Auditório Nossa Senhora Auxiliadora, 23-11-1992
A D V E R T Ê N C I A
Gravação de conferência do Prof. Plinio a sócios e cooperadores da TFP, sem revisão do autor.
Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério tradicional da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
Comentando a nota colocada em seu livro “Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana” (pág. 80), o Prof. Plinio explana sobre um trecho de São Tomás de Aquino de sua “Suma Teológica” a respeito de se se deve mudar uma lei e, em caso afirmativo, sob que condições.
Eis o trecho em questão:
A propósito da abolição radical e sumária de tão antiga e benemérita instituição, como seja a nobreza, evidentemente sob a força de impacto do igualitarismo radical que soprou em tantos países, no segundo pós-guerra como no primeiro, é preciso lamentar que não tenha sido tomado em qualquer consideração este ensinamento de alta sabedoria de S. Tomás de Aquino, que integra a Suma Teológica (I-II, q. 97, a. 2) sob o título “Se a lei humana há-de modificar-se sempre que se apresente um bem melhor”:
“Está estabelecido nas ‘Decretais’ que ‘é um absurdo e uma afronta extremamente abominável sofrer a destruição das tradições que desde a antiguidade recebemos dos nossos antepassados’.
“Como já dissemos, só se modifica rectamente a lei quando mediante esta mudança se contribui para o bem comum. Porém, a simples mudança de uma lei já é, em si mesma, um prejuízo para o bem comum. Porque o costume contribui muito para o cumprimento das leis, a tal ponto que se consideram graves todas as coisas estabelecidas contra os costumes, apesar de em si mesmas serem leves. Por isso, quando se modifica uma lei o seu poder coactivo fica diminuído, na medida em que impeça o costume. Daí que não se deva modificar a lei humana, a não ser que por outro lado haja uma compensação equivalente para o bem comum, correlativa à parte derrogada da lei. E isto acontece: ou porque da nova disposição legal se tira um proveito muito grande e notório, ou em caso de extrema necessidade, ou porque a lei vigente continha manifesta iniquidade e o seu cumprimento era sumamente nocivo. Por isso diz o Jurisconsulto que `tratando-se de estabelecer novas normas, a sua utilidade deve ser evidente, para que seja justificado o abandono daquilo que durante muito tempo foi considerado como equitativo'”.
Eu quis colocar isso aí porque é um trecho de São Tomás de Aquino que dá uma defesa esplêndida da primeira palavra da nossa trilogia: Tradição.
São Tomás de Aquino trata aí das leis feitas pelo costume e não feitas por alguma câmara de deputados ou por algum senado.
O que é que vem a ser isto: leis feitas pelo costume?
Em outros trechos – mas eu não podia dar tudo porque a coisa ficava muito longa – ele começa por mostrar que o próprio do homem virtuoso é criar costumes, e que nos ambientes onde existe a virtude se criam costumes facilmente.
O que é que vem a ser isto, para nós entendermos debaixo para cima do que é que São Tomás de Aquino está falando?
Os Srs. tomem, por exemplo, uma casa de uma família. Vamos imaginar uma família patriarcal. Não uma família monocelular, pai, mãe e filhos, mas dessas famílias de antigamente em que tem pai, mãe, filhos, avô, avó, um primo do avô, um irmão da avó, um sobrinho-neto de não sei quem, a parentela toda que frequenta a família. A família fica assim uma espécie de clube, de centro aonde todos os que são unidos por uma certa vinculação de sangue se encontram para conversar, para ter convívio entre si. E aquela força de convívio que resulta da afinidade profunda, a qual por sua vez tantas e tantas vezes decorre da comunidade de sangue porque tem o mesmo sangue, há traços de temperamento profundo que estabelecem amizade. Depois na mesma família o modo de educar também é o mesmo, de maneira que também aí entram afinidades e se estabelecem afinidades de toda a ordem.
Quando esta família é uma família verdadeiramente católica, ela começa por formar hábitos e esses hábitos ela só muda em condições dificílimas, em condições muito delicadas.
Por exemplo, mudar de cidade onde se mora: é uma coisa que vai se tornando hoje em dia cada vez mais frequente. Há estatísticas nos Estados Unidos – alguém me deu as estatísticas aqui, eu perdi isto – que indicam que o número de mudanças de casa e mudanças de cidade nos Estados Unidos é uma coisa assombrosa simplesmente. O normal é uma família estar mudando de casa e mudando de cidade.
É o contrário do que se faz numa civilização católica. A família tem uma casa, ela tem a tendência dos que morem em casa vivem nela a vida inteira, e quando morrem deixam para os que descendem deles e esses conservam com alguns retoques, algumas adaptações decorrentes do número de membros que crescem, enfim, de circunstâncias assim que tornam a casa sempre útil para a família. Mas essencialmente é a mesma casa e essencialmente os melhores objetos da família são conservados, os menos importantes são trocados etc. Os melhores objetos são conservados para serem mantidos na mesma família de geração em geração, de maneira que o indivíduo possa dizer: “Aquele quadro lá do meu bisavô já é de tal data, e meu neto vai receber esse quadro e vai ter na sala como está aqui na minha sala”. É como um rio que corre ininterrupto. Assim também é o rio da geração, o rio da reprodução de uns que têm filhos em outros e que vão correndo.
Também no modo de morar no casarão, no modo de se tratarem e viverem no casarão vão se formando hábitos.
Por exemplo, é normal que tal cadeira seja a cadeira de balanço do tio tal e quando ele vai em casa ele se senta sempre naquela cadeira de balanço. Resultado, quando ele chega se tem alguém sentado na cadeira de balanço, ainda que seja mais velho do que ele, levanta-se amavelmente e diz:
– “Fulano, senta aqui porque esta cadeira é sua.”
Ele fará um pouquinho de cerimônia:
– “Não, sente-se você.”
– “Não, não…” – ele acaba sentando na cadeira dele.
O costume vai fazendo uma espécie de lei por onde o tio tal tem o hábito de se sentar naquela cadeira de balanço.
Há na casa um relógio antigo que supõe, para ser dada corda e manter o relógio, uma especial habilidade. É o primo não sei o quê que quando vai à casa dá a corda ao relógio. E quando o primo viaja para fora, ou passa algum tem sem ir, alguém da casa diz amavelmente: “Primo Fulano, o relógio está à sua espera há muito tempo.” Ele vai sorrindo, vai diretamente e conserta o relógio. Fica um desaforo alguém dar corda ao relógio que não seja o primo tal.
Assim a vida de família vai se enchendo de pequenos hábitos, e esta tendência a formar hábitos é uma expressão da virtude que há na família. Segundo a doutrina de São Tomás de Aquino a formação do hábito é uma virtude.
Por quê? Porque tudo aquilo que adquire uma certa continuidade, toma uma certa expressão e se prende à realidade por uma porção de vínculos práticos que a gente às vezes a olho nu nem percebe, é só quando mudou que percebeu que foi errado mudar.
De maneira que o princípio é: nos hábitos de uma família não se muda nada a não ser que haja uma evidente necessidade. Havendo, muda-se e está acabado, mas não havendo uma evidente necessidade não se muda nada.
Vamos dizer, por exemplo, que numa família ninguém fume, a não ser um velho avô que fumava, e junto à cadeira que ele está há um banquinho ou uma mesinha especial com o cinzeiro dele.
Uma pessoa diria:
– “Bem, ele morreu, vamos pegar esse banquinho…”
– “Não, isso lembra a ele. Não havendo necessidade, deixe isto aqui.”
– “Não, mas não adianta.”
– “Adianta.”
– “Mas do que é que adianta?”
– “Continua! Preste esse serviço excepcional de continuar.”
Continuar é uma coisa análoga a viver e mudar é uma coisa análoga a morrer.
Os Srs. vejam na roça, por exemplo. A gente anda pela roça e vê o caminho da roça aberto pelo pé-a-pé, e pé descalço, no chão, de um número enorme de caipiras que durante anos atravessaram por lá. E por razões pequenas: porque tem uma pedra que está meio debaixo da terra, que a gente não vê, mas que machuca o pé do caipira, ele se afasta um pouco para tal lado. Depois, mais adiante, tem uma bica com água e ele costuma se afastar para beber um pouco de água, tem não sei o quê. Forma o ziguezague irregular que o caipira faz… ele não, o caipira quer dizer uma série de caipiras andando e seguindo sempre a mesma trilha, acabam de dar àquele caminho aquele rumo especial.
Alguém dirá: “Sabe de uma coisa? Eu tenho aqui uma máquina de aplainar a terra. Eu vou fazer um caminho reto e sem esses sinais das pegadas que passaram por lá.”
O que fizer isto errou. Por quê? Porque mudou, porque estava uma tradição. Aquilo era uma tradição, ali se pisa assim, ali se faz um ziguezague assim e ali se guarda a coisa assim.
Paris era uma cidade cheia de coisas dessas, até que um neto de Napoleão I – Napoleão III – convidou para prefeito de Paris um Hausmann, que modernizou Paris e acabou com uma porção de coisas assim pitorescas, inclusive os nomes das ruas. As ruas tinham nomes pitorescos provenientes de tradições do passado, ele acabou [com] tudo.
Então, do Arco do Triunfo partem as avenidas com nomes das principais vitórias que Napoleão ganhou, e depois a praça onde Luiz XVI, Maria Antonieta e todas as vítimas da Revolução foram decapitadas, antes de tudo foi de tal maneira aumentada, que a gente não sabe bem ali aonde é que estava a guilhotina, onde estava aquilo, aquilo outro e deram o nome à praça de Praça da Concórdia. É a praça da discórdia, a praça do regicídio! Não, é a praça da concórdia. São as mentiras modernas que destroem todas as tradições.
Alguns nomes ficaram por excesso de trabalho, por negligência etc. Hoje, nos guias de turismo de Paris esses nomes ficam para que os turistas vão visitar se tiverem vontade.
Eu me lembro do nome de uma dessas ruas: “La rue du chat qui pêche – a rua do gato que pesca”. É uma coisa evidente que havia por ali antigamente um riachinho, e que havia um gato que tentava pegar peixe com aquela pata dele e não conseguia, e que isso distraía as pessoas do lugar. O gato morreu, talvez o curso de água tenha se desviado do lugar, não tinha nem água, nem peixe, nem gato, continuou a chamar-se “La rue du chat qui pêche.”
Alguém dirá: “Não, acaba, acabou tudo isso! Fica chamando Rua Prefeito Fulano de Tal.”
Quem dos Srs. não percebe que é interessante passar por lá e lembrar que ali houve um regato, que havia um gato e que esse gato tentava pescar? Fica chamado “La rue do chat qui pêche.”
Por que é que não muda? Porque existe e não se liquida o que existe, simplesmente. É um dos aspectos da palavra “tradição” que está no começo de nossa trilogia.
Assim como isto acontece com os indivíduos, com as famílias, com as cidades, acontece com os países. Os países têm leis e São Tomás de Aquino nesse trecho que acaba de ser lido aqui levanta o problema sobre se as leis devem ser mudadas. E ele, então, mostra que salvo uma necessidade grave, mas evidente – quer dizer, uma coisa que não precisa de prova, que salta aos olhos, isso é que quer dizer evidente –, salvo uma necessidade grave, salvo uma vantagem que salta aos olhos, não se deve mudar porque em si não é que seja pecado mudar, mas é inconveniente mudar, é contra a sabedoria, porque a natureza é conservadora e ela procura o mais possível conservar todas as coisas.
Por causa disso, o estar fazendo leis continuamente como fazem os Estados modernos… Eu li há um tempo atrás uma estatística das leis que existem no Brasil. Se lei fosse solução, nós seríamos o país mais próspero do mundo. Mas nós temos leis que ninguém cumpre, que ninguém sabe quais são, esquece, “zupa”, são revogadas pelo olvido, tudo o mundo esquece da lei, ninguém cumpre. Tudo isto é por causa de estar mudando, mudando, mudando.
Conserve o costume e o costume te conservará. Esse é o verdadeiro princípio que se deve ter em consideração.
Vale a pena reler agora aqui simplesmente o texto de São Tomás para verem como isto se ajusta bem às palavras dele.
“Está estabelecido nas `Decretais’ que `é um absurdo e uma afronta extremamente abominável sofrer a destruição das tradições que desde a antiguidade recebemos dos nossos antepassados’.
As decretais era uma compilação de leis dos romanos antigos, que, como eram muito sábias, foram mantidas pela Civilização Cristã. Então fazia parte das decretais isso:
“… `é um absurdo e uma afronta extremamente abominável…”
Vejam bem: “um absurdo e uma afronta extremamente abominável”.
“… sofrer a destruição das tradições que desde a antigüidade recebemos dos nossos antepassados”.
Sofrer a destruição das tradições que desde a antiguidade recebemos dos nossos antepassados.
Os Srs. tomem aqui em São Paulo, por exemplo. No Pátio do Colégio havia uma igrejinha que foi a primeira igreja que se construiu em São Paulo e que era aderente ao Palácio do Governo, que funcionava lá antigamente.
A primeira igrejinha construída em São Paulo… mas é uma coisa que não se pode tocar! Por quê? Porque foi a primeira e logo será a última. O último paulista morrerá na defesa da primeira igreja. Uma coisa que foi a primeira, até o último se sacrifica por ela.
Este é o pensamento que está na coisa de São Tomás.
De fato, foi destruída pela república, e foi destruída porque como a igreja era aderente ao Palácio do Governo e a Igreja é separada do Estado, eles arrasaram. Mais tarde a CAL (Construtora Adolpho Lindemberg) reconstruiu e reconstruiu muito bem, com muito gosto e muito adequadamente. Reconstruiu, mas o reconstruído é o reconstruído. Foi extremamente abominável e não sei mais o quê, como diz aí, terem destruído essa igrejinha.
Continue, faz favor.
“Como já dissemos, só se modifica retamente a lei quando mediante esta mudança se contribui para o bem comum. Porém, a simples mudança de uma lei já é, em si mesma, um prejuízo para o bem comum”.
Então está dito o seguinte: a lei em princípio para o bem comum deve ser mudada, mas tome cuidado porque em si a mudança é contrária ao bem comum. E, portanto, só em circunstâncias muito graves é que se explica que ela seja mudada.
“Porque o costume contribui muito para o cumprimento das leis, a tal ponto que se consideram graves todas as coisas estabelecidas contra os costumes, apesar de em si mesmas serem leves”.
Então, o costume contribui para o cumprimento da lei. Uma lei velha, antiga, venerável, que sempre se cumpriu, o costume facilita que ela seja cumprida. Se é abolida a lei, para ser instituída outra, a lei nova não terá a seu favor o costume e o resultado é que ela será mal cumprida ou não será cumprida. Logo, cuidado, não esteja alterando, é asneira.
“… a tal ponto que se consideram graves todas as coisas estabelecidas contra os costumes, apesar de em si mesmas serem leves”.
Todos os atos, todas as deliberações se consideram gravemente inconvenientes, apesar de em si não ter nada de mal.
Qual é o pecado que pode haver em abolir o nome de uma rua que chama “A rua do gato que pesca”? Não há nenhum mandamento proibindo isto, mas como é um costume e lembra uma tradição antiga, não se deve fazer porque é inconveniente.
“Por isso, quando se modifica uma lei o seu poder coactivo fica diminuído, na medida em que impeça o costume”.
Como o costume deita muitas raízes no povo, a lei nova só por isso nasce fraca, porque o costume está jogando a sua força contra a lei.
“Daí que não se deva modificar a lei humana, a não ser que por outro lado haja uma compensação equivalente para o bem comum, correlativa à parte derrogada da lei. E isto acontece: ou porque da nova disposição legal se tira um proveito muito grande e notório, ou em caso de extrema necessidade, ou porque a lei vigente continha manifesta iniquidade e o seu cumprimento era sumamente nocivo”.
São os casos extremos em que uma mudança se compreende.
“Por isso diz o Jurisconsulto que `tratando-se de estabelecer novas normas, a sua utilidade deve ser evidente, para que seja justificado o abandono daquilo que durante muito tempo foi considerado como equitativo’.”
Para que o povo se resigne a uma lei nova, é preciso que a utilidade dessa mudança seja evidente, porque do contrário não se arranca o povo do costume. É isto a tradição.
Os Srs. me dirão: “Mas isto fica um pouco à margem da nobreza.”
Não, a nobreza é mantenedora dos costumes. Ela é que mantém, mais do que outras classes sociais, as tradições e ela vive da tradição. É porque ela lembra um passado, e um passado que ela faz continuar no presente, que essa é a força dela.
Bem, eu creio que com isso se compreende que essa nota tenha sido incluída no livro. Com isso também podemos dar por encerrada a reunião.