tanto árdua e incerta, para
“descobrir” simples “critérios”. Critérios para quê? Para a ação
imediata? Ainda não. Para algo que, por sua vez, também parece pelo
menos um tanto árduo e incerto, e em todo caso é bastante confuso:
“discernir nossas opções pastorais”. O sentido e o tom são bem
diversos dos que convêm a um ato do magistério. Também nisto o IPT
desconcerta. Pois, conforme já foi dito, o título específico segundo o
qual aos Bispos toca entrar na questão fundiária como nas de
desenvolvimento econômico, é o aspecto “doutrinal” que todas
apresentam. E logo aí o IPT se apresenta hesitante. Ele que, em matérias
especificamente temporais, se mostra tão desinibidamente afirmativo! Ademais, se o IPT é
tão tacteante no que concerne à doutrina a partir da qual proclama justa
e necessária a Reforma Agrária, como pode ele ser tão categórico ao
proclamar justa a dita reforma? * * * “ ...
a partir da realidade acima descrita”. – Fica aqui
explicitamente afirmado que todo julgamento de valor emitido pelo IPT tem
como pressuposto a existência de uma situação... acerca da qual este não
se deu, aliás, ao trabalho de provar que a descreve com objetividade. Porém – curioso
contraste, que cumpre notar mais uma vez – o IPT, tão hesitante na
doutrina que está em sua alçada ensinar, é absolutamente categórico na
descrição dos fatos! * * * “Não pretendemos
elaborar um tratado exaustivo de TODA a mensagem bíblica e doutrinal da
tradição cristã...” (destaque do autor). – Não se poderia pedir
tal ao IPT. Nem sequer de uma Encíclica se poderia esperar que abrangesse
conteúdo tão opulento e tão amplo. Sem embargo, a ordem
natural das coisas pede que haja harmonia de proporções entre a importância
de uma tese, e o valor de suas fundamentações. O IPT pede a Reforma Agrária
(cfr. no. 99), promete para breve um pronunciamento em matéria fundiária
urbana (cfr. no. 4), reivindica uma séria remodelação do processo de
desenvolvimento sócio-econômico do País (cfr. nos. 32 a 47).
Dificilmente poderia ele sustentar, em matéria sócio-econômica, teses
mais amplas, ou formular reivindicações mais graves. À vista disto,
parece absolutamente escasso (para não dizer esquivo), que o IPT,
precisamente em sua parte doutrinária, se omita de apresentar um aspecto
geral da doutrina social da Igreja, complementado pelo menos por fartas e
numerosas citações de documentos do Magistério Supremo. E que,
precisamente em matéria de doutrina – não é demais salientar – a
CNBB queira “apenas lembrar alguns temas, explicitar algumas idéias...” TEXTO DO IPT
57 . É claro também
que os textos aos quais nos referimos foram formulados em contextos
sociais, culturais e religiosos diferentes daquele em que vivemos hoje. Não
queremos cair no simplismo de tirar conclusões infundadas a partir de
transposições meramente literais. Para além da letra dos textos,
queremos chegar ao espírito que os anima, à grande mensagem religiosa
que eles nos transmitem e que, na sua pureza e simplicidade é facilmente
compreendida pelos puros e simples de coração. COMENTÁRIO Ao ler este tópico,
não se pode fugir à impressão de que o IPT simplifica por demais sua própria
tarefa, no que diz respeito à exegese dos textos que pretende citar: a)
É justo que o IPT ponha em realce a necessidade de evitar “transposições
meramente literais” desses textos. Mas os estudiosos de nosso tempo não
se podem dispensar de outro cuidado. Isto é, de evitar o que se poderia
chamar a “fluidificação” da letra dos textos e a hipertrofia na
valorização dos contextos sócio-econômicos respectivos. Pois estes são
efeitos facilmente decorrentes do olvido de que a letra é portadora autêntica
do espírito, e contém um substrato que nenhuma modificação de contexto
pode alterar. Este cuidado, o IPT não o manifesta. b)
O leitor tem a impressão de que, cônscio de sua pobreza doutrinária,
o IPT espera entretanto desculpar-se alegando que “a grande mensagem
religiosa” de tais textos “na sua pureza e simplicidade é facilmente
compreendida pelos puros e simples de coração”. Como se os “puros e
simples de coração” não tivessem necessidade de ter um conhecimento
da doutrina da Igreja proporcionado à sua capacidade intelectual. Ou
ainda como se o Magistério da Igreja visasse tão-só conservar na pureza
e na simplicidade os que possuem essas virtudes, desinteressando-se de
atrair também para a verdade aqueles que, no cipoal dos problemas
pessoais e coletivos de nossa época, procuram, carregados de erros e de vícios,
alguma réstia de luz que lhes indique o bom caminho. TEXTO DO IPT
58 . A Igreja, na
sua doutrina social, tratou muitas vezes do problema da propriedade e,
explicitamente, da propriedade da terra. 59 . Essa doutrina,
a Igreja não a formulou apenas em resposta aos desafios que o problema
levanta em nossa sociedade, mas também em consonância com uma longa
tradição que tem suas raízes na Bíblia, na mensagem de Jesus, no
pensamento dos Santos Padres e Doutores. Com amor e fidelidade, ela
meditou nestes textos e deles soube extrair as suas implicações sociais
para a sociedade em que vivemos. 60 . Deus é o
criador e soberano Senhor de tudo. “Sim, o grande Deus é o Senhor, o
grande Rei, maior que os deuses todos; em suas mãos está a terra
inteira, dos vales aos cimos das montanhas; dele é o mar, foi Ele quem o
fez e a terra firme suas mãos modelaram” (Sl 94). 61 . Como criador e
Senhor, é Deus que tem poder de definir o uso e a destinação da terra.
Desde o início Ele a entregou aos homens para que a submetessem e dela
tirassem o seu sustento (Gn 1, 23-30). 62 . Formulando hoje
sua doutrina social, a Igreja conserva a lembrança das severas advertências
dos Profetas de Israel, que denunciavam a iniqüidade dos que usavam a
terra como instrumento de espoliação e opressão dos pobres e dos
humildes. Não se esquece do desígnio de Deus de que a terra devia ser o
suporte material da vida de uma comunidade fraterna e serviçal. 63 . Mas é
especialmente nos ensinamentos de Jesus que ela vai procurar as fontes de
sua doutrina social. 64 . Jesus, o Filho
de Deus, inaugura a Nova Aliança e constitui o novo povo de Deus e a nova
fraternidade pela participação em sua vida divina. Ele nos reconcilia
com o Pai, realiza a libertação total da escravidão do pecado e nos faz
a todos herdeiros de Deus e seus co-herdeiros. 65 . Todo o Novo
Testamento, a Nova Aliança de Deus com seus filhos, irmãos de Jesus, nos
orienta no sentido da partilha e da prática da justiça na distribuição
dos bens materiais, como condição necessária da fraternidade dos filhos
do mesmo Pai, conforme o ensinamento do Sermão da Montanha (Mt 5; 6; 7).
A conversão sincera encontra logo a expressão do gesto do dom e do
restabelecimento da justiça, tão bem retratada no episódio de Zaqueu (Lc
19, 1 ss.). O apego exagerado aos bens materiais, a recusa a reparti-los
com os pobres, podem significar uma barreira para o seguimento radical ao
Senhor (Mt 19, 16 ss.). 66 . O ideal evangélico
a ser atingido, a prefiguração na terra do reino definitivo, quando Deus
será tudo em todos, é a construção de uma sociedade fraterna, fundada
na justiça e no amor. Para o Evangelho, os bens materiais não devem ser
causa de separação, de egoísmo e de pecado, mas de comunhão e de
realização de cada pessoa na comunidade dos filhos de Deus. 67 . A Igreja tem
presente a experiência da primitiva comunidade de Jerusalém, quando a
fraternidade em Cristo, vencendo as barreiras do egoísmo, exprimia-se em
gestos de partilha: “Todos os fiéis tinham tudo em comum; vendiam suas
propriedades e seus bens e dividiam-nos por todos segundo a necessidade de
cada um” (At 2, 44-45). 68 . Na elaboração
de sua doutrina, a Igreja, hoje, procura aprender da experiência dos
Santos Padres Antigos, que procuravam traduzir, para as suas sociedades,
as lições da Sagrada Escritura. Ela ouve ainda o eco das expressões de
grande vigor com que eles também denunciavam a iniqüidade dos poderosos. 69 . “Foi a
avareza que repartiu os pretensos direitos de posse” (Sto. Ambrósio,
P.L. Vol. 42, Coluna 1046). “A terra foi dada a todos e não apenas aos
ricos” (Sto. Ambrósio, Apud Populorum Progressio, no. 23, De Nabuthe,
C. 12, no. 53 P.L. 14, 747). COMENTÁRIO Dos Padres da
Igreja, o IPT só cita Santo Ambrósio. E para isto escolhe precisamente
dois textos acerca do direito de propriedade que se têm prestado à
confusão. Ademais, das explicações tradicionais sobre o verdadeiro
alcance destes textos, o IPT não diz uma só palavra [1].
Não é difícil conjeturar a quem beneficia tal procedimento... TEXTO DO IPT
70 . “Pelo direito
das gentes, implantou-se a distinção das propriedades e o regime de
servidão. Pelo direito natural, porém, vigorava a posse comum de todos e
de todos a mesma liberdade” (Decr. De Graciano, L. II, D. 13). Texto
particularmente expressivo pelo fato de associar à apropriação
individual o regime de servidão. O egoísmo provoca os fortes a se
apropriarem não só das coisas, mas também das pessoas dos mais fracos. COMENTÁRIO “Texto
particularmente expressivo pelo fato de associar à apropriação
individual o regime de servidão”. – Segundo o IPT, existe, pois, um
particular nexo entre o direito de propriedade e a escravidão. Parece que
os vê como recíprocos corolários. Como explicar essa
estranha concepção? Obviamente, considerando, na situação do
trabalhador não proprietário, uma variante da condição de escravo.
Precisamente o que se encontra com abundância na literatura comunista de
todos os níveis, desde o tratado científico até o panfleto de rua. TEXTO DO IPT
71 . Ainda hoje a
Igreja vai procurar luz e orientação no pensamento dos grandes Doutores
que tentavam também fazer a síntese entre a fidelidade à Tradição e
as novas realidades sociais com que se defrontavam. Ela consulta com
especial atenção o pensamento de Santo Tomás de Aquino que já vira na
propriedade particular não um obstáculo à comunhão dos bens, mas um
instrumento para a realização de sua destinação social: “A
comunidade dos bens é atribuída ao direito natural, não no sentido de
que o direito natural prescreva que tudo deva ser possuído em comum e
nada seja possuído como próprio, mas no sentido que, segundo o direito
natural, não existe distinção de posses, que é o resultado da convenção
entre os homens e decorre do direito positivo. Daí se conclui que a
apropriação individual não é contrária ao direito natural, mas se
acrescenta a ele por invenção da razão humana” (Summa Theologia; II,
IIae q. 66 art. 2, ad 1). Assim a apropriação individual seria, para
Santo Tomás, um dos meios de realizar a destinação social dos bens a
todos. É o que ele mesmo explicita no mesmo texto, com maior precisão:
“Quanto à faculdade de administrar e gerir, é lícito que o homem
possua coisas como próprias; quanto ao uso, não deve o homem ter as
coisas exteriores como próprias, mas como comuns, a saber, de maneira a
comunicá-las aos outros”. * * * A SAGRADA ESCRITURA E A RIQUEZA O Deuteronômio defende a propriedade privada,
apresentando sua violação como pecado proibido pelo Decálogo “Não
cobiçarão a mulher do teu próximo, nem a sua casa, nem o seu campo, nem
o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa
alguma que lhe pertença (Dt. 5, 21). Dois ricos, justos e bem-amados por Deus:
Abraão e Lot “E
ele [Abrão] teve ovelhas e bois e jumentos, e servos e servas, e jumentas
e camelos... E Faraó deu ordens a seus homens para cuidarem de Abrão; e
eles o acompanharam com sua mulher e com tudo o que possuía” (Gn. 12,
16 e 20). “Era [Abrão] extremamente rico em ouro
e prata” (Gn. 13, 2). “Também
Lot, que acompanhava Abrão, tinha rebanhos de ovelhas, e manadas, e
tendas. E não podiam habitar juntos naquela terra, por serem muitos os
seus haveres” (Gen. 13, 5 e 6). A riqueza, bênção de Deus “Labão
disse-lhe [a Jacó]: ... Reconheci por experiência que Deus me abençoou
por causa de ti. ... Respondeu-lhe [Jacó]: Tu sabes de que modo te servi,
e quanto os teus bens aumentaram nas minhas mãos. Tinhas pouco antes que
eu viesse a ti, e agora te tornaste rico; o Senhor te abençoou com a
minha vinda. É pois justo que eu também pense agora na minha casa. ... E
ele [Jacó] tornou-se extremamente rico, e teve muitos rebanhos, servos e
servas, camelos e jumentos” (Gn. 30, 27 a 30 e 43). “E
o Senhor abençoou Jó no seu último estado muito mais do que no
primeiro. E chegou a ter catorze mil ovelhas, e seis mil camelos, e mil
juntas de bois, e mil jumentas” (Job. 42, 12). O proprietário tem a inteira disposição de
seus bens: a parábola dos operários da vinha “O
reino dos céus é semelhante a um pai de família que, ao romper da manhã,
saiu a contratar operários para a sua vinha. E tendo ajustado com os operários
um dinheiro por dia, mandou-os para a sua vinha. E tendo saído cerca da
terceira hora, viu outros que estavam na praça ociosos. E disse-lhes: Ide
vós também para a minha vinha, e dar-vos-eis o que for justo. E eles
foram. Saiu outra vez cerca da hora sexta e da nona, e fez o mesmo. E
cerca da undécima, saiu e encontrou outros que estavam [ociosos], e
disse-lhes: Por que estais aqui todo o dia ociosos? E eles responderam:
Porque ninguém nos assalariou. Ele disse-lhes: Ide vós também para a
minha vinha. No fim da tarde, o senhor da vinha disse ao seu mordomo: Chama os operários e paga-lhes o salário, começando pelos últimos até aos primeiros. Tendo chegado pois os que tinham ido cerca da hora undécima, recebeu cada um seu dinheiro. E chegando também os primeiros, julgaram que haviam de receber mais; porém, também eles receberam um dinheiro cada um. E ao receberem, murmuravam contra o pai de família, dizendo: Estes últimos, trabalharam uma hora, e os igualaste conosco, que suportamos o peso do dia e do calor. Porém ele, respondendo a um deles, disse: Amigo, eu não te faço injustiça; não ajustaste tu comigo um dinheiro? Toma o que é teu, e vai-te; que eu quero dar também a este último tanto como a ti. Ou não me é lícito fazer o que quero? Porventura o teu olho é mau, porque eu sou bom? Assim, os últimos serão os primeiros, e primeiros os últimos; porque são muitos os chamados, e poucos os escolhidos” (Mt. 20, 1 a 16). * * * São Tomás trata várias
vezes da propriedade privada, e notadamente na Suma Teológica. Como todo
contexto da doutrina do Doutor Angélico não é compatível com a do IPT,
este extrai com pinça o tópico citado, que interpreta arbitrariamente. “Interpreta”:
melhor seria dizer “manipula”. Pois omite o final da frase, pelo qual
se conheceria o pensamento matizado de São Tomás, oposto ao que o IPT
quer inculcar. A sentença do Doutor Angélico é a seguinte: “Também compete
ao homem, no que diz respeito aos bens exteriores, o uso dos mesmos. E
quanto a isto, não deve o homem ter os bens exteriores como próprios,
mas como comuns: isto é, de modo que facilmente deles dê participação
aos outros em suas necessidades” [2]. O que eqüivale a
dizer, em outros termos, que o proprietário pode legitimamente fruir do
que lhe pertence, mas deve ajudar aos outros com desprendimento,
“facilmente”, em caso de necessidade. Como dever de justiça, em caso
de necessidade extrema, e dever de caridade, quando a necessidade não é
extrema (cfr. Textos Pontifícios ao fim da Secção A). TEXTO DO IPT
72 . Com a evolução
da Sociedade, o direito positivo teve também de evoluir e explicitar
normas jurídicas para regulamentar a crescente complexidade da vida em
sociedade e especificamente com relação ao problema da propriedade, da
posse e do uso da terra. 73 . A Igreja,
embora respeitando sempre a justa autonomia das ciências jurídicas e do
direito positivo, considera de seu dever pastoral a missão de proclamar
as exigências fundamentais da justiça. 74 . É assim que,
para ser fiel a essa longa tradição brevemente evocada, a Igreja, na sua
doutrina social, quando defende hoje a propriedade individual da terra e
dos meios de produção, enfatiza sempre a sua função social. Assim, Pio
XII denuncia o capitalismo agrário que expulsa do campo os humildes
agricultores forçados a abandonar sua terra em troca de ilusões e
frustrações no meio urbano: “O capital se apressa a apoderar-se da
terra (...) que se torna, assim, não mais objeto de amor, mas de fria
especulação. A terra, nutriz generosa das populações urbanas, como das
populações camponesas, passa a produzir apenas para esta especulação e
enquanto o povo sofre fome, o agricultor oprimido de dívidas, caminha
lentamente para a ruína, a economia do país se esgota, para comprar a
preços elevados o abastecimento que se vê obrigada a importar do
exterior” (“Al particolare compiacimento”. Alocução aos membros do
Congresso da Confederação Italiana dos Agricultores, 15 de novembro de
1946, no. 14). COMENTÁRIO “A Igreja, na sua
doutrina social, quando defende hoje a propriedade individual da terra e
dos meios de produção, enfatiza sempre a sua função social”. – O
IPT reconhece, pois, a legitimidade do direito de propriedade, e se refere
à função social que incumbe a este – como aliás, acrescente-se, a
todos os outros direitos, inclusive o da vida. Seria curial que,
sendo o órgão mais do que a função, o IPT insistisse tanto ou mais
sobre o direito de propriedade, do que sobre a função social deste.
Entretanto, ele faz precisamente o contrário. Isto é, derrama-se
largamente sobre a função, e trata só de passagem do direito. Tal modo de proceder
talvez se explicasse em um ambiente no qual o direito de propriedade fosse
incontroverso e, pelo contrário, a função social dele fosse geralmente
ignorada, ou negada. É notório que no
Brasil a imensa maioria da população (isto é, dos proprietários como
dos que não o são) está habituada por uma longa tradição, ao direito
de propriedade. De tal maneira que nem sequer lhe ocorre a necessidade de
encontrar para esse direito uma explicação filosófica. E por isto
ignora tanto os argumentos favoráveis, como os contrários a ele. Entretanto, essa
imensa maioria, aliás habitualmente infensa a cogitações e leituras
doutrinárias, cada vez mais toma conhecimento, pelos meios de comunicação
social, da expansão contínua do imperialismo comunista, da audácia, bem
como da sagacidade e da eficácia com que os partidos
comunistas agem no Ocidente. Ela nota, em contraposição, a
atitude imprevidente e fraca, para não dizer resignada, fatalista, ou até
simpatizante, com que, por vezes, tanto diversos governos quanto certos
grupelhos de proprietários arqui-opulentos presenciam os progressos da
investida comunista. Ademais, da
intelligentsia brasileira, concentrada em graus variáveis nos centros
urbanos médios e grandes, quase só chegam ao povo pronunciamentos explícita
ou implicitamente proclives ao socialismo e ao comunismo. De onde ir parecendo
gradualmente a essa maioria que a propriedade privada não assenta em
nenhum fundamento doutrinário. Que ela é uma velheira dos tempos idos, a
qual a marcha da História acabará por eliminar impiedosamente em nossos
dias. De onde, para essa maioria, um “complexo de inferioridade”
(releve-se a expressão de mau quilate doutrinário, consagrada entretanto
pelo uso corrente), o qual a inibe tanto no plano do pensamento como no da
ação. A esse
“complexo” vai-se somando outro: o “complexo de culpa” (releve-se,
ainda aqui, a expressão). A consciência moral da população brasileira
repousa sobre uma base religiosa multissecular. Ora, enquanto a Teologia
da Libertação vai fazendo em nosso território as devastações tão
sabiamente assinaladas por João Paulo II em Puebla, as reações
procedentes do campo católico são francamente minoritárias. Não cabe aqui
descrever com pormenores essa situação, nem explicar-lhe a origem histórica:
constituiria isto matéria para outro estudo. De qualquer forma, os fiéis
que reagem contra tudo isto constituem minoria [3]. Essas reações
minoritárias, se de um lado alcançam êxitos e desempenham papel necessário,
de outro lado são prejudicadas a fundo pela atitude dos “Bispos
Silenciosos”. Pois entre a minoria católica esquerdista, abroquelada em
postos chaves dos mais prestigiosos, e a minoria católica fiel à
doutrina tradicional explanada pelo Supremo Magistério, fica uma grande
maioria de Prelados, de Sacerdotes e de leigos intimidada, emudecida, por
vezes desagradada com a marcha para a esquerda, mas que nas horas
decisivas têm subscrito quanto as minorias esquerdistas desejam... Em conseqüência, o
povo brasileiro vai tendo a impressão – cada vez mais difícil de
evitar, à vista de documentos como o IPT – de que a Igreja Católica
mudou sua Moral. Outrora era ela o grande baluarte espiritual da luta
contra o comunismo. Ela se teria transformado em uma força
colaboracionista, em uma terceira-força, que dispõe seus fiéis para uma
situação passiva, quando não simpática e até amiga em relação ao
comunismo. Essa impressão
inverídica – mas quão verossímil! – vai criando, em um número
paulatinamente crescente de pessoas, um verdadeiro sentimento de
culpabilidade por não seguirem o que se lhes afigura ser a “evolução”
da Igreja. Imersa numa rotina mental a-filosófica, ignorante dos próprios
direitos, inibida pelos complexos de inferioridade e culpa, essa maioria
apresenta assim – cada vez mais – as características típicas das
grandes maiorias pouco convictas, desanimadas e desarticuladas, fadadas a
serem espetacularmente juguladas pelas minorias convictas, ativas e bem
articuladas. Nem é necessário
dizer quanto esse curso das coisas convém aos que, de Moscou, preparam o
advento do comunismo no mundo inteiro, e com particular empenho no Brasil,
a nação mais extensa e populosa da América Latina, uma nação cuja
conquista quiçá pusesse na palma das mãos do comunismo internacional
toda a América do Sul, a qual constitui, por sua vez, o maior bloco
populacional católico do mundo. Tudo isso, o IPT
ignora. E tão completamente, que não procura defender contra os sofismas
comunistas a propriedade privada. Ao IPT compraz, pelo contrário, incitar
à comunidade de bens praticada primitivamente por grande número de fiéis
em Jerusalém (cfr. no 67), sem aludir ao que entrou de
inexperiência nesse lance, e aos efeitos funestos que produziu, a ponto
de ter esse regime cessado de existir [4]. Em suma, ao IPT não
parece interessar senão o incremento do descontentamento popular. Quanto
à propriedade privada, o seu entusiasmo, o mais dinâmico de seu zelo se
volta só para a função social dela. Mais uma vez, quantos motivos têm
os esquerdistas de todo o País, inclusive o Sr. Luís Carlos Prestes,
para bater palmas à atuação geral da CNBB! [5]. * * * “Pio XII denuncia
o capitalismo agrário que expulsa do campo os humildes agricultores”.
– O IPT expõe mal a doutrina do Pontífice, ao lhe atribuir um
pensamento que não é o seu. Com efeito, no trecho em referência, Pio
XII põe de alerta os agricultores contra a sedução da vida urbana que
induzia muitos a abandonarem suas terras; em conseqüência disto, o
capital se assenhorearia das terras abandonadas, que trataria de modo frio
e sem amor: “Esta terra, ASSIM ABANDONADA, o capital se apressa em fazê-la
sua” (Discorsi e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII, Tipografia
Poliglotta Vaticana, vol. VIII, p. 307 – destaque do autor). Portanto, segundo o
Pontífice, o camponês estaria deixando a terra espontaneamente, e atraído
por uma miragem. Ora, abandonar é uma coisa; ser expulso é outra bem
diversa ... TEXTO DO IPT
75 . “O conjunto
dos bens da terra destina-se, antes de mais nada, a garantir a todos os
homens um decente teor de vida” (João XXIII, Mater et Magistra, no.
119). 76 . A Constituição
Pastoral “Gaudium et Spes”, do Concílio Vaticano II, explicitou as
exigências do direito natural com relação ao problema da terra num
texto de impressionante atualidade para a situação brasileira. “Em
muitas regiões economicamente menos desenvolvidas existem extensíssimas
propriedades rurais, mediocremente cultivadas ou reservadas para fins de
especulação, enquanto a maior parte da população carece de terras ou
possui só parcelas irrisórias e, por outro lado, o desenvolvimento das
populações agrícolas apresenta-se com caráter de urgência evidente. Não
raras vezes, aqueles que trabalham por conta dos senhores ou cultivam uma
parte de seus bens a título de arrendamento, recebem um salário ou
retribuição indigna de um homem, não têm habitação decente e são
explorados pelos intermediários. Vivendo na maior insegurança, é tal a
sua dependência pessoal, que lhes tira toda possibilidade de agir
espontaneamente e com responsabilidade, toda promoção cultural e toda a
participação na vida social e política. Portanto, são necessárias
reformas nos vários casos: aumentar as remunerações, melhorar as condições
de trabalho, aumentar a segurança no emprego, estimular a iniciativa no
trabalho e, portanto, distribuir as propriedades insuficientemente
cultivadas por aqueles que a possam tornar rendosas. Neste caso,
devem-lhes ser assegurados os recursos e os instrumentos indispensáveis,
particularmente os meios de educação e as possibilidades de uma justa
organização cooperativista” (GS no. 71). COMENTÁRIO Lendo-se a citação
que o IPT faz da Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do Concílio
Vaticano II, nota-se que, por efeito do contexto em que as põe o IPT, o
leitor fica com a impressão de que, segundo a CNBB, as anomalias
descritas pelo Concílio existem, todas, no Brasil. E em todos os 8,5 milhões
de quilômetros quadrados de seu território. Em outros termos, os
males que o Concílio, com os olhos postos no mundo inteiro e não em
determinado país, declara existirem em “muitas regiões economicamente
menos desenvolvidas”, o IPT os atribui todos ao Brasil. E de tal
maneira, que o leitor pode imaginar que o quadro da situação brasileira
pintado pelo IPT (nos. 8 a 55) não é senão uma amplificação da
Gaudium et Spes. Tanto mais quanto o próprio IPT afirma, neste mesmo tópico,
que essa descrição é “de impressionante atualidade para a situação
brasileira” considerada como um todo. As provas dessa
“impressionante atualidade”? Como foi visto (Secções B a G), o IPT
se contenta, nesse ponto capital, com afirmações no ar, ou quase só
isso. * * * Uma vez que está em
foco esta citação da Constituição Gaudium et Spes, é importante notar
algumas diferenças existentes entre ela e o IPT. Também a Gaudium et
Spes fala de “exploração”. Porém num contexto tão claro que
dispensa interpretações ou explicações. Pois alude aos que “são
explorados pelos intermediários”, o que a prática corrente da vida
ensina a cada qual como seja. A Gaudium et Spes
fala também, por sua vez, de “reformas”, e entre estas inclui a
distribuição de terras. Mas alude unicamente ao caso de proprietários
relapsos, incapazes de cultivar suficientemente suas glebas. Assim mesmo,
só concebe essa distribuição no caso em que a carência de terras torne
indispensável para o bem comum a fragmentação das que sejam mal
cultivadas. O IPT, pelo contrário,
fala, sem a indispensável matização na distribuição de terras
privadas, omitindo-se de ponderar que, como anteriormente foi visto (cfr.
Parte I, Cap. VI, 5), o maior proprietário de terras no Brasil é, de
longe, o Poder público (União, Estados, Territórios e Municípios).
Possui este a imensa vastidão das chamadas terras devolutas, ainda
incultas, e que representam cerca de 60% do território nacional. E,
realmente, todos os proprietários ou trabalhadores manuais que desejam
explorar essas terras têm um direito natural a isto. O Poder público está
na obrigação de os favorecer franca, leal e urgentemente nesse sentido,
em toda a medida requerida pelas condições dos excedentes demográficos
das áreas cultivadas. Como então
justificar, em princípio, a distribuição de terras já cultivadas, ou
pelo menos das que o são insuficientemente, quando ainda são
superabundantes as terras não cultivadas? Como extinguir os direitos de
um proprietário apenas semi-ativo, e poupar os do imenso latifundiário
totalmente inativo que – no tocante a imensas áreas de terras – é o
Poder público? Acrescente-se que,
como bem diz mais adiante o IPT, citando João Paulo II, “sobre toda
propriedade privada pesa uma hipoteca social” (no. 79). Mas sobre terras
de propriedade do Poder público, o direito da população tem um caráter
muito mais radical e cogente que o do credor hipotecário. Talvez não
houvesse exagero qualificando-o de direito de propriedade. * * * Cumpre por fim realçar
que o IPT não transcreveu todo o tópico 71 da Constituição Gaudium et
Spes, mas omitiu significativamente os dois trechos seguintes: 1º) “A
transferência ... de bens para propriedade pública não pode ser
realizada senão pela autoridade competente, de acordo com as exigências
do bem comum e dentro de seus limites, OFERECENDO-SE INDENIZAÇÃO
JUSTA”. 2º)
“TODAS AS VEZES que o bem comum exigir uma expropriação DEVE SER
ESTIPULADA A INDENIZAÇÃO DE ACORDO COM A EQÜIDADE LEVANDO-SE EM CONTA
TODAS AS CIRCUNSTÂNCIAS” (destaques do autor). O primeiro dos
trechos vem dois parágrafos antes da transcrição do IPT. O segundo, vem
imediatamente a seguir à referida transcrição, no mesmo parágrafo
(cfr. Compêndio do Vaticano II, Vozes, Petrópolis, 10ª ed.,
1976, no. 71). É fácil ver que,
transcrito o texto da Gaudium et Spes em sua íntegra, ele introduz
importantíssimas ressalvas que destoam do espírito e do sentido do IPT. TEXTO DO IPT
77 . Paulo VI
insiste no princípio que “a propriedade privada não constitui para
ninguém direito incondicional absoluto” (Populorum Progressio, no. 23). 78 . João Paulo II,
dirigindo-se aos agricultores de Oaxaca, afirma: “De vossa parte,
responsáveis pelos povos, classes poderosas que mantendes, por vezes,
improdutivas as terras que escondem o pão que falta a tantas famílias, a
consciência humana, a consciência dos povos, o clamor dos desvalidos e,
sobretudo, a voz de Deus, a voz da Igreja, vos repete comigo: Não é
justo, não é humano, não é cristão continuar com certas situações
claramente injustas” (Aloc. Em Oaxaca, AAS, LXI, p. 210). COMENTÁRIO Também a alocução
de João Paulo II em Oaxaca é apresentada como particularmente alusiva ao
Brasil. Ora, nela o Pontífice afirma que tem ouvido “o clamor dos
desvalidos”, os quais não têm meios para satisfazer suas justas
necessidades senão cultivando “as terras” incultas ou mal cultivadas
“que escondem o pão que falta a tantas famílias”. É em vista dessa
situação que a alocução formula a grave advertência: “Não é
justo, não é humano, não é cristão continuar com certas situações
claramente injustas” (no. 78). Sem dúvida. Contudo, na medida
em que essa situação existe no Brasil, é responsável por ela o Poder público
que poderia franquear muitíssimo mais seu imenso latifúndio inexplorado,
a quantos – grandes, médios ou pequenos – desejassem fazê-lo
produzir para o bem próprio e o bem comum. Ao Poder público caberia,
entre outras coisas, fazer intensa propaganda para atrair contingentes
populacionais rumo a nosso hinterland, especificando os incentivos e as
garantias que para tal lhes daria. E – diga-se de
passagem – também tem responsabilidade pela situação um número
indefinido de pessoas que preferem vegetar na rotina das cidades ou dos
campos próximos aos centros urbanos, em lugar de repetir as proezas dos
desbravadores portugueses e brasileiros que nos antecederam. Àqueles – que
assim dormem – que direito pode assistir à partilha de terras que já têm
dono? “Aos que dormem, o direito não ajuda” – “Dormientibus non
succurrit jus”. Esse direito pode
ser exercido, isto sim, pelo migrante que deixou suas comodidades ou seus
hábitos, para cultivar a selva. No seu açodamento
reformista e igualitário, o IPT a nada disso atende... Tudo nele – cada
informação, cada enunciado de princípios, cada comentário – tende a
um só fim: dividir para igualar (cfr. Comentário ao no. 89). TEXTO DO IPT 79 . “Os bens e
riquezas do mundo, por sua origem e natureza, segundo a vontade do
Criador, são para servir efetivamente à utilidade e ao proveito de todos
e cada um dos homens e dos povos. Por isso a todos e a cada um compete o
direito primário e fundamental, absolutamente inviolável, de usar
solidariamente esses bens, na medida do necessário para uma realização
digna da pessoa humana”. Todos os outros direitos, também a propriedade
e livre comércio, lhe são subordinadas [sic], como nos ensina João
Paulo II: “Sobre toda propriedade privada pesa uma hipoteca social”. 80 . Uma hipoteca é
uma garantia do cumprimento de obrigações assumidas. Da expressão do
Santo Padre se conclui, pois, que toda propriedade privada está, de certo
modo, penhorada, gravada pelo compromisso de sua destinação social. 81 . “A propriedade compatível com aquele direito primordial é, antes de tudo, um poder de gestão e administração, que, embora não exclua o domínio, não o torna absoluto nem ilimitado. Deve ser fonte de liberdade para todos, nunca de dominação nem de privilégios. É um dever grave e urgente fazê-lo retornar à sua finalidade primeira” (Puebla, no. 492).
Textos Pontifícios
O
ensinamento do Magistério ordinário e universal da Igreja sobre a
legitimidade do direito de propriedade A Igreja
determina que o direito de propriedade permaneça intacto e inviolável
para cada um Encíclica Quod
Apostolici Muneris de 28 de dezembro de 1878: “Os sectários do
socialismo, apresentando o direito de propriedade como uma invenção
humana que repugna à igualdade natural dos homens, e reclamando o
comunismo dos bens, declaram que é impossível suportar com paciência a
pobreza e que as propriedades e regalias dos ricos podem ser violadas
impunemente. Mas a Igreja, que reconhece muito mais útil e sabiamente que
existe a desigualdade entre os homens, naturalmente diferentes nas forças
do corpo e do espírito, e que esta desigualdade também existe na
propriedade dos bens, determina que o direito de propriedade ou domínio,
que vem da própria natureza, fique intacto e inviolável para cada um”.
Leão XIII. [Documentos Pontifícios,
Vozes, Petrópolis, fasc. 17, 4ª ed., 1962, p. 12]. O direito
do trabalhador ao salário dá origem à propriedade privada Encíclica Rerum
Novarum de 15 de maio de 1891: “Os socialistas,
para curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que
possuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser
suprimida, que os bens dum indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e
que a sua administração deve voltar para os Municípios ou para o
Estado. Mediante esta transladação das propriedades e esta igual repartição
das riquezas e das comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos,
lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante
teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário
se fosse posta em prática. Outrossim, é sumamente injusta, por violar os
direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e
tender para a subversão completa do edifício social. De fato, como é fácil
compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quem exerce
uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador, é conquistar
um bem que possuirá como próprio e como pertencendo-lhe, porque, se põe
à disposição de outrem suas forças e sua indústria, não é,
evidentemente, por outro motivo senão para conseguir com que possa prover
à sua sustentação e às necessidades da vida, e espera do seu trabalho,
não só o direito ao salário, mas ainda um direito estrito e rigoroso
para usar dele como entender. Portanto, se, reduzindo as suas despesas,
chegou a fazer algumas economias, e se, para assegurar a sua conservação,
as emprega, por exemplo, num campo, torna-se evidente que esse campo não
é outra coisa senão o salário transformado: o terreno assim adquirido
será propriedade do artista com o mesmo título que a remuneração do
seu trabalho. Mas quem não vê que é precisamente nisso que consiste o
direito de propriedade mobiliária e imobiliária? Assim, esta conversão
da propriedade particular em propriedade coletiva, tão preconizada pelo
socialismo, não teria outro efeito senão tornar a situação dos operários
mais precária, retirando-lhes a livre disposição do seu salário e
roubando-lhes, por isso mesmo, toda a esperança e toda a possibilidade de
engrandecerem o seu patrimônio e melhorarem a sua situação”. Leão
XIII. [Documentos Pontifícios,
Vozes, Petrópolis, fasc. 2, 6ª ed., 1961, pp. 5-6]. Deus
desejou que os homens dominassem os bens da terra por meio do regime de
propriedade privada Encíclica Rerum
Novarum de 15 de maio de 1891: “Não se oponha
também à legitimidade da propriedade particular o fato de que Deus
concedeu a terra a todo o gênero humano para a gozar, porque Deus não a
concedeu aos homens para que a dominassem confusamente todos juntos. Tal não
é o sentido dessa verdade. Ela significa, unicamente, que Deus não
assinou uma parte a nenhum homem em particular, mas quis deixar a limitação
das propriedades à indústria humana e às instituições dos povos. Aliás,
posto que dividida em propriedades particulares, a terra não deixa de
servir à utilidade comum de todos, atendendo a que ninguém há entre os
mortais que não se alimente do produto dos campos. Quem os não tem,
supre-os pelo trabalho, de maneira que se pode afirmar, com toda a
verdade, que o trabalho é o meio universal de prover às necessidades da
vida, quer ele se exerça num terreno próprio, quer em alguma arte
lucrativa cuja remuneração, apenas, sai dos produtos múltiplos da
terra, com os quais se ela comuta”. Leão XIII. [Documentos Pontifícios,
Vozes, Petrópolis, fasc. 2, 6ª ed., 1961, p. 7]. Igualdade
na miséria: conseqüência da abolição da propriedade privada Encíclica Rerum
Novarum de 15 de maio de 1891: “Substituindo a
providência paterna pela providência do Estado, os socialistas vão
contra a justiça natural e quebram os laços da família. Mas, além da
injustiça do seu sistema, vêem-se bem todas as suas funestas conseqüências,
a perturbação em todas as classes da sociedade, uma odiosa e insuportável
servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as invejas, a
todos os descontentamentos, a todas as discórdias; o talento e a
habilidade privados dos seus estímulos, e, como conseqüência necessária,
as riquezas estancadas na sua fonte; enfim, em lugar dessa igualdade tão
sonhada, a igualdade na nudez, na indigência e na miséria. Por tudo o que Nós
acabamos de dizer, se compreende que a teoria socialista da propriedade
coletiva deve absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles mesmos a
que se quer socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos,
como desnaturando as funções do Estado e perturbando a tranqüilidade pública.
Fique, pois, bem assente que o primeiro fundamento a estabelecer para
todos aqueles que querem sinceramente o bem do povo, é a inviolabilidade
da propriedade particular”. Leão XIII. [Documentos Pontifícios,
Vozes, Petrópolis, fasc. 2, 6ª ed., 1961, pp. 10-11]. O exercício
do direito de propriedade é não só permitido, mas absolutamente necessário Encíclica Rerum
Novarum de 15 de maio de 1891: “A propriedade
particular, já Nós o dissemos mais acima, é de direito natural para o
homem: o exercício deste direito é coisa não só permitida, sobretudo a
quem vive em sociedade, mas ainda absolutamente necessária (Santo Tomás,
II-II, q. 66, a. 2)”. [Documentos Pontifícios,
Vozes, Petrópolis, fasc. 2, 6ª ed., 1961, p. 16]. – Leão
XIII A atenuação
do regime de propriedade privada leva rapidamente ao coletivismo Encíclica
Quadragesimo Anno de 15 de maio de 1931: “Deve, portanto,
evitar-se cuidadosamente um duplo erro, em que se pode cair. Pois, como
negar ou cercear o direito de propriedade social e pública precipita
no chamado ‘individualismo’ ou dele muito aproxima, assim, também,
rejeitar ou atenuar o direito de propriedade privada ou individual leva
rapidamente ao ‘coletivismo’ ou pelo menos à necessidade de
admitir-lhe os princípios”. [Documentos Pontifícios,
Vozes, Petrópolis, fasc. 3, 5ª ed., 1959, p. 19]. – Pio XI. O direito
de propriedade é distinto de seu uso Encíclica
Quadragesimo Anno de 15 de maio de 1931: “A
fim de pôr termo às controvérsias que acerca do domínio e deveres a
ele inerentes começam a agitar-se, note-se em primeiro lugar o fundamento
assente por Leão XIII, de que o direito de propriedade é distinto de seu
uso (Encíclica Rerum Novarum,
§ 35). Com efeito, a chamada justiça comutativa obriga a conservar
inviolável a divisão dos bens e a não invadir o direito alheio,
excedendo os limites do próprio domínio; mas que os proprietários não
usem do que é seu, senão honestamente, é da alçada não da justiça,
mas de outras virtudes, cujo cumprimento ‘não pode urgir-se por vias
jurídicas’ (cfr. Encíclica Rerum Novarum, § 36”). [Documentos Pontifícios,
Vozes, Petrópolis, fasc. 3, 5ª ed., 1959, p. 19]. -
Pio XI O direito
de propriedade não se perde pelo abuso Encíclica
Quadragesimo Anno de 15 de maio de 1931: “Sem razão
afirmam alguns que o domínio e o seu uso são uma e a mesma coisa; e
muito mais ainda é alheio à verdade dizer que se extingue ou se perde o
direito de propriedade com o não uso ou abuso dele”. [Documentos Pontifícios,
Vozes, Petrópolis, fasc. 3, 5ª ed., 1959, p. 19]. - Pio XI A
propriedade privada é essencial ao bem comum Encíclica
Quadragesimo Anno de 15 de maio de 1931: “A própria
natureza exige a repartição dos bens em domínios particulares,
precisamente a fim de poderem as coisas criadas servir ao bem comum de
modo ordenado e constante. Este princípio deve ter continuamente diante
dos olhos quem não quer desviar-se da reta senda da verdade”. [Documentos Pontifícios,
Vozes, Petrópolis, fasc. 3, 5ª ed., 1959, p. 24]. Pio XI A
propriedade pessoal assegura a liberdade do homem Radiomensagem de
Natal de 1956: “A segurança! A
aspiração mais viva dos homens de hoje! Eles a pedem à sociedade e às
suas leis. Mas os pretensos realistas deste século demonstraram que não
estavam em condições de proporcioná-la, precisamente porque querem
substituir-se ao Criador e fazer-se árbitros da ordem da criação. A Religião, e a
realidade do passado, ensinam, pelo contrário, que as estruturas sociais,
como o casamento e a família, a comunidade e as corporações
profissionais, a união social na propriedade pessoal, são células
essenciais que asseguram a liberdade do homem, e ... com isto, seu papel
na história. Elas são, pois, intangíveis e sua substância não pode
ser submetida a revisão arbitrária”. [Discorsi
e Radiomessaggi di Sua Santità Pio XII, vol. XVIII, p. 734]. – Pio XII. A
verdadeira liberdade encontra no direito de propriedade garantia e
incentivo Encíclica Mater et
Magistra de 15 de maio de 1961: “Tais condições
da vida econômica sem dúvida são uma das causas por que se espalha a dúvida
sobre se, nas atuais circunstâncias, perdeu sua força ou se tornou de
menor valor o princípio da ordem econômico-social firmemente ensinado e
defendido por Nossos Predecessores: o princípio que declara ser um
direito natural dos homens o de possuir individualmente até mesmo bens de
produção. Esta dúvida é
totalmente infundada. Com efeito, o direito da propriedade privada, mesmo
em relação a bens empregados na produção, vale para todos os tempos.
Pois depende da própria natureza das coisas, que nos diz ser o indivíduo
anterior à sociedade civil e, por este motivo, ter a sociedade civil por
finalidade o homem. De resto, a nenhum indivíduo se reconheceria o
direito de agir livremente em matéria econômica se não lhe fosse
igualmente concedida a faculdade de escolher e de empregar os meios necessários
ao exercício deste direito. Além disto, a experiência e a História
atestam que, onde os regimes políticos não reconhecem aos particulares a
posse mesmo de bens de produção, aí é violado ou completamente destruído
o uso da liberdade humana em questões fundamentais. De onde se patenteia,
certamente, que a liberdade encontra no direito de propriedade proteção
e incentivo. Aí se deve procurar
o motivo por que certos partidos e movimentos políticos e sociais que
procuram harmonizar a liberdade e a justiça na sociedade humana, e que até
bem pouco não aceitavam o direito da propriedade particular sobre bens
produtores de riquezas, esses mesmos, hoje, mais esclarecidos pelo curso
das questões sociais, reformam sua opinião e aprovam este mesmo direito. Apraz-Nos, portanto,
citar as palavras de Nosso Predecessor Pio XII, de feliz memória: ‘A
Igreja, protegendo o direito da propriedade particular, tem em vista um
excelente fim ético-social. De nenhum modo pretende Ela defender a atual
ordem de coisas como se nela reconhecesse a expressão da vontade divina,
nem assume o patrocínio dos opulentos e plutocratas, desprezando os
direitos dos pobres e indigentes... A verdadeira intenção da Igreja
consiste em fazer com que o instituto da propriedade particular seja tal
como o desígnio da Divina Sabedoria e a lei natural o estabeleceram’
(Radiomensagem de 1º de setembro de 1944; cfr. A.A.S. XXXVI,
1944, p. 253). Isto é, cumpre que a propriedade particular seja uma
garantia da liberdade da pessoa humana e ao mesmo tempo intervenha como
elemento indispensável no estabelecimento de uma reta ordem social. Enquanto, como já
dissemos, em muitos países as recentes condições econômicas têm-se
desenvolvido rapidamente tornando a produção mais eficiente, a justiça
e a eqüidade exigem que igualmente seja aumentado o salário do trabalho,
sem prejuízo para o bem comum. Isto permitirá ao trabalhador fazer
economias com mais facilidade e assim conseguir um pequeno pecúlio. É,
pois, de admirar que seja contestado por alguns o caráter natural do
direito de propriedade, deste direito que haure sempre na fecundidade do
trabalho sua força e seu vigor; que contribui de modo tão eficaz para a
proteção da dignidade da pessoa humana, e para o livre desempenho dos
deveres de cada um em todos os campos de atividade; que, finalmente,
fortalece a união e tranqüilidade do lar e traz um aumento de paz e
prosperidade ao Estado. Contudo, não basta
afirmar o caráter natural do direito de propriedade particular, inclusive
de bens produtivos, se ao mesmo tempo não se emprega todo o esforço para
que o uso desse direito seja difundido entre todas as classes de cidadãos”.
João XXIII. [“Catolicismo”,
no. 129, setembro de 1961, p. 4]. Destaques em negrito
e subtítulos do autor [1] Quanto aos textos de Santo Ambrósio, são de fácil e perfeito esclarecimento. Para não alongar a exposição, basta resumir o que diz M. –B. SCHWALM, no Dictionnaire de Théologie Catholique (Letouzey et Ané, Paris, 1923, verbete “Communisme”, cols. 581,582). Após ter mostrado que a Igreja dos primeiros séculos não se desviara num sentido comunista, Schwalm estuda duas situações que marcam o século IV. De um lado, o surgimento de seitas comunistas, condenadas como heréticas pelos Padres da Igreja – entre os quais Santo Agostinho – por negarem a legitimidade da propriedade privada e da riqueza individual. De outro lado, o real monopólio da propriedade territorial praticado pela aristocracia cristã. Esta situação fez com que os Padres da Igreja – continua a explicar Schwalm – mantendo a doutrina tradicional no tocante ao direito de propriedade, empreendessem o combate aos abusos da riqueza; este objetivo novo conduz ao desenvolvimento de aspectos novos na doutrina tradicional. Assim, “aos patrícios monopolizadores, Ambrósio lembra uma verdade que os antigos Padres não destacavam, mas que é bem de espírito evangélico, de essência cristã; a criação da terra para a vida e o bem de todos, por um Deus Pai de todos. Somente que ele acentua esta reivindicação dos fins universais da terra e de seus bens, a ponto de parecer negar o direito particular do rico”. E Schwalm transcreve as palavras de Santo Ambrósio citadas pelo IPT além de outros conhecidos textos no mesmo sentido, do grande Doutor. “Entretanto – acentua Schwalm – a doação providencial da terra à humanidade não impede, sempre segundo Santo Ambrósio, a legitimidade da posse individual, nem mesmo a da riqueza. ‘Não são os que têm riquezas, mas os que não sabem usar delas que a sentença divina atinge: Ai de vós, ricos’ (Expositio Evang. Sec. Luc., I, V, no. 69, P.L., t. XIV, col. 1654). A condição de rico e de proprietário não é má em si: ‘Não são os ricos que são condenáveis, mas as riquezas dos pecadores’ (In. Ps. XXXVI, 14, P.L., t. XIV, col. 972)”. Assim, diz Schwalm, o que parece condenação do direito de propriedade em textos de Santo Ambrósio, deve-se na realidade à hipérbole oratória necessária para a reação extrema que o Santo Doutor empreendia contra os abusos dos ricos. Nota Schwalm, a esse propósito, que o livro sobre Naboth, de Santo Ambrósio, “apresenta a riqueza como um presente divino: ‘De Deus recebestes o que deveis aos pobres; a Deus pertencem vossos dons’ ( c. XVI, no. 66, col. 753). A condição de rico – conclui Schwalm – não é má em si”. [2] À pergunta “se é lícito alguém possuir uma coisa como própria” São Tomás de Aquino responde: “Com
referência aos bens exteriores, duas coisas competem ao homem. Uma
delas é o poder de gestão e de disposição. E quanto a isto, é lícito
que o homem possua coisas próprias. E é também necessário para a
vida humana, por três razões: - Primeiro, porque cada um é mais solícito
em cuidar do que lhe compete com exclusividade do que daquilo que é
comum a todos ou a muitos: posto que cada um, fugindo ao trabalho,
deixa ao outro o que cabe a todos, como acontece quando há muitos
criados. – Segundo, porque as coisas humanas são administradas mais
ordenadamente se a cada um incumbe o cuidado de uma coisa determinada,
ao passo que reinaria a confusão se cada um cuidasse indistintamente
de tudo. – Terceiro, porque o estado de paz entre os homens se
conserva melhor quando cada um está contente com o que é seu. Por
isso se vê que entre aqueles que possuem algo em comum e pro
indiviso, as contendas surgem com mais freqüência. Por outro lado, também compete ao homem, no que diz respeito aos bens exteriores, o uso dos mesmos. E quanto a isto, não deve o homem ter os bens exteriores como próprios, mas como comuns: isto é, de modo que facilmente deles dê participação aos outros em suas necessidades. Por isso diz o Apóstolo (I Tim. 6, 17-18): ‘Manda aos ricos deste século ... que com facilidade dêem e repartam’” (Suma Teológica, II, IIae., q. 66, art. 2). [3] Cfr. PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA, A Igreja ante a escalada da ameaça comunista – Apelo aos Bispos Silenciosos, Ed. Vera Cruz, São Paulo, 4ª ed., 1977, pp. 83 a 86. [4] É sabido que grande número de fiéis da primitiva comunidade de Jerusalém, levados pelo fervor que os animava, constituíram-se em algo parecido com uma ordem religiosa, no sentido de que praticavam a comunidade de bens. Jamais, entretanto, consideraram que tal comunidade fosse obrigatória para todos os católicos. O episódio de Ananias e Safira (act. 5, 1 a 11) prova bem o reconhecimento da propriedade privada pela Igreja primitiva. Ao casal de doadores fraudulentos, São Pedro exprobra em termos claros porque, não tendo obrigação de doar seus bens à Igreja, simulavam entretanto essa doação. [5] Cfr. Parte I, Cap. VI, nota 7.
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