Se alguém quiser cristalizar o brasileiro, basta empregar a brutalidade. Conheça bem o Brasil e seu povo. Caso contrário…

 Auditório São Miguel, sábado, 3 de novembro de 1979 – Santo do Dia

 

A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

Eu já lhes disse que na quarta-feira passada, o João me disse num tom de voz muito blandicioso, muito amável por que não íamos passar [n]a [igreja de Nossa Senhora de] Fátima [no bairro do Sumaré, em São Paulo, n.d.c.], onde há tanto tempo não tínhamos estado.

Ele nunca – até hoje – me fez uma sugestão de um lugar para eu ir. Eu, habitualmente muito decidido, já indico o lugar para onde quero ir, não consulto. E ele sempre amável, muito afável, vai também aceitando a indicação e não propõe nada.

É a primeira vez na minha vida que me passou pela cabeça de consultar onde irmos, de tal maneira eu sou naturalmente decidido: vai para tal lugar, tal outro. E fica-me na cabeça que é o único lugar para onde há para ir é aquele.

Eu estranhei quando o João me deu um conselho, mas assim mesmo não percebi.

“Mas por que Fátima?”

– “Há tempos não vamos”… Ele acrescentou num tom de voz assim dulçuroso: “Também está lá o coro cantando e experimentando o órgão…”

Eu mandei rumar para lá. E quando eu entrei [naquela igreja], dei com meu querido Fernando S. que dirigia lá uma imponente formação, que estavam assim no corredor central da igreja, perto do presbitério, e estava armada para cantar. E meu caro Garcia tocava o órgão, um magnífico órgão muito bem tocado!

Um casal, saído de não sei de que desvãos, escaninhos, de que recantos da cidade, parecendo trazer – é preciso reconhecer – nas roupas encardidas, as poeiras de não sei quantas ruas, não com muitos sinais de banho. Mas ali juntos um do outro. E com ar de intensa admiração, de maneira que eu passei a respeitar esse aspecto de alma do casal verdadeiramente. Uma análise admirativa, não é a admiração abobada de quem olha e não entende, mas é de quem analisa e fica “ravi” [encantado] de encontrar aquilo que esperava – acompanhava todos os vai-e-vem, o movimento etc., mas acompanhavam tudo o que tinha acontecido, o que ele aquele trouxe, o que  falou… Eles estavam procurando ouvir a música, quer dizer, a canção e também a execução do órgão, mas eles estavam querendo ver um mundo que eles percebiam que havia ali dentro.

Eu de tal maneira gostei do que estava sendo cantado e executado, e de tal maneira eu gostei das sonoridades daquilo naquela igreja vazia, onde se notava, entretanto, a sacrossantíssima Presença do Santíssimo Sacramento, que nem sei o que dizer. E fui embora porque era obrigado a ir embora. Mas obrigado! Fora disso eu teria ficado eu não sei quanto tempo ali ouvindo…

A certa altura… eu, ao mesmo tempo, era obrigado a pôr em dia as minhas orações porque eu não teria outro tempo para rezar, de maneira que tinha que rezar naquele tempo, estava acabado. Enquanto eu rezava, uma ideia ou outra passava pela cabeça. E, à certa altura, exatamente eu pensei: isto aqui me agrada tanto, de tal maneira realiza o de que eu gosto, e nessa linha e nesse ponto o que eu queria, o com que sonhei, que parece até um sonho de criança realizado no extremo da idade já anciã. Mas feliz da ancianidade que encontra no seu ponto terminal um sonho de criança que se realizou! Evidentemente!

E eu me perguntava o que tinha isso de comum com a questão que eu tinha posto ao joão no trajeto de casa para cá e que era o seguinte: João, qual é o tema de hoje à noite?

E ele me respondeu, como os srs. conhecem, que era para eu falar a respeito da inocência do brasileiro, como era a luz primordial brasileira.

É preciso começar por dizer aí o que quer dizer exatamente o brasileiro, para ver até que ponto aquela ideia confere ou não confere.

Mas ainda aqui é preciso especificar dois pontos: em primeiro lugar eram brasileiros, mas brasileiros católicos, apostólicos, romanos. E como todo bom brasileiro, ou todo bom turco, ou todo bom afegão, ou de qualquer lugar do mundo, quando é verdadeiramente católico, chega ao mais característico de sua pátria, quando ele é inteiramente católico. Porque isso que é o próprio da religião católica. A religião católica faz, com os caracteres nacionais de cada um, o que o verniz faz com a madeira.

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Olhem para o chão: um conhecedor poderia dizer de que isso é madeira feita este chão; tenham em vista – talvez seja mais bonito – o chão da sala dos Alardos na Sede do Reino de Maria. É inegavelmente mais bonito do que este. Tenham em vista aquele chão.

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Aquele chão é feito com madeiras brasileiras; e, sobretudo, creio que os senhores sabem, o thau [que parece uma pequena cruz, n.d.c.] do leão é feito de pau-Brasil — o famoso pau-Brasil que deu nome ao Brasil, eu quis que o thau fosse feito desse pau-brasil. Não foi fácil encontrar e o Dr. Eduardo mandou — com os mil cuidados artísticos dele — polir e instalar ali, de propósito. Quer dizer, é o Brasil feito thau e colocado no coração de um leão. Eu quis que fosse assim; isto tem um sentido e o sentido é esse.

Olhem o papel do verniz na madeira. É muito diferente uma madeira envernizada da mesma madeira não envernizada. É também muito diferente o verniz, quando está no balde para ser passado, e depois de passado na madeira. Ninguém, conhecendo só a madeira ou conhecendo só o verniz, poderia imaginar que a madeira envernizada fosse tão bonita. Nem que a madeira ficasse tão bonita com o verniz, e nem que o verniz ficasse tão bonito em cima da madeira.

Assim também se dá com a religião católica. Nós devemos conceber a religião católica como ela é, quer dizer, irradiando de seu foco, que é a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana – mas a religião católica é feita para ser vivida entre os homens; e os homens, por sua natureza, são agrupados em nações, formam nações.

E por causa disso, o líquido sagrado da Igreja Católica passado sobre a madeira que é a alma de cada nação, produz o papel do verniz na madeira. E a madeira fica com todas as suas características e com toda a sua beleza, depois de envernizada. O pau-brasil só é inteiramente pau-brasil depois de envernizado.

Essa madeira aí no chão — olhem para ela — ela foi feita para ser envernizada. Ela não teria sua fisionomia se não fosse o verniz. Muito brasileiramente, os senhores não olham para o verniz e olham para quem está falando. É ultra brasileiro isso…

Aqui, se esta madeira não estivesse encerada, essa madeira não teria sua fisionomia. É uma coisa que Deus criou para uso do homem capaz de inventar vernizes e de fabricá-los e de imaginar para a madeira uma forma de beleza que Deus queria que o homem encontrasse e que o homem, então, temperou o verniz, pôs em cima da madeira. E deveria dar o que daria.

Então, ninguém pode elogiar, por exemplo, o madeirame da Sala do Reino de Maria sem elogiar o verniz e dizer que está elogiando madeira envernizada. E cada madeira mostra aquilo em que ela  é diferente das outras, cada madeira realiza, por assim dizer, a sua própria fisionomia inteiramente no momento em que está envernizada.

Assim, e tal qual, é a religião católica com as várias nações.

Se os senhores quiserem imaginar o espanhol espanholíssimo, o francês francesíssimo, o italiano italianíssimo, o alemão alemãosíssimo, o austríaco austriasíssimo, o turco turquíssimo, o chinês chinesíssimo, ou – meus nisseis — o japonês japonesíssimo, pensem não nos grandes homens pagãos que podem ter nascido em seus países antes ou depois da cristianização, mas pensem nos católicos que esse país deuPorque aí é que o país aparece com toda a sua fisionomia. E aquela índole que é própria à raça, que é própria à história, que é própria à cultura, que é própria ao panorama, só toma verdadeiramente sua autenticidade inteira depois de batizado. Ali é que ele fica verdadeiramente completo.

Aquela mãe era católica, apostólica, romana, pela graça de Deus; e fez de seu filho, pela graça de Deus, um católico apostólico romano. Não um Brasil a ser visto naturalmente, mas um Brasil católico, um Brasil envernizado. É desse Brasil que devemos falar.

Essa é uma primeira observação que eu tenho que pôr em realce. A segunda observção é a seguinte: o que é o Brasil? Onde vamos encontrar o Brasil verdadeiramente brasileiro?

Eu creio que já uma vez fiz uma pergunta aqui, neste auditório e creio que foi numa reunião de sábado à noite, mas eu não me lembro; talvez fosse numa reunião de dia de semana e, portanto, com uma parte dos Srs. e com outros presentes, que levantassem o braço — talvez valesse a pena fazer uma experiência aqui – levantassem o braço aqueles presentes no auditório que têm certeza que, pelo menos até o trisavô, não tenha sangue senão brasileiro. Os que tem certeza de que pelo menos até o trisavô só tenha sangue brasileiro. Não sei se está claro.

Aqueles que tenham certeza de que pelo menos até o trisavô, portanto, até o pai do bisavô só tem sangue brasileiro – mais para trás a gente não sabe; eu mesmo não tenho certeza se não tenho um antepassado da guerra holandesa — o que têm certeza disso nesse auditório, levantem o braço.

Doze… Preciso dizer que os que tenham sangue português podem levantar o braço também. Meu Eurico! Onde está seu braço?… Dá mais ou menos uns vinte numa sala que no momento deve estar contando umas 230, 250 pessoas.

Então, os senhores estão vendo, 10% é feito de brasileiros “en su tinta” [autênticos]. O resto são brasileiros com algumas proporções de sangue não brasileiro.

Agora levantem agora o braço aqueles que não tem uma gota de sangue brasileiro. Obrigado.

Se é assim, o que é o Brasil? Porque é uma pergunta.

Os senhores notem: nós estamos conversando de um modo que eu tento tornar agradável, mas nós estamos conversando e eu estou procedendo metodicamente.

Estou dando os termos da questão antes de entrar na definição. Quer dizer, eu primeiro afastei o que não queria; agora estou pondo no certo o que eu quero e estou pondo o problema. Quer dizer, o método é metódico como se fosse uma conferência “ploc-ploc” [de espírito geométrico]. Eu procuro disfarçar o “ploc-ploc” pondo algum ornato na gravidade. Mas de fato, é uma conferência ao pé da letra que estou dando.

Então, eu comecei a mostrar um ingrediente que se deve pôr, o brasileiro em todo seu aspecto é católico — então, entram dois fatores para a brasilidade. Agora estou mostrando uma dificuldade: a brasilidade é algo por onde todos os senhores se sentem unidos e sentem-se filhos da mesma pátria os que nasceram neste solo.

De outro lado, é verdade que a grande maioria tem uma porção de sangues que não são o sangue do Brasil originário, do Brasil quando era inteira e exclusivamente brasileiro. E entretanto, os senhores se consideram e são efetivamente brasileiros. O que é ser brasileiro? É a pergunta.

A pergunta dá no seguinte ponto fundamental: o que é que tem essa minoria de dez por cento por onde ela dá a nota na maioria inteira? Que direito tem essa minoria de 10% de dizer que isso é Brasil, quando há tão pouca coisa brasileira aqui presente? Ora, não deixa de ser verdade que isso é Brasil. Então aparece o problema: o que é Brasil?

Assim localizado o problema para definir, eu devo encaixar o assunto como ele se apresenta a nós nesta sala, dentro de um aspecto mais vasto: se aqui em São Paulo, cidade de imigração, e na TFP, organização nacional e que atrai, portanto, brasileiros de vários Estados para virem morar aqui; e católicos de vários países para virem passar temporadas aqui ou para virem residir aqui; é portanto um centro de atração que não representa o Brasil; São Paulo e a TFP são cada um lá a seu título mais cosmopolitas que o Brasil — é fora de dúvida que há zonas do Brasil intensamente brasileiras ainda: o Nordeste, por exemplo; Minas Gerais por exemplo; Goiás, Mato Grosso, o Norte quase não têm imigração.

Já o Rio de Janeiro é muito mais cosmopolita. Já o sul, à medida que a gente sai de São Paulo, o fator alemão vai preponderando; no Rio Grande do Sul encontra-se um fator italiano muito considerável — a imigração italiana é grande também — e um tipo de brasileiro sobre cuja pele já sopram os ventos dos Pampas. E o gaúcho brasileiro é ligeiramente espanholado; nas maneiras, no jeito, etc., ele é ligeiramente argentinoso, e portanto, toca um tanto já nos mundos hispânicos. Isso é fora de dúvida.

Quantas vezes, estando em Porto Alegre, eu me comprazia em olhar pela janela o movimento da rua e via como as pessoas se encontravam e conversavam. Por exemplo, naquele tempo —  há vinte anos atrás; hoje tudo se internacionalizou — eu estava num hotel em Belo Horizonte. O melhor hotel de Belo Horizonte naquele tempo era o hotel “Normandie”, e ver os mineiros se encontrarem para se cumprimentar; — estar no Rio Grande do Sul, e ver os gaúchos se cumprimentarem e analisar o teor de alma que ia nisso, era completamente diferente.

Os mineiros se encontrando, visavam a amizade, mas a discreção, e não chamar a atenção. O encontro era pouco teatral, da mão que aperta a mão, tom de voz baixo, cordial, “como vai passando”; também, se tiver um pouquinho de política para fazer já sai ali mesmo…

O gaúcho, não: quando se encontrava de longe: “óooo, caro amigo!” Já vinha falando de longe com os braços abertos, abraçando-se de ressoarem os tórax respectivos. Já é o estilo argentino no que tem de pomposo e manifestativo; e que não é o estilo do mineiro de nenhum modo.

Então, dentro de todas essas diferenciações há, entretanto, uma coisa que pesa, que modifica um tanto o panorama desta sala: o Brasil não é só isso que está aqui, mas o Brasil é isto que está aqui, e mais essas imensidades homogeneamente brasileiras, que vivem conosco no mesmo país. São parcelas do mesmo país, e ajudam a bater o spray da brasilidade sobre esse cosmopolitismo; e dão um alento aos 10% de brasileiros que estão aqui. Quer dizer, os nossos nordestinos nos escoram, a nós paulistas puros de puro estilo, nos escoram pela sua simples presença no Nordeste, para a nota brasileira aqui ser mais tônica e mais forte. Nossos vizinhos mineiros e fluminenses etc.

Agora, por cima disso há uma outra característica — e aqui eu começo a penetrar no fundo da realidade. É que faz parte da alma do brasileiro — e depois se me lembrarem eu mostrarei aos senhores que faz parte da inocência do brasileiro, uma coisa que eu não tenho visto comentar, mas que eu acho muito característica. Eu já tenho [ouvido] dizer muitas vezes que o brasileiro tem a mania da imitação, e que de bom grado imita o que fazem fora; que vive com os olhos postos no que se fez fora e imita. E isso tem sua boa parcela de verdade.

Mas eu não tenho [ouvido] dizer outra coisa: é que o brasileiro faz um intercâmbio; ele imita, e ao mesmo tempo que imita, ele recebe uma influência e dá outraE ele amolda aquele com quem ele entra em contatode maneira que o que entra em contato se deixa embrasileirar sem perceber. E que ele, ao mesmo tempo que recebe, arranja um jeito de dar. E o que ele dá, ele tem tanto gosto em imitar quanto em influenciar; e o que ele dá é uma coisa que penetra na alma mais profundamente talvez, ou pelo menos tão profundamente quanto aquilo que ele recebe.

A brasilidade se faz, portanto, de uma prodigiosa capacidade de intercambiar, de permutar, de influenciar e de receber influência. Isso é um elemento fundamental da brasilidade.

Essa capacidade, que exercemos subconscientemente — a tal ponto que eu não a vejo quase elogiada ou referida por ninguém, não me lembro de ter visto referida por ninguém — corresponde, de um modo providencial, às circunstâncias de nosso território.

Um território enorme, que a pura estirpe descendente de Portugal não chegaria a encher, a não ser dentro de séculos e séculos.

Ora, quando o rei da Espanha e o rei de Portugal fizeram o tratado de Tordesilhas, aprovado pela Santa Sé, o rei da França, Francisco I, tomou conhecimento e deu uma risada. E disse — era um dito “fassur” dele, meu bom Guillaume que estou vendo aí, “du Roi” – que não deixa de ter seu espírito, e como toda coisa “fassura” bem feita, [tem] seu pedacinho de verdade que serve de calço para o erro. Ele disse o seguinte: “Eu não conheço a cláusula do testamento de Adão dando a metade do Mundo Novo para o rei de Portugal e a outra metade para o rei da Espanha”…

Era fassur porque a Santa Sé tinha aprovado, e há uma cláusula do testamento de Nosso Senhor Jesus Cristo, selada com o Sangue d´Ele de que o que o Papa faz não se desfaz. E que Nosso Senhor Jesus Cristo é Homem-Deus e Rei do mundo e que o Vigário d´Ele faz, está feito, não tem conversa.

Os dois reis combinaram — e o ato era lindo: “o mundo está vazio, nós descobrimos; como irmãos, dividamos entre nós o bolo. Santo Padre, abençoai a divisão, porque isso foi criado por Deus para quem descobrisse”. E é verdade.

Por que é que um pecador, quando chega no mar, pesca um peixe e fica dono? Porque foi criado por Deus para o primeiro que pegar. É tão simples… E nenhum de nós vai dizer para o pescador que não conhece a cláusula do testamento de Adão pela qual ele diz que esse pescador era dono do peixe. O peixe foi criado para quem o pegasse.

Então, também o Brasil foi descoberto pelo nosso bom Pedro Álvares Cabral, ficou português. E o resto foi descoberto por “N” Pizzarros e Cortezes, Colombos etc., a mando do rei da Espanha, e ficou espanhol. Está acabado. E o Papa abençoou. Quer dizer, esse dito do rei da França era um dito meio fassur e que revelava o desejo de logo que ele se desentalasse das guerras com a Alemanha, deitar o anzol do lado de cá. E, aliás, fizeram. Tentaram pôr o anzol aqui, em São Luís do Maranhão, no Rio de Janeiro. Mais tarde conquistaram pelo sorriso muito mais do que tentaram conquistar em vão, pelas armas. Não conquistaram nenhum pedaço do Brasil, mas conquistaram pedaços mentais do Brasil inteiro, o que valeu muito mais.

Tanto mais que os franceses que vieram para cá eram protestantes e calvinistas. Não os de São Luís, mas os do Rio. Então, os senhores estão vendo minhas reticências, para dizer muito pouco…

O fato concreto é que era bom, portanto, que o povo que viesse se estabelecer aqui fosse um povo organizador do local e o que desse as notas primeiras; que desse o leitmotiv de onde a música do país prosseguiria. Mas que depois, todos os povos da terra fossem fraternalmente convidados a vir habitar aqui, com a condição de continuarem o leitmotiv e de continuarem na linha primeira. Era a condição da hospitalidade: “Venha, para ser dos nossos. Não venha para ser algo de heterogêneo. Traga suas riquezas, traga suas características, estamos dispostos a receber, e com que simpatia, e com que boa vontade. Com uma condição: nós também temos o que dar. Receba.”

Creio que não há um aqui que não julgue isso altamente equitativo. Coisa tipicamente brasileira, eu nessa sala acho que para todo mundo isso é tão evidente, que não estou notando uma só pessoa que esteja com a fisionomia de estar em desacordo comigo. Pelo contrário, estão de acordo, nadando.

Mas não é só porque eu estou dizendo e estão concordando, mas é porque eu, antes de dizer, já sabiam; estou explicitando uma coisa que tinha sentido. Não estou ensinando uma coisa inteiramente nova, estou fazendo uma coisa melhor do que ensinar uma coisa inteiramente nova: é tomar uma coisa já vislumbrada e trazê-la toda à sua luz. Explicitar é o principal meio de formar e ensinar para quem sabe o que é a virtude da inocência e como opera a inocência.

Então, eu estou ajudando os senhores a explicitarem uma idéia que os senhores tinham do Brasil.

Duas explicitações: eu estou ensinando os brasileiros a se compreenderem face à imigração; eu estou ensinando aos filhos de imigrantes a se compreenderem face ao Brasil, a sentirem-se influenciados e querer sentir-se influenciados. Estou ensinando aos visitantes, os que estão morando, para alegria nossa no Brasil por tempo indeterminado, estou ensinando como fazer essa operação de estar no Brasil por um tempo indeterminado.

E em todos – e isso é que é tipicamente brasileiro o que vou dizer agora – subconscientemente isso já estava acertado… Isso não é proposto como contrato a ninguém. Não é um pacto explícito. É um modo de ser implícito; tão implícito, que eu creio que os senhores não saberiam dizer se eu não dissesse. E eu levei tempo para perceber. Até chegar a explicitar, levei tempo. Por exemplo, antes de eu viajar à Europa várias vezes, eu não tinha chegado a explicitar isso. Foi só depois que eu cheguei a explicitar isso bem.

Então, os senhores têm diante de si, como ponto de partida da inocência desse povo, como ponto de partida da história mental desse povo, essa característica que, aliás, tem toda espécie de raízes na psicologia portuguesa — daqui a pouco direi uma palavra sobre isso, mesmo com risco de demorar demais, porque o assunto tem de ser bem tratado, não vale a pena tratar “a la flou-flou”; se é para falar vamos falar direito — quer dizer, tudo isso é nascido de Portugal, e nós nos alegramos que seja nascido de Portugal. Nós olhamos para Torre de Belém e encontramos ali nossas ressonâncias e consonâncias.

Então, está em nós fazermos tudo isso sem percebermos muito e sem a outra parte perceber muito também. Fazer sem explicitar demais, porque a era das explicitações nasceria mais tarde quando as coisas já começassem a tomar sua fisionomia. E as coisas que a gente faz à maneira de negócio e de contrato nunca são feitas tão profundamente, nesse terreno, como quando são feitas sem perceber de parte a parte. Este é um ponto muito importante!

Está então aqui um traço dos brasileiros: essa intercambiabilidade cujo fundo vou dar daqui a pouco; e também essa tendência a só explicitar na hora exata, quando as coisas têm uma necessidade e quando devem ser explicitadas. Não ter a febre de explicitar tudo, mas ir agindo com certa calma.

Aqui vem outro traço do brasileiro: o brasileiro por mais que tenha sangues vários – eu considero o negro autenticamente brasileiro e, portanto, o mestiço de negro autenticamente brasileiro; o índio, autenticamente brasileiro; portanto, quem descende de índio é autenticamente brasileiro; e tem sangues, portanto — não há outro modo de dizer… quem vive na selva, impregnado pela selva, diz a etimologia que é selvagem… são as condições da língua. Selvagem vem de selva; e quem provém proximamente de populações habituadas a viver exclusivamente na selva, não há como dizer: daquém ou além mar, é selvagem.

Eu descendo de índios, quer do lado paterno, quer do lado materno. Não excluo a possibilidade de ter algum sangue negro. Porque no Brasil ninguém tem a certeza – a não ser Dom Bertrand, uma coisa assim — de não ter alguma dose de sangue negro. Não excluo essa possibilidade. Não conheço, mas não excluo, nem vejo razão para me preocupar. Se for, é. De repente alguém me apresentar: “Esse negro, ou essa negra foi seu quinto avô”. Está bom, eu ponho na galeria. Por quê? Porque eu sou brasileiro. Pronto, acabou, é assim e não é de outro jeito, acabou-se.

Eu dizia então que é uma característica do selvagem ser agressivo. Esse povo, que tem raízes selvagens tão próximas, em alguns de seus filões, é, entretanto, um povo que não se brutaliza, que detesta a brutalidade, que não tem trato bruto consigo nem com os outrose que quando vê ou sente o trato bruto, fica chocado.

De maneira que se alguém quiser cristalizar um brasileiro, é empregar a brutalidade. O brasileiro é suave como uma gota de azeite; ele é manso. Brutalizem, que dá “nó” [incompatibilidade]. E dando “nó”, ninguém sabe até onde a coisa pode ir. O segredo é não dar “nó”. Se vier com “nó”, está perdida a partida! Não adianta de nada…

Então, os brasileiros gostando de não brutalizar; eles não se brutalizam, o trato deles é suave, o trato é manso, é cordial. Entretanto, eu me lembro uma canção nordestina, que um antigo cooperador nosso, cearense, cantava, e que era um negócio do pé da cajarana.

Cajarana deve ser uma árvore qualquer do nordeste. Então, era a história do caipira que dizia para outro: “Não tire o meu boizinho de junto do pé da cajarana. E o outro queria tirar o boi. O caipira vai zangando e, no fim ele pula em cima do outro porque queria tirar boi do pé da cajarana. Veio com brutalidade, afia o facão e lá vai.

Quer dizer, não entre em contramão porque enguiça tudo. Tem mão: entre, circule por onde quiser, porque tem mão. Mas não se meta na contra-mão, porque aí… é como pentear o cabelo do lado errado. Dá tudo, sai tudo, não sei o que pode dar. Tome cuidado.

Qual é a raiz portuguesa disso? Vejam o modo do colonialismo português. No século XIX se considerava que império colonial era o britânico. O império colonial português não era um império, era uma meia dúzia de colônias, e dava impressão de um colonialismo podre, de nação decadente. Porque a Inglaterra tinha bancos, igrejas protestantes e políticos e militares acocorados em todas as colônias, em pontos estratégicos e fazendo comércio. Se saísse encrenca, dava tiro. Então, a garra do leão britânico colocada sobre uma coisa, e segura e está acabado. O império é sólido? É, por quê? Porque o leão é sólido. Então o império é sólido.

Olhem para a monarquia portuguesa, e depois para a república portuguesa. Aquelas colônias patriarcalmente tocadas por uns governadores que eram mandados para lá, e que ninguém sabia bem o que faziam ou não faziam; aquilo crescia, cada colônia crescia como uma flor ou uma couve-flor…

Foi só o leão abrir a garra, que as colônias [inglesas] se tornaram independentes. As colônias portuguesas, se não fosse a invasão russa, não se tornavam independentes, porque os colonizados amavam os colonizadorese praticamente as colônias portuguesas não se tornaram independentes por esforço próprio, elas se tornaram independentes porque os russos intervieram e impuseram com a colaboração de todos os poderes que os senhores conhecem. Do contrário, continuavam.

Por quê? A colonização portuguesa feita à maneira da ação do Brasil sobre os que não são brasileiros. Isso fizeram os portugueses com os africanos, fizeram com os hindus, fizeram em Macau, por toda parte.

Quer dizer, essa penetração, o imperialismo do azeite. Penetra como o azeite numa folha de papel. Deita a gota, o azeite não rasga a folha de papel, não dilacera, nem nada. Torna-a apenas transparente e se estende em toda a sua capacidade de entrar. E está acabado. Esse era o colonialismo de Portugal.

No fundo, qual era o colonialismo mais forte? Não era o do leão, era o do azeite. É o fato! Não adianta fantasiar… É o fato!

Os senhores dirão: Dr. Plinio, e o Brasil? Se é assim, por que o Brasil ficou independente? Por que não ficou ligado a Portugal?

Eu só digo uma coisa: mais de cem anos depois da independência, 150 anos mais ou menos depois, o Brasil restabelece uma situação em que o cidadão português tem todos os direitos do cidadão brasileiro, e o cidadão brasileiro tem todos os direitos do português. É uma coisa que, provavelmente, os que proclamaram a independência, não entenderiam.

Quer dizer, ficou por cima das brigas da independência – algumas delas, os senhores sabem, variadas em suas origens – por cima das brigas da independência ficou um senso de união tal que a gente tem impressão de que, com o tempo a gente vai aumentando e não vai diminuindo. E eu creio que não há, no mundo inteiro, uma ex-colônia tão amiga da ex-metrópole, como Portugal e Brasil.

É o dom dessa intercomunicação. É um modo especial de fazer as coisas, de ser, de arranjar. É um estilo.

Esse estilo provém do que eu creio ter dito aos senhores, há dias atrás, não sei se disse aqui, se numa roda: os senhores olham os outros povos do mundo, eles têm a tendência — vou ser bem franco — e eu só percebi isso viajando na Europa. Eu me lembro que outro dia falava com o meu caro Andreas a respeito deste ponto. Vou dar bem os nomes, a coisa como é: tome aqui o Brasil – mas eu compreendi só viajando na Europa – e tomem três estrangeiros aqui — e olhem que já me soa um pouco duro usar a palavra “estrangeiro” para eles, e talvez eles sentindo-se tratar como estrangeiros, se sintam um pouco empurrados com a mão, o que não é nem um pouco minha intenção.

Tomem três estrangeiros: o sr. Zayas, o sr. Andreas e o sr. Guillaume — eu não falo dos italianos e hispanos porque é tal a semelhança, que isto se dissolve. Eu disse a ele [Andreas]: o senhor deve ter ouvido comentário sobre o sr. Zayas e sr. Guillaume. Cada um representa o seu próprio país. A gente acha interessante, comenta como é característico. Quando o sr. não está presente, comentam também o senhor, austríaco, como é, como não é etc.

A gente fica contente. Nota as qualidades, realça etc., veja como é etc.  E no realçar, pela pura alegria de que o outro é assim — agora vem a característica nacional — algo a gente assimila.

Essa alegria tem algo de assimilativo, algo que entra; e que faz com que aquilo que a gente admira, entra, penetra. E já que por último meus olhos tocaram no Zayas, eu dou o exemplo com ele. Muito brasileiro terá ficado menos mole tratando com o Zayas. Porque eles olham e sentem que o Zayas é diferente do sentimentalismo brasileiro. Garanto que fizeram esse cálculo: ahh, uhm bom. De vez em quando levam uma estocada, regimbam… Já tenho visto regimbarem, mas percebem que ele não liga; os senhores já viram a cena, continua o jeitão dele.

Depois, na reflexão, uma reflexão subconsciente: “aquilo está bem sacado, algo disso eu vou fazer”. No primeiro aperto, sai uma reação meio espanholada de um brasileiro, porque ele viu o Zayas reagir. Quer dizer, assimila.

E enquanto eu diria que o nosso Zayas fica meio dulcificado no Brasil, eu poderia dizer que um pouco do saleiro espanhol penetra no Brasil.

Assim com meu caro Andreas, assim com meu caro Guillaume, eu poderia ir falando de país por país.

O sr Zayas — não sei se é muito discreto o que vou dizer — mas ele me disse outro dia que ele em contato com os irmãos que vieram presentemente aqui é que notou quanto ele tinha mudado estando no Brasil. Notem bem que ele, provavelmente, fez o propósito de não mudar nunca; e em muitas coisas esse propósito foi bom, porque o verdadeiro não é entrar aqui numa “marmelada” e perder sua identidade; mas é conservar sua identidade. Mas conservar intercambiando…

Qual é o fundamento desse intercâmbio? É que há isso na alma brasileira, que eu não tenho notado em outros países, pelo menos — já que não quero ser pouco amável com os hispano-americanos — não tenho notado pelo menos nos europeus e nos dos outros continentes.

É o seguinte: nos outros continentes se procura na vida o prestígio, a riqueza, toda espécie de coisas; o brasileiro, de fato, o que mais dá felicidade para ele, é procurar e encontrar afinidade. Quando ele entra em contato com almas com as quais ele tem afinidade, e que podem juntos comentar as coisas, e sentirem e pensarem a mesma coisa; sobretudo juntos admirarem – aqui está a coisa, deste ponto vai partir uma série de coisas — isso é o que é mais consoante com a alma nacional. É uma alma admirativapor isso capaz de assimilar, porque de bom grado admira nos outros o que os outros têm.

“Ad mirare”, em latim é “mirare ad”, olhar para os outros. Mas olhar sabendo reverenciar, sabendo prestar homenagem, sabendo admirar. Quem admira, assimila e lucra.

A alma do brasileiro é fundamentalmente admirativa. A tal ponto que falando de meu próprio país, eu estou falando com admiração como falava há pouco dos outros países, como tantas vezes os senhores me tem ouvido falar de outros países. Falo como brasileiro, próprio até a admirar o que Deus fez no próprio brasileiro.

Esse gosto de ter afinidade na admiração, e de intercambiar, é diferente, é o próprio bem-estar do brasileiro. É como ele se sente realizado.

Em outros povos, eu tenho notado movimentos de alma diferentes. E movimentos assim: “Isso é meu? Olha lá hein! seu não é. Você é diferente e eu não sinto alegria pelo que você é… E eu vou me diferenciar de você o quanto possível”. Daqui a pouco sai uma guerra…

Depois vem os “ploc-ploc” [espíritos geométricos, n.d.c.] dizendo que a guerra tem fundo econômico, coisa diplomática etc. É verdade. Teve ocasião econômica, ocasião diplomática, mas o fundo foi essa separação: “Você não é eu; eu tenho qualidades que você não tem, você tem qualidades que eu não tenho; eu tenho defeitos que você não tem e reciprocamente. Vamos no medir e daqui para a frente vamos nos olhar assim”.

Eu não sei se os srs. têm visto briga de galo; antes dos galos brigarem, eles começam a dar voltas e se olhar e começam a fazer desafios, aliás muito bonitos. Eu não gosto muito da briga de galo, mas gosto muito do desafio do galo. São estados magníficos, muito bonitos, um galo olha para o outro… Jeitos extraordinários, eu acho bonito isso. Estou longe de censurar, mas o que um galo diz o outro é o seguinte: “Olhe, não queira passar na frente de mim, nem ser mais do que eu, nem tomar o que é meu, porque eu reajo como uma fera”.

Não é a nossa posição nem um pouco. Nossa posição não é: isso é meu, isso é seu… Não, é o contrário:” vamos admirar juntos? Intercambiar juntos. Como é agradável a gente admirar juntos! Como eu gosto de que você tenha essa qualidade. Mas eu também tenho essa, você não gosta? Gosta também. Que bom! Amenos a Deus que criou tudo isso. “Glória in excelsis Deo et in terra pax ominibus bonae voluntatis”. Porque é dessa admiração que nasce a paz na Terra para os verdadeiros homens de boa vontade. Flexíveis…”

Então, eu dizia para o meu Andreas que se ele fosse à Espanha — meu Zayas e meu Rivoir não me queiram mal, não olho enquanto eu falo —, se ele fosse à Espanha ninguém comentaria os “austriacismos” dele com alegria, satisfação, admiração com que nós comentamos. E que se o Zayas fosse à Áustria, também ninguém comentaria a “hispanidade” do Zayas como nós aqui; idem com meu Guillaume. A mesmíssima coisa. Eu vi estrangeiros na França e fui estrangeiro na França, e sei bem como é o jeito. Não veem essa permuta.

Eles chegam aqui, óoh, está muito bem, está com francês, viva, procura falar francês com ele… às vezes um francês meio arranhadinho que ele finge que é muito bom … c´est la douceur de vivre [é a doçura de viver]… A gente trata de viver.

Isso forma o que o ambiente nacional tem para construir, com nota brasileira, num território novo, um mundo novo feito de contribuições de toda espécie de passados, para um futuro de síntese. Aqui está o Brasil!

Não sei se isto está bem claro. Levantem o braço para aqueles a quem fui claro.

[…] remirando, a expressão me serve bem. Remirar é olhar para trás, está situado no passado e os senhores estiveram, portanto, remirando. Nesse diálogo os senhores encontram que a senhora, tão brasileira como era, ela percorria os horizontes da história do passado a partir dos vernizes franceses que a educação que se dava em São Paulo naquele tempo tinha passado sobre a personalidade dela; e que sem ter a menor ideia de ser uma francesa, nem de ser afrancesada, ela tinha muito de afrancesado no modo de ser dela; o que se nota aliás até nos móveis da casa dela e nos arranjos. Aquilo não é um arranjo francês, mas a influência da França está presente.

As avós todas brasileiras e portuguesas, dentro de molduras afrancesadas. Forma uma junção. E ela o que ensinou é propriamente aquilo que, aliás não era uma peculiaridade dela, mas do espírito brasileiro do tempo: essa capacidade, essa tendência a admirar tudo, a ver em tudo o maravilhoso que havia. Não é um bolo que vê maravilha onde não existe, isso não. Mas que admira aquilo que é uma maravilha e se alegra com aquilo, fica satisfeito com isso, e que vai assimilando de cá e de lá.

Essa senhora afrancesada arranjou para os filhos uma governante alemã, mas quis que os filhos aprendessem também inglês e que soubessem bem o português. E daí saiu a formação que não foi específica por ela, foi o ambiente dela fazia assim. Mas era um estilo geral, era um modo de ser geral da São Paulo nascente, que começa a receber os estrangeiros com um abraço, com um sorriso, sendo influenciado e influenciando catolicamente.

Daí os senhores tem, nessa posição admirativa, o lado da seriedade brasileira. Os senhores tomem as figuras, os quadros etc., dos personagens brasileiros até mais ou menos… o quê? Vamos dizer uns 50 anos atrás, todos visam a seriedade. E para agradar o povo era preciso ser sério.

Tomem, por exemplo, as caras que faziam os candidatos à presidência da República. Eu vi outro dia, uma fotografia por volta de 37, uma fotografia do Sr. Armando Salles de Oliveira, governador de São Paulo e candidato à presidência da República, entrando de automóvel para propaganda eleitoral em Sorocaba. Ele é tio dos Mesquitas. Ele estava vestido como um gentleman, muito bem arranjado, com o chapéu colocado sobre o colo, via-se que ele tinha saudado com o chapéu e havia colocado sobre o colo, e posto ao pé da letra como um gentleman entrando pela cidade de Sorocaba. E o povo, respeitoso, olhando e disposto a admirar. Se obtivesse muita admiração, era eleito.

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Os senhores vão ver a fotografia de Dom Vital: barba até aqui, uma selva a partir do queixo, olhos rijos que olham para a frente, boca decidida, queixo possante, e vamos! Muito afável, muito amável, mas olha lá… e sério. Filão brasileiro.

O velho tipo do barão do tempo do Império, o velho tipo do Coronel do tempo da primeira Repúblicahomens sérios.

Eu conheci um coronel do tempo da República. Não quero dar o nome dele. Era um super-fazendeiro; tinha aberto não sei quantas fazendas em não sei quantos lugares. E ele, às vezes, ia visitar minha casa. Era um homem de boa estirpe antiga de São Paulo. Um brasileirão! Enorme, enorme e assim fungando. Parece que era preciso uma respiração possante para fazer funcionar tudo aquilo… Bigodão. E quando ele ia à nossa casa ele sentava numa cadeira de laquê preto Luís XV, debilíssima. Não sei por que ele escolhia aquela cadeira. Todo mundo ficava com medo, mas ele chegava e sentava naquela cadeira. Todo mundo ficava com medo de que ele caísse e que quebrasse a cadeira e quebrasse a ele. Nunca aconteceu. Mas era um homem impossível de se aproximar sem respeitar. Sabia-se fazer respeitar.

Então os senhores têm nessa alma assimilativa, admirativa um desejo de um ambiente marcado pela admiração, dominado pelas pessoas capazes de causar admiração e capaz de afastar com o pé quem for da chanchada e quem for da “desadmiração”. Assim as coisas têm que funcionar.

E por causa dessa seriedade, um traço que é característico da seriedade também: é que quando a gente é sério, não tem raivas tolas; a gente tem incompatibilidades profundas, mas não tem raivas tolasE quando a gente tem o espírito voltado para o alto, não briga por ninharia.

Então, por causa disso, o gosto de harmonizar, de combinar, de acertar, de levar uma vida cerimoniosa — o brasileiro verdadeiro antigo era muito cerimonioso — vida cerimoniosa e inteiramente tranquila, que não deixava de ter até um certo protocolo. Por debaixo desse protocolo, sempre funcionando as suavidades brasileiras.

Eu me lembro, por exemplo, que eu meu pai contava de um avô dele, que era muito devoto da Imaculada Conceição. E tinha uma escravaria grande. E ele precisava meter medo nos escravos, porque muitos estavam saindo quase da selva. E os senhores não pensem que a gente pode tirar um homem da selva e transformá-lo desde logo num aluno de grupo escolar. Isso leva umas duas ou três gerações, em que o fazendeiro tem que fazer um pouco o papel do cacique. E o próprio do cacique não é a doçura.

Ele então combinava com o feitor. De vez em quando, quando o negro “pintava” demais, o feitor resolvia marcar uma sova e levava para um ponto que ficava perto da casa de meu avô para apanhar. Conforme o caso, apanhava de palmatória – os Srs. já ouviram falar de palmatória? sabem o que é palmatória? –  de palmatória ou de chicote. Mas o feitor tinha uma ordem de meu bisavô: “Você diz ao negro baixinho que quando você levantar a palmatória ou o chicote para dar, o negro grite: Por Nossa Senhora da Conceição!” – que eu digo: “Pára, pára! Invocou Nossa Senhora, está tudo perdoado…”

Os senhores riram porque sentiram tudo, não é?

Quer dizer, o negro fica aprendendo a devoção a Nossa Senhora, porque foi Nossa Senhora que salvou; o fazendeiro dá a entender que se não fosse o negro ter invocado Nossa Senhora apanhava mesmo, porque merecia; quer dizer, mantinha o princípio da autoridade e tudo acabava se passando na boa paz.

É preciso a gente ter ouvido contar, para a gente ter ideia de como uma coisa dessas possa ser. Essa combinação é inacreditável, mas todos os senhores se reconheceram dentro dela. É o gênero…

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