Sociedade orgânica (II) – O ponto de partida da organicidade

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferências do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

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Ilha Fernando de Noronha – Wikipedia

Verdadeira relação do homem com a natureza

Tomemos um lugar onde o homem nunca esteve. A Ilha Fernando de Noronha, por exemplo, antes de ser habitada pelos homens. É uma ilha relativamente pequena, e é certo que ali nunca antes estiveram homens morando estavelmente, fazendo ali sua residência. Pode ser que navios, de passagem, tivessem parado ali. Passaram alguns dias, talvez um mês, depois saíram, e aquilo voltou à sua ordem natural.

Pode-se imaginar que a ilha não habitada tem uma situação de harmonia, de agrado, e ao mesmo tempo de contraste entre a terra firme e o alto mar. Por assim dizer, é uma aldeia dentro do alto mar, como seria uma aldeia dentro do mato. A atmosfera toda seria de alto mar, mas com um pouquinho da atmosfera da terra. Pode-se supor que isto fosse muito aprazível, e que pessoas de passagem sentissem muito agrado em ficar lá um certo tempo, não teriam agrado em ficar lá muito tempo. Sobretudo ficando lá um número apreciável de pessoas durante muito tempo, alguma coisa poderia dar errado.ue ela estava desimpedida dos efeitos dos últimos homens que tivessem estado ali, e encontrasse a natureza em estado puro, teria um deleite especial com aquilo. E não teria dificuldade em admitir que havia ali uma ordem posta por Deus, com sabedoria e bondade divinas, muito agradável, especialmente privilegiada. E poderia apreciar ali o que se poderia chamar propriamente a ordem natural.

De tal maneira que se na ilha se estabelecesse duravelmente uma cidadezinha, ou mesmo uma aldeia de pescadores, alguma coisa ficaria prejudicada com a presença do homem lá, embora o panorama e a atmosfera permanecessem os mesmos. Donde se poderia eventualmente concluir — mas note-se muito a palavra eventualmente — que a presença do homem quebra em algo a atmosfera habitual. E no lugar inabitado — ou habitado por tão pouca gente que a presença do homem não tem força suficiente para impor a nota dominante do ambiente — vê-se em algo o plano de Deus, menos visível à medida que o número de habitantes aumenta (CSN, 22/5/1993).

Isso parece uma contradição, porque sendo o homem o rei da natureza, só se pode admitir que a presença dele a valorize, tornando-a mais agradável e mais interessante. Vamos dizer que o homem transformasse aquilo tudo num jardim, ou construísse numa ponta da ilha uma casinha de mero repouso, para ter as delícias da variedade de panorama, ou fizesse uma plantação. Dir-se-ia que ele valoriza o lugar com sua ação, e que a Ilha Fernando de Noronha lucraria em ser habitada dessa maneira, porque estaria sendo habitada pelo rei.

Aqui começa a necessidade de distinguir. Pode-se compreender que o homem, ao fazer uso da inteligência que Deus lhe deu, e de uma certa capacidade de transformar o ambiente, de fato melhore, senão o total da ilha, pelo menos vários de seus aspectos, e que ela fique mais agradável, mais bonita etc. Pode-se até compreender que a presença do homem dê à ilha um certo charme, mesmo quando ele não esteja visível lá.

Vamos imaginar que o homem construa num bosque pouco denso uma alameda bonita com um serpentear interessante, que passa por um rochedo do alto do qual se tem uma bela vista para o mar, e depois passa por outro rochedo ainda mais alto, de onde se tem uma vista ainda mais ampla. A presença dele embeleza vários pontos da ilha. Porém há mais do que isso. Pode-se admitir que, sendo homens de um certo gênero, de um certo estilo, a simples presença deles torne agradável o lugar.

A alameda construída acompanhando o serpentear do lugar confere à ilha uma certa graça. Uma árvore plantada num certo ponto pode dar ideia da intenção do homem em plantá-la ali, do espírito dele, da mentalidade com que esteve ali. Tudo isso vai dando à ilha hipotética um certo charme da presença do homem. Portanto, o homem acrescentou algo de positivo à ilha (CSN, 22/5/1993)

O rei da criação após o pecado original

O fato de o homem trazer o pecado original consigo, e a atmosfera da ilha ser impregnada pela ação de presença dele, traz consigo um conforme: ele é o rei da ilha, mas um rei que, em relação ao que deveria ser o rei, está como uma xícara rachada para o que seria se não fosse rachada. Por ser concebido no pecado original, ele tem destemperos; às vezes quer coisas em número maior do que deveria querer; outras vezes relaxa e não aproveita as coisas como deveria aproveitar; ou então tem mau gosto e deteriora alguma coisa em que não deveria mexer. De maneira que se pode admitir uma valorização e uma desvalorização da ilha ao mesmo tempo, pela mesma presença do homem.

Há aspectos desordenantes na atividade do homem, que vêm quase indissoluvelmente junto com sua ação civilizadora e embelezante. De tal maneira que quem visse uma ilha assim deserta ficaria na dúvida se deveria desejar ou não que ela fosse habitada por homens — homens de porte, não uns quaisquer — e se perguntaria se a presença humana deteriora ou desvaloriza as coisas.

Assim se vai compreendendo o que é preciso haver para que um panorama se desenvolva agradavelmente e convenientemente para o homem (CSN, 22/5/1993).

Pode-se dizer que, quando Adão e Eva foram expulsos do Paraíso terrestre, lá houve uma tristeza, e talvez uma tristeza na natureza, porque o rei e a rainha tinham se conspurcado. Eles eram o seu adorno fundamental, foram degradados, e essa degradação fez estremecer o Paraíso inteiro: ele todo ficou menos belo. Nesta soma de fatores, que nós chamaríamos ambiente, ficou qualquer coisa marcada pelo pecado original que ali se cometeu.

De outro lado, entretanto, Adão e Eva podem ter deixado uma ideia de como seria o Paraíso se o homem tivesse sempre agido bem nele, a ideia de uma perfeição do Paraíso resultante da presença do homem segundo o plano de Deus. De maneira que tudo ali se celebrasse e se rememorasse de algum modo. Desde a passagem e a expulsão do homem, até a presença do Anjo na porta, impedindo a entrada. É presença da cólera, do fogo de Deus, o esplendor da majestade de Deus por meio de um ser de altas qualidades. E também a hora da misericórdia, em que o Padre Eterno fez uma roupa para Adão.

No total, seria muito complexo fixar a nota dominante de tantos fatores presentes numa ilha. Fatores do passado e fatores do presente, porque o presente não é senão uma evolução do passado. Fatores do futuro, porque é para o futuro que aquilo caminha. O conjunto todo de elementos cercando aquilo já não é a Ilha Fernando de Noronha, mas completa um pouco a ideia de ambiente condicionado pelo homem, e sobretudo o plano de Deus a respeito daquilo. De tal modo que o homem ficasse com uma determinada ideia de como seria o plano de Deus paradisíaco sobre aquele ambiente, do qual o homem pode ser o rei metafísico (CSN, 22/5/1993).

Num livro de Paul Claudel chamado “L’otage” (O refém) há um trecho estupendo. Ele imagina um Papa, não sei se Pio VI ou Pio VII, em viagem à França. Ambos, historicamente, foram presos pela Revolução e levados para a França. Pio VI morreu no caminho. Pio VII chegou até Fontainebleau, e a História conta o resto.

Um desses Papas, segundo a imaginação de Claudel, passa por um lugarzinho chamado Courfontaine, onde a vida dele corre perigo. Lá existe um homem — que é um batráquio horroroso, revolucionário, entusiasta do barrete frígio, dos sans-culottes — do qual depende salvar ou não salvar o Papa. Os monarquistas e católicos vão procurar esse homem para pedir que poupe o Papa. Ele responde: “Eu poupo, mas com uma condição: que a filha do ci-devant senhor de Courfontaine se case comigo”.

Ela era, em nível de minúscula nobreza, uma pessoa encantadora, original, linda. O vigário procura por ela e diz: “Minha filha, você quer salvar o Papa? Isso será possível se você se casar com o cidadão tal. Você é capaz desse sacrifício?” Ela se chamava Scyntia de Courfontaine. Scyntia é um nome meio grego, meio francês. Imaginação de Claudel, que era um poeta. O nome fica com uma sonoridade lindíssima.

Ele descreve em termos muito bonitos a ligação existente, numa sociedade orgânica, entre o homem e a terra onde mora. É uma vida de organicidade, que vale a pena ler. A descrição do Claudel serve para explicar que há aspectos misteriosos em todas as organicidades. Esbarra-se em coisas tão profundas, que não se sabe explicar bem. Talvez com o tempo nasçam as explicações. Enquanto isso, é preciso conviver com coisas difíceis de explicar, porque é próprio do homem viver ao lado do inexplicável. O verdadeiro cientista vive nisso: é o homem que vai dilatando os limites do explicável, mas sempre se defrontando com a barreira do inexplicável. Nós precisamos ter esse espírito científico (CA, 23/5/1989).

Há algo no espírito humano, talvez um fruto remoto do pecado original, que faz com que, às vezes, perguntas muito simples de se responder parecem uns dinossauros. A questão da organicidade e da saúde de uma sociedade é uma dessas. É difícil entender a organicidade. Mas quando se chega à sua raiz, ela é tão simples que pode causar até desapontamento.

método de reduzir as questões aos seus aspectos mais simples, por onde qualquer um compreende, é excelente, porque é honestidade intelectual. Põe-se a coisa na sua simplicidade, em vez de estar fazendo malabarismos para os outros pensarem que se adivinhou algo extraordinário.

A composição natural do convívio

Em um livro, creio que do Júlio Verne, um pedaço de território do Alaska se deslocou por causa das correntes, por causas meteorológicas, e começou a vagar pelo Pacífico, constituindo uma ilha flutuante. Os que ali se encontravam, um certo número de famílias, tinham lugar onde morar, comida, bebida, peixe, água etc. Imaginemos que essas pessoas tivessem muitos pontos de afinidade — por exemplo, podemos supor que fossem contra-revolucionários — mas também muitos pontos de discrepância. As idades, os países de origem, os modos de ser, de ver as coisas etc., são diferentes. As diferenças constituiriam castelos ao lado de toda a homogeneidade da fé católica, das convicções etc.

O que há de orgânico nisso? Está na natureza do homem que ele tenha convicções, é um estado saudável, natural. A plenitude da saúde da alma consiste em que tenha fé, e eles a teriam nesse estado excelente, que é o de serem contra-revolucionários. Não teriam a fé poluída e tisnada pela Revolução. Mas teriam outra condição de alma que é saudável também, de outra natureza. É que cada um tem sua própria personalidademuito diferente da dos outros. Porém, não só por causa dos defeitos de cada um, mas por características próprias que não afinam entre si, fruto do pecado original e da confusão da Torre de Babel, eles teriam pontos de divergência entre si.

Acontece que na ilha, evidentemente, não havia governo. Eles estariam agindo livremente, apenas dentro do dever. A contingência, a situação concreta, obrigaria apenas àquilo que a Fé, a Esperança e a Caridade obrigam. Ou seja, manter boas relações para evitar que o convívio se tornasse insuportável. Mesmo assim os atritos nasceriam e teriam dificuldades em se resolver, por causa não só da oposição dos defeitos, mas também da diferença das qualidades. Por exemplo, um é noctívago, gostando muito de trabalhar à noite, de estar acordado, de estudar à noite etc. Portanto, não sendo grande amigo das manhãs nem das madrugadas e dormindo até tarde. À noite, quando todos fossem dormir, ele teria liberdade de espírito para fazer um trabalho intelectual difícil, que não conseguiria pela manhã. Mas ele tem que compreender que outro pode ser diferente, e é quando trabalha na aurora que se sente inspirado. Aquela natureza toda que acorda lhe dá alegria.

Mas vamos dizer que os dois tenham que fazer um trabalho juntos, para encher o tempo dentro da ilha. Eles teriam dificuldade para conciliar os horários. Como dois bons companheiros, cada um cede: um mês é de dormir tarde, outro mês é de dormir cedo. Mas é inevitável que o que esteja no mês do outro seja tentado a dizer: “Eu estou com dor de cabeça, porque quando me levanto cedo eu me sinto mal. Faço isso para ele gozar essa aurora que a mim não diz nada, e agora vou sofrer durante um mês por causa dele”. Quando chegar a vez de dormir tarde, será a vez de o outro ficar incomodado. É inevitável, e cria dificuldades. Há toda espécie de outras dificuldades. De repente um tem uma alegria que o outro acha sem razão de ser. Conta um fato alegre, o outro não partilha, e ele fica com birra. Assim, mil misérias.

Mas se todos têm alguma virtude, acabam se habituando aos modos de ser dos outros, e encontrando certos modos de convívio não doloridosNasce daí um convívio — note-se bem — artificial, que resulta de uma composição orgânica depois de fricções, de dificuldades etc. Aquelas personalidades, no que têm de vivo, de próprio, acabam se compondo e se ajustando, quando há virtude; quando não há, podem chegar até o assassinato.

Então há esse primeiro ponto de acomodação.

No segundo ponto de acomodação, acabam percebendo que nas outras pessoas as qualidades são maiores do que os defeitos. Adquirem um gosto de analisar essas qualidades, de se dar conta delas, e nasce a simpatia.

Sobre isso vem um terceiro elemento: é o hábito do convívio. De maneira tal que, se tivessem de viver com outros, já estranhariam.

Uma bela noite, quando todos estivessem dormindo, a ilha encostaria em terra. Quando acordassem, veriam casas, povo na costa vendo chegar a ilha, admirados: “Que coisa extraordinária é isso?” Então eles desceriam. O ideal seria que, depois disso, combinassem de não se separarem mais, constituíssem uma roda de amigos para continuar esse convívio etc.

Agir segundo a reta natureza, rumo ao convívio perfeito

O descrito é o exemplo imaginário do que seria organicamente um convíviocom as suas dificuldades e acomodações, que levam a natureza a adaptar a sua espontaneidade a certas circunstâncias, de maneira a se habituar a fazer as coisas de acordo com uma determinada regra. Isto cria a simpatia, cria um hábitoOrganicamente, cria-se uma situação privilegiada.

O que se entende aqui como orgânicoA organicidade consiste em agir de acordo com a retidão da própria natureza, e não de acordo com qualquer impulso da mesma. Agindo com retidão, a pessoa tem a possibilidade de se corrigir, de ajudar o outro a se corrigir, formando então hábitos de convívio. Isto é orgânico, porque é um reto proceder de acordo com o que a natureza pede.

A condição humana exige que os homens convivam entre si, ainda que a natureza, nos seus defeitos, coloque obstáculos a essa convivência. Para evitar que esse convívio se transforme num inferno, ele deve ser feito de acordo com a reta natureza.

Daí nasce naturalmente o resto: a amizade, a uniãoque é a perfeição do convívio humanoMas nasce da natureza educada, dominada, adaptada. Não torcida, não deformada, mas orientada para um determinado ponto e para uma determinada perfeição, que é a dela própria.

Organicidade é o mesmo que espontaneidade?

Em alguns pontos, é: quando a espontaneidade no homem é boa e normal. Não o é quando a espontaneidade é má, quando precisa ser retificada. A organicidade comporta uma certa pressão e uma certa direção em conformidade com a natureza, até mesmo quando esta é defeituosa, e chegando ao ponto normal dela.

Imaginemos um homem que tenha um pé torto, anatomicamente mal construído. Esse pé tende, por sua natureza, a pisar de maneira a não permitir boa locomoção. Mas tem boa musculatura, boa força etc. Seria errado esse homem dizer: “O bem do meu pé está na espontaneidade; portanto eu vou mancando, e não vou usar um aparelho para andar bem”. Agindo assim ele deforma o pé e agrava seu estado, podendo chegar a torná-lo fora de uso. O certo é ir a um ortopedista, que indica um aparelho, um sapato, uma coisa qualquer por onde ele é obrigado a aplicar o pé num certo modo. Assim ele conserva o pé, que lhe presta melhores serviços, e pode ser que ao cabo de algum tempo o pé esteja curado.

Assim é o homemEm consequência do pecado original, ele é ortopsiquicamente torto. Não que seja gagá — muitos o são —, mas é ruim e quer coisas que não deve querer. Não existe homem que não seja assim, mas se põe um sapato ortopédico, se toma providências para consertar-se, ele está no auge da organicidade em relação àquele defeito. A organicidade, portanto, não é a espontaneidade inteira, mas toda quota possível de espontaneidade somada com toda quota necessária de ordenação, às vezes dolorida, pedida pela própria naturezaNão é o contrário da natureza. A natureza dele pede aquilo, e então usa aquilo. O que decorre do hábito dessa espontaneidade dirigida é que ele acaba se habituando, e anda bem.

Por cima disso há um conceito. É o conceito de bem e de mal. Qual é o critério de diferenciação entre o bem e o mal? Concretamente, são os Mandamentos da Lei de Deus, é a doutrina ensinada pela Igreja Católica. Este é o bem. Quem faz aquilo anda direito, se vence e tem o auge da organicidade.

A Igreja Católica não existe só para endireitar o pé quando está torto. Ela dá vitalidade ao organismo inteiro. A alma toda, no que ela tem de bom, de reto, de saudável, fica tonificada. A comparação do sapato ortopédico é pobre, porque se deve imaginar um sapato ortopédico que não endireita o pé, mas dá saúde para todo o corpo e prolonga a vida. Quer dizer, tudo quanto é bom é estimulado, e o que é torto é endireitado. Este é o efeito da Igreja Católica sobre as almas e, portanto, sobre a sociedade orgânica, sobre um grupo de pessoas.

Nós fomos formados numa ideia a respeito do papel do clero, pela qual se diria que, tendo um bom clero, a Igreja teria absolutamente tudo quanto é necessário para exercer a sua missão. E que o laicato daria, complementarmente, uma certa ajuda, mas não seria necessário porque o bom clero resolveria tudo. Esta é uma noção errada que, de algum modo, entra em choque com a organicidade. Porque um corolário do princípio da organicidade é que todos devem progredir e colaborar para o progresso dos outros. Nesta função ordenativa e criativa da organicidade ninguém fica de fora.

A Igreja Católica se compõe também do laicato. Se alguém dissesse que a Igreja militante é composta só do clero, diria algo que não corresponde à realidade. A Igreja militante é composta pelos clérigos e pelos leigos, e uma vez que os leigos estão na Igreja, eles têm uma função subordinada, discente, mas que não quer dizer de robô. É uma função criadora, nutritiva, que tem certa originalidade sem a qual a Igreja discente seria um organismo que não participaria da vitalidade da Igreja (MNF, 30-09-1993).

Fora da Igreja existem graus de organicidade, por causa de restos de tradição da Igreja que ficam. Um membro da I.O. (igreja “ortodoxa”), um protestante, têm restos disso no meio de deformações, etc. De maneira tal que um puro budista, salvo uma ação especial da graça, não tendo esses restos, está menos privilegiado, menos avantajado.

O que vimos até agora é o ponto de partida da organicidade. Para que isto seja bem vivido, é preciso um exame de consciência honesto e bem feito. Porque se alguém não quer reconhecer que tem o pé torto, nunca irá ao ortopedista. É indispensável, portanto, ter a honestidade de reconhecer seu defeito e a vontade de curá-lo. É indispensável.

Às vezes, por faceirice ou vaidade, as pessoas acham que certos defeitos que têm são pitorescos, porque são uma característica da família. No caso de uma pessoa violenta, haveria então comentários assim: “Ah! Toda a nossa família é muito violenta, mas depois não dá em nada. É um costume muito engraçado”. Ora, isso não tem nada de engraçado. Então é engraçado dar murro nos outros, e depois dizer que é muito engraçado porque a família gosta de dar murro nos outros?… Não tem o direito de ser violento! Quem gosta de bater, apanha!

Outra: “Ele é muito intrigante. Ah, é preciso perdoar! Nossa família é mesmo muito intrigante, gosta de indispor uns contra os outros. É politiqueira, sabe?” Não tem propósito!… Seja direito, não intrigue nada! Os outros veem a intriga e não têm confiança. Quando perceber que não merece confiança, não se queixe!

Isso é um defeito, não é organicidade. Quem tem um defeito precisa olhá-lo de frente. E o fato de ser um defeito do país, da província, da família, não atenua nada. Agrava, porque esses defeitos se multiplicam dentro de um mesmo lugar. Então é necessário corrigir.

De outro lado, deve-se dizer que, influenciado pela Igreja, pela graça, um certo veio da opinião pode constituir-se com bastante fé, bastante unidade, bastante ordem, para ser o elemento orgânico dentro da sociedadePor seu exemplo, por sua ação, pode trazer os outros para a boa organicidade. A ação dos que praticam a fé católica traz uma nação para a sua normalidade originária. Poderemos ver depois que efeito isso produz para a vida comum da nação.

Estabilidade das coisas retamente dispostas segundo a sua natureza e a Fé

Alguém poderia objetar: “Isso não abrange toda a realidade. Está muito bonitinho, porque satisfaz as conveniências da fé católica, da Igreja Católica, mas é unilateral. As nações pagãs que vivem na paz 500 anos, 600 anos, mais ainda — os egípcios antigos, por exemplo — vivem, portanto, na organicidade. São nações que chegaram a um grande grau de prosperidade mundial, e não têm essa ação da Igreja. Não se pode dizer, portanto, que uma sociedade é orgânica devido à Igreja. Outras sociedades chegaram ao fastígio do poder, da sabedoria, da cultura, da riqueza, da inteligência, sem ter a Igreja na raiz. Esse cálculo não está bem feito, é um cálculo de criança devota que foi para o catecismo, se entusiasmou e que quer arranjar as coisas para a Religião. Não é uma coisa séria, e a evidência dos fatos se dirige em rumo contrário”.

Não se deve confundir estabilidade com organicidade. Muitas vezes acontece que alguns — uma família, uma classe, uma província — adquirem sobre outras partes do país um poder tal que leva tudo no rebenque. E sujeitam outros, duravelmente, à resignação de uma paz injusta. Isso não é organicidade. Não se pode dizer, por exemplo, que seja organicidade verdadeira aqueles negros papuas que usam um disco de madeira no lábio, e que podem morrer velhos com aquilo.

Alguém poderia objetar: “Aquilo não é nada de errado contra a natureza. Eles falam e conversam com aquilo, dormem com aquilo, habituaram-se perfeitamente”. De fato, são naturezas que têm algum vigor, e que resistem às condições erradas que lhes são impostas. Mas falam mal, de modo grotesco, exprimem-se como não se deve. Enfim, há toda sorte de inconvenientes naquilo, mas com uma certa estabilidade. A estabilidade, no entanto, não é organicidade.

Existe organicidade quando se tem a reta disposição das coisas da natureza: as boas estimuladas e as más comprimidas; entendendo-se por boas as que são da Igreja Católica. Neste caso, a natureza, estimulada por seu próprio dinamismo, e ainda mais pela graça, dá tudo quanto pode. Os antigos egípcios e os chineses, que tiveram grandes civilizações, não deram tudo quanto podiam.

Só há uma parte do globo da qual se pode dizer que deu mais do que deram os outros povos: é a Cristandade. As nações que foram cristãs tiveram um impulso que o Egito não teve, e poderiam ter ido mais longe se não se tivessem metido com a Revolução. Ninguém tem ideia do que seria a grandeza do Ocidente, se não fosse a Revolução. É inimaginável, literalmente!

Portanto, a grandeza do Egito é uma grandeza relativa, como a da Grécia, de Roma etc. Houve um momento em que um grupo de povos quebrou um certo círculo, que parecia impossível romper. Esses foram os povos católicos, cristãos. Assim, essa argumentação favorável ao Egito pagão fica totalmente refutada.

A herança da sabedoria de Adão

Alguém dirá: “O Sr. está simplificando de novo. Há razões para suspeitar que os egípcios tinham uma ciência prodigiosa, fantástica, e que eles tinham meios de agir extraordinários. Olhe aquelas pedras que eles levavam até o alto das pirâmides”. O Abbé Moreaux, que era diretor do observatório astronômico de Bruges nos anos 20, escreveu o livro “La science mystérieuse des Pharaons”, onde afirma que nenhum dos guindastes do porto de Nova York daquele tempo conseguiria suspender as pedras de topo das pirâmides, e que certos conhecimentos dos egípcios, ninguém mais possuía naquele tempo.

Poder-se-ia levantar a hipótese de que eles possuíam esses conhecimentos por revelação. E a hipótese da revelação é muito cabível, supondo que por essas ou aquelas razões eles tivessem uma série de conhecimentos que teriam vindo de Adão. Pois Adão e Eva sabiam muita coisa revelada por Deus, que eles não tinham inteligência para descobrir por si mesmos. Isso devia constituir, provavelmente, matéria de ensino deles para os filhos, e dos filhos para os netos. Deveria haver uma série de coisas conhecidas por herança, que uns povos conservaram mais, outros menos. Mas que, no total, foi um tesouro que eles aproveitaram.

Alguém dirá: “Eu ainda tenho resistência a isso. Por que essa ideia tão esdrúxula é levantada entusiasticamente pelo Abbé Moreaux, e depois mais ninguém? Não haverá um defeito nessa argumentação, uma falha científica? Vamos aprofundar isso!”

Parece ter sido o Cornélio a Lápide, se não foi outro grande autor, que teve esta reflexão muito curiosa: o homem antigo — não confundir com o homem primitivo, porque o índio não é um homem antigo, é um decadente — conhecia muitas coisas que não se compreende que ele soubesse sem uma revelação. Assim, por exemplo, parece que nos mais antigos vestígios da humanidade os homens conheciam remédios que não teriam podido conhecer por métodos meramente científicos. Como os conheceram? Diz ele que mesmo a culinária dos primeiros homens não se explica, pois tinham um conhecimento a respeito de alimentos que a mera experiência não lhes daria.

Isso se deve a resíduos da revelação antiga que ficaram entre os homens. Disso os egípcios poderiam ter sido muito beneficiados. Para não falar na hipótese de os egípcios terem sido ajudados também pelo demônio. É outra coisa que se pode admitir facilmente.

A organicidade — o plano de Deus sem planejamento humano

Nosso ponto de partida para entender a organicidade perfeita, exata, plena, é que só existe dentro da fé católica.

Alguém dirá: “Essas coisas que se viram na Idade Média não foram planejadas. Foram acontecendo e deram certo. Isso é uma coisa direita?” E eu respondo: é. Todo mundo faz coisas que vão dando certo, e que não percebe. Por exemplo, piscar os olhos. O homem está continuamente irrigando os olhos, mas nem se dá conta.

O próprio da organicidade é exatamente ser superior à reflexão do homem, corresponder ao plano de Deus, e fazer acontecer certas coisas que só depois, pela razão, o homem percebe que eram bem feitas. Tão sábia é a organicidade, que se deve ter respeito à toda espontaneidade que não seja má, pois existe nessa espontaneidade uma sabedoria maior do que a dos maiores sociólogos. O bom, o precioso da organicidade é que ela tem tesouros de reta ordem superiores à compreensão do homem. O importante é saber conhecer a espontaneidade má e combatê-la devidamente, como também no demônio, pois este é o patrono das contra-organicidades.

Aí se compreende que nenhum planejamento inteiro de uma sociedade é bom. A sociedade não deve ser planejada. Devem-se criar condições para evitar o mal. Isto é a primeira função de quem governa. Depois, observar o bem e ver para onde ele tende, e aí ajudá-lo. Não fazer um plano. O plano é apenas em obediência ao curso bom e normal das coisas, para ajudá-lo a ser até mais do que seria sem ajuda.

Neste sentido os contra-revolucionários, que passam tanto por autoritários, são muito amigos dessa liberdade, não da liberdade para o mal. Por isso são visceralmente antissocialistas e antiautoritários. Ponham-se as coisas nos seus eixos e tudo anda bem. A questão é conhecer o eixo e como as coisas se movem nos planos de Deus. Isto seria a noção de organicidade.

A intervenção certa do governo: combater o mal e ajudar o bem a se desenvolver por si mesmo

A intervenção de um governo bom, para corrigir uma sociedade que anda mal, é o contrário do que faz o socialismo. A Contra-Revolução vai procurar o mal que é causador daquelas coisas, e o ataca e elimina: Sagrada Inquisição Contra a Perfídia dos Hereges, Cruzada etc. Pôr as coisas más fora da lei, persegui-las, humilhá-las, negar-lhes todo modo de crescer. Quando o mal está enjaulado, o bem, pela sua própria natureza, tende largamente a andar por si.

A principal tarefa do governo é jugular o mal, e observar o bem para ajudá-lo a se desenvolver. Como o jardineiroSe ele vê pragas numa planta, não vai puxar a planta para fazê-la crescer. Antes ele combate a praga, depois põe na raiz da planta algumas coisas que ele sabe que a natureza da planta pede, que favorecem essa natureza a se refazer dos bichos que estavam lá. Ele é, portanto, o aliado de uma ordem natural que ele conhece, que é a saúde da plantaEste é o governante exato. Observa muito, e estimula na medida em que pode. Mas guia pouco.

O mal nem sempre é morto com pancada. Ele às vezes é tratado com afeto. Embora a pessoa esteja toda agitada, inquieta, é tratada bem. O modo de tratar bondoso, por assim dizer, é “exorcístico”, e a pessoa sai contente, os que estavam perto saem contentes, e quem usou de bondade também sai contente.

É a prova de que não é só espancando que se governa. Havendo uma organicidade muito bem constituída, pode-se chegar até a permitir coisas inauditas, curadas pelo bem. Porque quando a saúde de alma é muito grande o bem pode curar coisas, e a pancada não é necessária.

A observação calma da realidade

Há uma teoria da organicidade que, depois de vista, é muito fácil transpor do circuito das relações individuais para as instituições, para os países etc.

Deve-se ter bem presente que o ponto de partida do método de pensar da Contra-Revolução não é procurar estatísticas e construções na lua, porque assim não se encontra nada. Trata-se da observação comum da vida concreta, que uma cozinheira, um copeiro, um maquinista, se tiverem bom espírito, podem fazer. Deve-se procurar fazer isso, e não procurar ser um gigante: “A biblioteca deve ter os quatro mil melhores livros sobre organicidade que há no mundo”. Não é assim… Não vai conseguir ter quatro mil livros, e além disso causa horror ter que ler quatro mil livros.

Muito despretensiosamente, muito simplesmente, pegue o fato concreto na sua banalidadeanalise, e daí tire o que se diz acima. Isto é a escola da TFP, é orgânico, é a própria organicidade da TFP.

Há uma expressão para dizer quando o sujeito é pouco previdente: “Não enxerga dois dedos adiante do nariz”. Para enxergar longe, precisa começar por enxergar o imediato. O que se deve querer é enxergar o imediato, para depois ver ao longe. Deve-se sempre tomar as coisas assim, esmiuçar e conhecer. Daí se sobe. Isso dá calma, faz-se levemente. Depois disso se pode folhear os quatro mil livros, para ler só o indispensável.

Este é um elemento precioso da escola de pensamento da TFP, vindo do espírito católico. É porque se tem algum espírito católico, graças a Nossa Senhora, que se pensa assim.

A organicidade não é meramente individual. Os homens sentem muito bem que vários tipos de atividade eles não conseguem desenvolver, sem se agruparem formando espontaneamente uma sociedade. Daí vem o número incontável de sociedades e associações que há em qualquer país organizado com um mínimo de liberdade.

Se os senhores forem à Junta Comercial de São Paulo verificar qual é o número de firmas comerciais inscritas lá, e ainda funcionando, verão que o número é enorme. Maior ainda se forem somar todas as associações de outros tipos existentes em São Paulo. Isto porque foram associações constituídas livremente, sem interferência do governo, o qual simplesmente determinou por lei como deveriam estar constituídas, para que tenham responsabilidade perante o Estado: quantos sócios podem ou não podem ter, que poderes mínimos essenciais a diretoria deve ter, umas coisas assim.

Por sua vez, o homem nota que não pode viver sozinho, tem que formar uma família. As famílias constituídas têm que formar um município. Os municípios, têm que formar uma província ou região. As regiões têm que formar um Estado. E os Estados, conforme o caso, devem formar uma federação.

Nas relações todas, o princípio de subsidiariedade se aplica brilhantemente. No que pode fazer por si, a família não deve recorrer ao apoio do município ou do Estado. Se não puder, subsidiariamente entra o município. Por sua vez, o município tem em relação ao Estado um procedimento análogo ao que a família tem com o município. Tudo quanto um município pode fazer para seu bem por si mesmo, não deve pedir apoio ao Estado. Mas se não pode fazer por si o necessário para a subsistência, tem o direito de pedir ao Estado que intervenha, pelo princípio de subsidiariedade, e o Estado tem obrigação de intervir.

Esse é o princípio de subsidiariedade, que dá os limites do poder do Estado. Pergunta-se então: “Mas o Estado, em tese, pode tudo?” Ele poderá tudo no dia em que ninguém puder nada. Mas no dia em que ninguém puder nada, o Estado é impossível, porque com um corpo morto não se faz nada (“Santo do Dia”, 3/8/1994).

 

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