Santo do Dia, 4 de fevereiro de 1970
A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, e não foi revisto pelo autor.
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
Vamos entrar diretamente no comentário da fita.
Na fita os senhores devem considerar que a parte enredo é uma parte muito bonita, mas que a respeito do enredo propriamente dito – quer dizer, aquela determinação de São Tomás Morus de levar a sua cruz até o fim e de se sacrificar verdadeiramente pela causa católica, entendida com toda a honestidade, com todo rigor e com toda severidade – eu já disse tudo ontem.
Agora, nós devemos tentar colocar diante dos nossos olhos alguns aspectos da fita que nos trazem mais presentes o ambiente do tempo, a época, a circunstância, enfim, o lado “Ambientes e Costumes” (*) da fita.
Antes de tudo, eu chamo a atenção dos senhores para o lado simbólico muito bem feito da fita. A fita tem uma certa insinuação, logo no começo do filme: aqueles pássaros voando sobre o Rio Tâmisa, umas andorinhas, uma coisa assim, não sei bem que pássaros são aqueles, não sei se os senhores notam que aquelas andorinhas estão voando meio dispersas no céu.
De repente fazem um movimento mais intenso e, a partir daquele momento, todas vão atrás. Aquilo que parece puramente um incidente, um puro episódio, tem um sentido simbólico. Indica exatamente a versatilidade dos homens, simbolizada pela versatilidade de certos animais.
Animais gregários vão indo, de repente, um ou dois quaisquer tomam uma direção e todo o mundo vai atrás. Era o papel, exatamente, que o rei representava na fita. A Inglaterra ia indo, mais ou menos, toda católica, de repente o rei, por uma coisa qualquer muda de atitude e, com a mudança de atitude, o rei e toda a Inglaterra abandonam a Igreja Católica.
O sentido político mais profundo daquela mudança, que se deu, o sentido mais profundo foi o seguinte: no século XVI a Idade Média estava acabando de desaparecer, e com o desaparecimento de São Tomás Morus, a monarquia orgânica desaparecia também.
* A monarquia orgânica está baseada no princípio de subsidiariedade, que cria uma espécie de autonomia de todos os corpos dentro do Estado
Os senhores sabem que o princípio da monarquia orgânica está baseado no princípio da subsidiariedade.
Segundo o princípio da subsidiariedade, que é o próprio fundamento da organicidade, cada corpo social, cada grupo social, deve tirar de si mesmo a inspiração da solução para os seus próprios problemas internos, e deve ser apoiados pelo grupo superior apenas na medida em que, por sua própria natureza, aquele grupo inferior não tenha os meios para resolver os seus próprios problemas. De maneira tal que há uma espécie de autonomia de todos os corpos dentro do Estado.
Especificando: todos os feudos na Idade Média…, cada feudo tinha suas leis próprias, instituições próprias, costumes próprios, e vida própria.
Muitas vezes, isto também se conserva [hoje] na Inglaterra, um modo próprio de falar o Inglês, um modo próprio de pronunciar o idioma Inglês.
Por outro lado, dentro das cidades as corporações com uma vida própria, as cidades com uma vida própria, os pequenos feudos encaixados em grandes, ou encaixados em feudos maiores, o feudo grande só intervindo na vida do feudo pequeno, ou para remediar as violações da lei de Deus e dos princípios da civilização cristã, ou para sustentar o feudo pequeno nas ocasiões em que sua pequenez lhe impedia de sustentar-se por si e, por cima de todos, o Rei que fazia isto em relação a todo o mundo.
O Rei era o mantenedor de todas as autonomias, ele era o mantenedor de todas as liberdades, ele era o coordenador de todas atividades gerais, mas ele não estava mandando em cada um. Cada unidade social tinha, de si mesma, uma vitalidade por onde produzia o seu próprio impulso. O Rei era o coordenador e estimulante de todas estas atividades.
Entre estas autonomias, a maior, a mais notável era a autonomia da Igreja, e quando se trata da Igreja não se pode falar nem sequer em autonomia, mas se fala de soberania. A Igreja é uma entidade soberana tanto quanto o Estado e Ela, na sua esfera própria, não pode absolutamente ser governada pelo rei.
* Como reflexo do Absolutismo, o rei da Inglaterra declarou a igreja anglicana independente da Igreja Romana, com desastrosas conseqüências
Quando começou a decadência da Idade Média, os reis começaram a se tornar absolutos, tomando como modelos os imperadores romanos, que eram verdadeiros déspotas. Com aquela mania de voltar às fontes romanas, eles começaram a eliminar todas estas autonomias inferiores, e jogaram-se, com particular força, sobre a autonomia da Igreja. Eles quiseram transformar a Igreja em um instrumento para o governo do país.
Então o rei da Inglaterra declarou a igreja protestante, a igreja anglicana, separada da Igreja Romana, e o objetivo dele com isto era adquirir o mais pleno domínio sobre a Inglaterra, não só sobre a Igreja Romana.
Para os senhores compreenderem o que foi esta transformação da Inglaterra de nação católica para protestante basta lhes dizer duas coisas: em primeiro lugar as ordens religiosas se esvaziaram completamente, porque todos os padres e freiras começaram a casar-se, os padres seculares se casaram também, os bens da Igreja foram todos confiscados e dados, na maior parte dos casos, aos nobres. Ainda hoje há muitas famílias nobres que residem em antigas abadias, transformadas por elas em habitações particulares.
Como os pobres da Inglaterra viviam às custas da Igreja, e eram portanto muito bem sustentados, ao se fecharem estas instituições eclesiásticas começam então os pobres a não terem como se manter, e começam a afluir para Londres, onde haviam pessoas mais ricas, para ver se conseguiam esmolas. E começam então a surgir os primeiros decretos na Inglaterra de repressão à mendicância. Esses decretos vinham do fato de não haver mais instituições de caridade.
Então os senhores tem uma Inglaterra em que os nobres e os reis procuraram [inaudível]…, o rei dominou os nobres, dominou os bispos e dominou como?
Os bispos não mexiam com o dinheiro da cúria; os nobres dominou dando-lhes os bens da Igreja; os padres permitindo que se casassem – na legislação anterior os padres que se casassem iam para a cadeia –, ele permitiu que saíssem do convento e se casassem e dava ainda uma “dotaçãozinha” para o padre ou freira que se casasse, de maneira que todo o mundo de certa maneira lucrou com essa separação, exceto os pobres que foram os grandes prejudicados.
Era um reino, portanto, que [se] deixava comprar, que se deixava subornar inteiramente pela lei. Este foi o fato trágico que se passou na Inglaterra daquele tempo.
* O episódio do rei pulando na lama mostra onde chegou a corte inglesa, que começava a perder o senso do dever, e a se aburguesar
Os senhores então vêem na vida de São Tomás Morus o espetáculo de alguma coisa – naquele quadro de “Ambientes e Costumes” – que ainda tem muito de medieval, mas que tem algo de renascentista, e daí uns contrastes chocantes de aspectos simpáticos e antipáticos que cercam a coroa inglesa. Eu diria mais, de aspectos revolucionários e contra-revolucionários que cercam a atmosfera da coroa inglesa.
Aquele tipo do rei absoluto, que é o contrário dos reis, que os senhores vêem na fita, que pula como um porco para fora do barco, que mete o pé no lodo, e é um tirano dos fidalgos, olha para os fidalgos e depois que vê que fez uma asneira e que pulou inconsideradamente no lodo, olha para os fidalgos pensando em que impressão os fidalgos iam ter, se lembra da saída e dá uma gargalhada para os fidalgos: “Háháhá…”, e todos os fidalgos: “Háháhá..”. Gargalhada dos fidalgos que não estavam achando graça em nada mas riam porque o rei olhou com ferocidade, como quem diz: “Riam porque eu quero que vocês riam”.
E todos rindo e obedecendo desta maneira ao rei porque ele lhes dava a vida alegre, a vida luxuosa, a vida cômoda, a vida gostosa, brilhante, em que eles se compraziam. Aqui é o aspecto revolucionário da corte, que começa a se aburguesar, é uma corte que perde o sentido do dever, porque perdia o sentido da religião.
E onde o sentido da religião morre, o sentido do dever desaparece completamente.
Então os senhores têm uma corte que vive para o prazer, que vive para o dinheiro, e que é a forma ancestral da burguesia contemporânea. Os senhores têm aquele domínio dos reis sobre os nobres, que é tal e qual as andorinhas do começo do filme.
* Aspectos revolucionários da corte de Henrique VIII: porque o Rei brigara com São Tomás Morus os nobres saem de sua casa sem despedir-se
Não sei se os senhores repararam, os nobres estavam na casa de Morus conversando com a família. Quando o rei resolveu sair eles saíram sem se despedir de São Tomás Morus, nem da família. Eles percebem que Morus tinha brigado com o rei, então saem todos. Saem até sem se despedir. Quer dizer, é o modo absolutista de viver uma instituição contra-revolucionária. É um modo revolucionário de viver uma instituição contra-revolucionária.
Portanto, uma coisa degradante, uma coisa com a qual nós não podemos estar de acordo.
Os senhores notam a mesma coisa na conversa do rei com Tomás Morus, na casa deste e sozinhos, em que o rei tenta induzir Morus a aceitar o divórcio.
Não sei se notam que o rei toma atitudes com Morus muito variáveis. Ora procura ameaçá-lo, ora procura tomar atitudes de grande intimidade e como que de respeito por ele, ora tenta debochar dele, tomando umas atitudes de crápula e querendo colocá-lo em uma espécie de alternativa: ou romper com ele ou acompanhá-lo na crapolice.
E os senhores vêem em Morus o tipo do cortesão medieval, fiel à tradição católica, respeito com o rei mas com a sua consciência própria. Mas é a noção de que existe uma regra mais alta do que a regra humana e que é a regra divina e que tem que ser obedecida mais do que qualquer coisa.
Quando o rei o trata bem, ele reverencia o rei; quando o rei procura debochá-lo ele é respeitoso, mas altaneiro. E se mostra o tempo inteiro um homem respeitoso da autoridade real, fiel à autoridade real, mas incapaz de ser levado pela autoridade real ou ao pecado, ou à degradação de sua própria personalidade.
Daí também, o contraste entre Morus e os cortesãos. Morus um homem sério, digno, inteligente, composto. Os cortesãos, muito mais brilhantemente vestidos que Morus, mas homens sem compostura, sem dignidade. O conflito entre o homem contra-revolucionário, que ainda tinha muito de medieval, e o tipo revolucionário de nossos tempos que ia aparecendo.
* O tipo revolucionário representado no filme de São Tomás Morus e a coragem do santo ao enfrentar sozinho um reino inteiro
Bem, o tipo do revolucionário máximo é o cardeal que aparece no começo da cena. Os senhores talvez se lembrem dele, gordalhão, obeso, derretido na gordura e nas pompas, no macio das almofadas e na beleza das jóias, completamente sem consciência. Mas os senhores depois o viram, em sua morte, reconhecendo que se ele tivesse servido a Deus como tinha servido ao rei estaria muito melhor in extremis, e ainda indicando Morus para chanceler.
Os senhores vêem esse tipo de oportunista representado na própria família de Morus. Os senhores estão vendo a própria mulher e a filha de Morus, mulheres venais, que queriam que Morus vendesse a consciência para terem uma alta situação. Elas não tinham o caráter de Morus e elas procuraram induzi-lo ao pecado.
Morus era o único contra-revolucionário diante de um ambiente encharcado de Revolução e os senhores não terão dificuldades de por aí compreender as analogias.
Morus estava só, era incompreendido, tinha toda a razão do lado dele, e a coragem que se exigia dele não era só a coragem de morrer, era a coragem de ser diferente de todo o mundo. A coragem de não ter ninguém a seu lado, a coragem de meter o peito contra uma nação inteira. A coragem de se ver completamente despojado, mas fiel até o fim àquilo que era o seu dever.
A analogia da situação de Morus e a situação de um membro da TFP é uma analogia muito grande.
Nós não somos convidados, por ora, ao martírio cruento, mas a uma forma de martírio moral que é uma forma tremenda de luta, e que exatamente todo o dia se pede de nós.
Aqui está portanto uma espécie de complementação ao comentário de ontem, tendente a fazer perceber aos senhores a trama da Revolução e da Contra-Revolução em torno da fita que os senhores assistiram.
Agora eu vou passar a fazer o exame do lado contra-revolucionário.
* O filme mostra restos de tradição medieval. O traje do cardeal e a cena dos barqueiros são aspectos medievais que a sociedade moderna não conhece
Os senhores percebem restos de uma tradição medieval, com grande esplendor, com grande beleza na própria fita, misturadas com coisas renascentistas e pós-medievais.
Os senhores tomem, por exemplo, os trajes do cardeal Wolsey. Se os senhores os comparam com os trajes cardilanícios, tão despojados de hoje em dia, são uma verdadeira beleza. O traje enquanto traje é uma magnificência e exprime a dignidade cardinalícia de um modo esplêndido.
Nós gostaríamos de imaginar, dentro daquele traje, um outro cardeal de sangue inglês e espanhol, o Cardeal Merry Del Val, então nós podemos compreender como aquele traje está bem para a púrpura romana, e como exprime, adequadamente, todo o esplendor daqueles que são os primeiros suportes do Papa.
O Cardeal Merry del Val foi o braço direito de São Pio X n a luta contra os modernistas, precursores do progressismo. Modelo de sacralidade e alta compostura eclesiástica.
Os senhores tem algumas cenas lindas. Uma cena muito bonita, por exemplo, é a do rei chegando com aquele barco. É impossível que não tenha chamado a atenção dos senhores. Aquele dossel, o rei sentado, com todos aqueles cortesãos fazendo sala para ele.
É um barco de madeira trabalhado à mão – de si não tem nada de muito rico; qualquer Mercedes é muito mais caro do que aquele barco. Mas, que diferença! Que fabulosa diferença! O Mercedes é um dos mais bonitos automóveis contemporâneos. Como é que se pode comparar com aquele barco? Nem de longe…
Os senhores ponham toda técnica que há no Mercedes, toda a ciência, toda indústria, todo o custo que há dentro desses automóveis, comparem com um barco de pau dirigido por remadores, e aí os senhores compreendem o que a técnica não é.
Pode-se imaginar o rei dominando as águas, cercado por aquele trono e por aquele dossel. Os senhores imaginem São Luiz, ali, e os senhores compreenderão que aquilo é quase um andor de procissão em honra da autoridade real, visto com um sumum do poder que vem de Deus.
Lembrem-se da quilha do barco, com aquele espécie de leão mitológico, dominador, que se tem a impressão de que segura toda a natureza com a mão e que vai como magnífica figura de proa na ponta.
Depois, a cena esplêndida, quando o barco chega e o rei se levanta, todos suspendem os remos e se vê que as conchas dos remos são todas vermelhas, para o remo branco, e todas de pé, até o rei descer.
Aquilo é um cena de uma grandeza, de uma seriedade, diria tudo numa palavra, de uma sacralidade, que é verdadeiramente estupenda.
* Na cena dos bispos ingleses acatando a separação de Roma, pelo lado Ambientes e Costumes, compreendemos algo da Igreja
Os senhores tem outra cena muito bonita, como decoração tradicional, em um episódio que é tristíssimo: o episódio em que os bispos da Inglaterra aceitam a separação de Roma. Começa a tocar um sino, entram vários bispos, formam-se, e vem então o arauto do rei anunciar que o mesmo exige a separação de Roma e todos os bispos estão um pouco hesitantes…
O arauto fala em dinheiro e todos começam a se impressionar, dai a pouco todos votam a separação do Papa, quer dizer, a heresia. Precipitam-se no Inferno!
Mas a cena, enquanto ambiente, ainda é uma cena medieval, uma cena católica, e o cerimonial é lindíssimo! Como é diferente de tantas cerimônias eclesiásticas dos dias de hoje!
Os senhores vêem os bispos em um estrado alto, todos paramentados de acordo com a sua dignidade, todos entram formando um cortejo, um enorme crucifixo…
Do lado de “Ambientes e Costumes”, esta cena de apostasia nos faz compreender a Igreja. Mais ou menos, como diziam os mitologistas antigos, que quando o cisne morria aí ele deitava sua mais bonita canção, o que se chamava o “canto do cisne”. Aí se podia dizer que era o canto do cisne da Igreja na Inglaterra. Na hora de morrer ainda deitava o perfume de sua última cerimônia, maravilhosamente linda, dentro do horror daquilo que estava sendo feito.
Outra cerimônia bonita é a discussão dele no Parlamento.
Os senhores vêem, ali, todo o Parlamento reunido. Sobretudo é belo o banco dos magistrados e dos prelados, que presidem o julgamento, e é muito bonita a resistência de Tomás Morus.
Os senhores vêem ali, um homem completamente só, que discute com uma lógica tal que encosta todos na parede. E, em vários momentos, as pessoas ficam meio sem saber o que dizer, e começam a dar razão a ele. Mas, em determinado momento, todos votam a morte dele. É um modo de dominar, de abafar a consciência, de abafar a lógica pela ameaça, pelo dinheiro, e pelo suborno.
Estas são as cenas mais de aparato, mais contra-revolucionárias, dentro desta história em que a Revolução e a Contra-Revolução jogam tão visivelmente.
* O carrasco ao pedir perdão o faz reconhecendo a precariedade da justiça humana
No fim a cena do carrasco. O carrasco era apresentado, na Idade Média, daquele jeito, e era apresentado daquele jeito porque ele era um executor do Estado, de onde aquela cara, e aquilo tudo. É impossível que não tenha dado aos senhores uma espécie de arrepio quando viram aquele personagem se mover naquele palco com o machado que cortou a cabeça dele.
Aquilo tudo era rigorosamente assim. Inclusive a cena, na qual, o carrasco pede perdão por matar a vítima, e a vítima concede perdão.
Era uma antiga tradição, uma espécie de amor cristão, como quem diz: “se esta sentença é injusta, em nome dos homens eu lhe peço perdão, antes de matá-lo”. A justiça humana é tão precária, como era nesse caso.
Então ele se ajoelha e pede perdão, diante do homem que ele mesmo vai matar. Tomás Morus lhe dá uma gratificação.
Essa idéia cavalheiresca de pagar todo o serviço manual, inclusive o de cortar a vida da gente, é uma idéia tremenda, mas que tem uma grande nobreza. Ele morre com um só golpe de machado e acabou-se a história de Tomás Morus.
* A vida dos santos é um abismo de beleza que nunca se toca até o fundo
Acabou-se?
Não se acabou, ainda cabe aqui um comentário.
Os senhores sabem que a nós causa horror a idéia de um tronco separado da cabeça. Aqueles ossos, aquela carne toda jorrando sangue, aquela cabeça no chão, eu acredito bem que se um de nós assistisse aquela cena, de noite teria dificuldade de conciliar o sono. Ao menos por uma noite.
São Théophane Venard em pintura de aprox. 1860 |
Aquilo causa terror, mas pelo menos, a execução era feita de tal maneira, que o machado, bem afiado, atingia a nuca e matava o mais cedo possível. Os senhores sabem que cortando aqui a vida cessa logo.
No século passado houve um mártir, que era irmão espiritual de Santa Terezinha do Menino Jesus, chamado Théophane Venard. Ele era apóstolo no Tonkin, colônia francesa, que, se não me engano, corresponde ao atual Vietnã. Ele foi martirizado.
No momento em que ele ia ser morto, ele deu uma gorjeta para o carrasco, e disse o seguinte: “eu lhe dou uma gorjeta para ver se você não acerta inteiramente da primeira vez; eu quero morrer com alguns golpes para poder sofrer mais”. Assim o heroísmo de um santo pôde ser superado pelo heroísmo de um outro santo (**)
Acabou? Não. Ainda tem outro caso.
Santa Cecília. Os senhores sabem que Santa Cecília foi decapitada – a grande mártir padroeira da música foi decapitada – mas a decapitação dela não foi completa. Os carrascos saíram e ela ficou com um pedaço do pescoço meio pendente na cabeça, e com um resto de vida em condições piores do que tudo. Até que a vida cessasse ela estava dizendo aos pagãos: “Eu creio na Santíssima Trindade”. De maneira tal que as esculturas que representam Santa Cecília morta, a representam sempre com estes três dedos. Um ato de Fé indo além de tudo: “Não tem dúvida nenhuma, eu confio na Santíssima Trindade, eu creio na Santíssima Trindade”.
Os senhores conhecem coisa mais bonita do que isto? Eu acho que mais do que isto é impossível, é a última palavra.
Está bem. Se alguém estudasse bem a vida dos santos ainda encontraria coisas mais bonitas, porque a vida dos santos, estudada sem sentimentalismo, é um abismo de beleza que nunca se toca até o fundo.
Mesmo porque quando a gente toca no fundo, a gente toca em Nossa Senhora, e Nossa Senhora é, Ela mesma, um oceano inteiramente insondável de belezas e de perfeições, até chegar ao Mártir dos Mártires, que Este então não é belo, é Perfeito, e o nome dEle é superior a todo nome e a todo louvor, os senhores sabem bem que é.
De maneira que com isto está feito o Santo do Dia.
(*) Para se conhecer o fundamento doutrinário do estudo de “ambientes, costumes e civilizações” nada melhor do que indicar a nossos visitantes a leitura do que o próprio autor escreveu sobre ele, em seu “Auto-retrato Filosófico“.
(**) O Prof. Plinio cita de memória o fato que, de acordo com as biografias, foi um pouco diferente: “A seu verdugo, que cobiçava seus vestidos e lhe perguntou o que ele lhe daria para fazer a execução o mais rápido possível ele respondeu: ‘Quanto mais lenta melhor!'”