São Pio V, o herói da batalha de Lepanto (7 de outubro)

Santo do Dia, 7 outubro de 1975

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo“, em abril de 1959.

 

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Batallha de Lepanto – Andrea Vicentino (1542 -1617) – Palazzo Ducale – Veneza

 

(Aparte: hoje é festa da batalha de Lepanto…)

Vamos dizer então uma palavra a respeito da Batalha de Lepanto e de Nossa Senhora do Rosário. Tantos foram os comentários que eu fiz a respeito da batalha de Lepanto, em vários anos sucessivos, que quase não sei o que comentar a respeito disso. Mas eu vou destacar aqui um herói da batalha de Lepanto a respeito do qual pouco se fala. E esse herói foi o Papa São Pio V.

* Sem uma pressão heróica de São Pio V não haveria se dado a batalha de Lepanto”

Em que sentido São Pio V foi herói, e em que sentido importa reconhecermos o heroísmo dele?

São Pio V via bem o poder otomano crescer cada vez mais, e o perigo que havia de os otomanos se jogarem sobre a Itália, por exemplo, ou sobre qualquer outra parte da Europa, e operarem uma invasão que poderia ter efeitos tão ou talvez mais ruinosos do que teve a invasão árabe na Espanha, no começo da Idade Média.

E por que razão isto? É que no tempo de São Pio V, século XVI, já a Europa estava dividida, os cristãos da Europa estavam divididos entre católicos e protestantes. E já a partir do século XIII tinha havido uma primeira divisão dos católicos da Europa entre cismáticos e católicos.

Havia portanto já instalada entre os cristãos essa lamentável divisão que nós desejamos remediar pela conversão de todos — e que o ecumenismo quer remediar pelo interconfessionalismo —, essa lamentável divisão que enfraquece tanto as forças católicas.

No século XVI, de São Pio V, da batalha de Lepanto, havia outra coisa. É que o protestantismo tinha naquele tempo um vigor incomparavelmente maior do que hoje, estava ainda na sua fase de expansão, na sua fase de luta. E era muito de se temer que os protestantes aproveitassem a agressão feita pelos maometanos a um país católico, para invadirem, eles os protestantes, outros países católicos. Tanto mais que já havia disso uma experiência.

A casa D’Áustria que, como os senhores sabem, governava a Áustria, Hungria, e à qual tocava já habitualmente o título, e por eleição, de imperador do Sacro Império Romano Alemão, a casa D’Áustria várias vezes se viu em dificuldades seriíssimas por causa de combinações —ou ao menos de convergência, esforços —, claras, entre protestantes dentro do Sacro Império e otomano de fora do Sacro Império, para forçarem a capitulação da Casa D’Áustria, e liquidarem o catolicismo, de imediato pelo menos nos povos de língua alemã.

De maneira que para a Santa Sé a ameaça otomana era uma ameaça muito mais forte do que foi a ameaça árabe, tão terrível, entretanto. Porque ao menos os católicos do tempo dos árabes, formavam um bloco, enquanto dos católicos do tempo de São Pio V estavam divididos. Alguns já não eram mais católicos, havia os protestantes alemães. É verdade que no tempo da invasão árabe havia os arianos, mas os que resistiram não eram arianos, esses eram católicos de fato e lutaram.

Nessa situação São Pio V tinha que apelar naturalmente para o varão que era o apoio temporal da Igreja naquele tempo, e que era Felipe II, rei da Espanha. Precisamente porque o imperador do Sacro Império não tinha condições, por causa da divisão religiosa no império, de lutar eficazmente contra os mouros, os turcos. Precisamente porque a França estava corroída por uma crise religiosa muito grande, guerra de religião, etc., e os católicos mal davam conta para vencer os protestantes; porque a França já não tinha o fervor religioso que a Espanha ainda conservava.

Por todas essas razões o Papa não podia contar também com a França. Ele só podia contar, portanto, dentre as grandes potências católicas, com Felipe II de um lado, e depois com Veneza, que era uma grande cidade marítima, uma república aristocrática, com largo desenvolvimento em todo Mediterrâneo, e com muitos bons navegadores, boas frotas, etc.

Mas, se bem que o poderio de Veneza fosse ponderável o grande poder decisivo era o de Felipe II.

Agora, acontece que, os historiadores reconhecem — mesmo os historiadores que admiram Felipe II, e tem muitas razões para admirá-lo, eu sou um admirador dele — os historiadores entretanto reconhecem que Felipe II era um homem de uma indecisão do outro mundo. Quando tinha que resolver qualquer coisa, tinha vais-e-vens, concordava, depois discordava; e era preciso mandar embaixadores, e era preciso falar, e ele pedia prazo, deixava passar o prazo… Era uma coisa tremenda vencer a indecisão de Felipe II.

E São Pio V estava vendo o perigo crescer e todo o assunto ser resolvido numa sala do palácio real de Madrid ou do Escorial, por Felipe II com seus auxiliares ou sozinho, e no momento em que, em última análise, Felipe II se retraísse de repente, a horda maometana se desatava sobre a Itália, e depois atingia toda a cristandade. Era o fim da Civilização Cristã no Ocidente. E não seria o fim da Igreja porque a Igreja é imortal, mas a que a Igreja poderia ficar reduzida, ninguém sabe.

Pastor [1], que historia esses fatos, conta as tratativas de São Pio V com Felipe II, e ele mesmo diz que constituíram um verdadeiro martírio, [pelo] tanto [que] São Pio V teve que pedir. Felipe II fazia exigências, ele não podia atender. Pedia apoio para uns e para outros, para depois poder atender às exigências financeiras e outras de Felipe II. Afinal conseguia. Felipe II queria mais. Depois Felipe II queria que o Papa mandasse navios e o Papa não tinha os navios. O Papa acabava arranjando os navios. Mandava falar, Felipe II já não queria mandar a esquadra dele. Só os navios da Santa Sé não adiantavam…

Tanto foi a coisa que é certo que se não fosse a pressão de São Pio V, não se teria realizado a batalha de Lepanto, porque a Espanha não teria mandado a esquadra que era o grande contingente decisivo dentro das esquadras aliadas que lutaram e venceram em Lepanto. De tal maneira que os historiadores de São Pio V reconhecem que para ele foi mesmo, ao pé da letra, naquele momento de aflição, um martírio ele lutar naquelas condições, e que ele foi um verdadeiro herói em agüentar a angústia que a situação lhe trazia, e ao mesmo tempo lutar, lutar, lutar até o último momento, para conseguir afinal de contas que a batalha se desse, que as tropas saíssem.

 * No momento decisivo da batalha, Nossa Senhora aparece a São Pio V e lhe comunica a vitória

Aí os senhores compreendem melhor porque razão é que houve a famosa aparição a São Pio V.

Todos os senhores conhecem o caso: São Pio V estava numa reunião de cardeais, em Roma, tratando de qualquer assunto. E em certo momento, enquanto a reunião se desenvolvia, ele se levantou e rezou um terço, e rezou pela vitória dos católicos sobre os maometanos, porque ele tinha a noção de que mais cedo mais tarde deveria realizar-se uma grande batalha, e que seria decisiva para a Cristandade.

Enquanto ele rezava o terço, ou terminado o terço, apareceu-lhe Nossa Senhora Auxiliadora e comunicou a ele que a batalha de Lepanto tinha sido ganha. Ele então foi para o ponto da sala onde estavam reunidos os cardeais e comunicou isso: “Nós podemos nos tranqüilizar. A batalha foi ganha. Há uma vitória. Eu tive uma revelação neste sentido, etc.”

Naquele tempo não se podia discutir que isso era milagre, porque não havia rádio, telégrafo, televisão, não havia nada, e uma notícia dessas levaria um tempo enorme para chegar de Lepanto até Roma. E ele teve no próprio dia, — eu tenho quase certeza disso, —a revelação da batalha. O que quer dizer que foi uma revelação sobrenatural, feita por Nossa Senhora a ele.

Agora, por que a ele? A ele porque ele era o chefe da Cristandade, não tem dúvida. A ele também porque ele tinha sido um verdadeiro herói, e tinha lutado a propósito dessa guerra, e tinha desenvolvido um esforço igual ou maior que o dos batalhadores de LepantoEle tinha sido um herói, verdadeiro herói, como foi Dom João D’Áustria e como foram os outros grandes guerreiros que venceram em Lepanto.

* A verdadeira noção de heroísmo – Os dois maiores exemplos da História, Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora

Agora, alguém me dirá: “Isso, Dr. Plinio, eu não compreendo, porque ele não arriscou a vida, ele ficou comodamente em Roma à espera de que viesse uma noticia. Se ele não arriscou a vida e não combateu não pode ser herói”.

Este é o ponto, o prisma falso que nós devemos tirar de nossa cabeça. Por certo quem luta com as armas na mão é um herói. Mas a doutrina católica jamais admitiu a tese de que esta é a única forma de heroísmo.

O que é o heroísmo? O heroísmo não é apenas o ato pelo qual o homem enfrenta o risco da perda da vida, ou o risco da perda da integridade física. O heroísmo é o ato pelo qual o homem enfrenta qualquer grande dor, ou qualquer grande infortúnio. Isso caracteriza o herói. E há dores morais, como há dores físicas. E às vezes as dores morais atormentam incomparavelmente mais do que as dores físicas. E enfrentar uma dor moral é, muitas vezes, incomparavelmente mais do que enfrentar a dor física.

Nós temos um exemplo da heroicidade que há em enfrentar dores morais na Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo divide-se claramente em duas partes. Uma é a Agonia e outra é de fato a Paixão, em que Ele é preso, torturado, e depois crucificado.

Nessa primeira parte Ele desenvolveu, na Agonia, um verdadeiro e perfeito heroísmo, no mais alto sentido da palavra. Porque todo o sofrimento moral ocasionado pelos pecados da humanidade, pela ingratidão da humanidade, pela maldade de que Ele ia ser vítima, etc., todo esse sofrimento moral Ele teve, a tal ponto que pediu a Deus que se possível fosse afastado o cálice. Quer dizer, Ele chegou a suar sangue diante da perspectiva do que ia acontecer.

É ou não é um verdadeiro heroísmo Nosso Senhor levar a aceitação antecipada da dor e do sofrimento, esta dor moral que Ele teve no Horto das Oliveiras, levar ao ponto que levou? É um verdadeiro e autentico heroísmo, embora ali não tenha combatido fisicamente com ninguém. Mas Ele deliberou aceitar a certeza do tormento e da morte. Mais do que tudo, — foi o que mais O fez sofrer —, Ele deliberou fazer isto apesar da inutilidade por causa daqueles que não corresponderiam à graça e que acabariam se perdendo.

Esta deliberação que Ele tomou de morrer, apesar disso, é uma deliberação heróica. Essa dor de alma que isso lhe causou é uma dor autêntica, embora Ele fisicamente não estivesse combatendo.

Mas ainda, os senhores dirão: “Mas Ele ofereceu o risco da vida dEle, e o risco da vida dEle é um elemento integrante do heroísmo.

Eu digo, é, mas Nossa Senhora não ofereceu. Em Nossa Senhora ninguém tocou. O sofrimento dEla foi todo, de ponta a ponta, um sofrimento moral, sem nenhum sofrimento físico. Ora, Ela é chamada, é invocada, aclamada pela Igreja como Regina Martirum. Quer dizer, Ela é a Rainha de todos os mártires. Porque apesar de Ela não ter sofrido fisicamente, ninguém depois de Nosso Senhor Jesus Cristo, em toda história do mundo sofreu o que Nossa Senhora sofreu, pela Paixão e Morte do Filho dEla.

Quer dizer, nós devemos ver por aí que ter a força de alma para agüentar as coisas terríveis, para agüentar as decepções, para agüentar as calúnias, para agüentar as frustrações, para agüentar, enfim, tudo aquilo que o homem pode agüentar na vida, ter essa força de alma é um verdadeiro heroísmo; e que é uma tolice uma pessoa imaginar que é apenas herói aquele que combate de armas na mão.

* Dois extremos: a maneira de lutar de um varão verdadeiramente católico e um “heresia branca” diante da luta

Alguém me dirá: “Mas Doutor Plinio, vamos e venhamos, na comodidade da sala do Palácio Pontifício qual era o heroísmo? Heroísmo da alma. Era enfrentar esse sofrimento, esse era o heroísmo. É ter lutado com Felipe II em condições tão difíceis, em vez de ter entregue os pontos e procurado não ver o perigo que vinha. Como isso seria normal, como isso seria fácil. Não foi o que ele fez.

A vida dele não corria perigo, porque ele sempre teria onde se refugiar. Ele já estava velho, ele morreria antes de ser pego pelos adversários. Se ele fosse um “nhonhô [2] ” era o que ele pensaria. Mas exatamente porque ele era um santo ele teve o heroísmo de se sujeitar a todas essas coisas.

Os senhores estão compreendem o seguinte: que é “heresia branca” imaginar que toda a luta moral, não é lutaA luta moral do “heresia branca” não é luta. Isso é fato. Mas a luta moral do varão verdadeiramente católico, isso é luta.

Como é que luta um “heresia branca”? “Ahh!, estou eu aqui, Papa já velhinho. Que pena! Ninguém tem pena de mim. Fulano, me traga um chocolate para tomar. Estou tão triste… Me traga também umas pantufas de um veludo bem macio para eu colocar os meus pés já trôpegos sobre essa almofada; eu estou tão velho. Tenham pena de mim. Abram essa janela. Deixe eu olhar aquela pomba que está lá fora. Eu preciso me consolar”. Isso é “heresia branca” evidentemente.

“Mandem-me vir uma rosa. Oh! rosa, tu ao menos me dizes algo que me dá alegria, Pobre de mim…”

É claro, isso não é herói. É um molenga. Esse também não vai enfrentar Felipe II. Pega a carta de Felipe II e diz para o secretário: “Monsenhore, leia e me diga depois o que é, quando eu estiver um pouco mais animado. Agora, me dê um perfume”.

Isso não é um herói. É um palhaço. Um caricato.

Mas fazer como São Pio V fez, não. Isso é verdadeiro herói.

* O agüentar o “rio chinês”, num ziguezague contínuo, exige um ato heróico: “A promessa que Nossa Senhora me fez não falhará”

 O quê devemos entender? Que na nossa vida de todos os dias, que não é uma vida cruenta, em que não estamos diretamente arriscando a nossa vida, nessa existência de todos os dias nós temos ocasiões de praticar verdadeiramente o heroísmo. Inclusive agüentando esse rio chinês que faz com que estejamos ziguezagueando continuamente em torno de algo que nunca chega. Isso é heroísmo.

Como foi heróico o profeta Simeão esperando até a velhice, para afinal ver o Salvador que lhe tinha sido prometido. Como foi Abraão com Isaac. Isso foi heroísmo: esperar até a velhice. Afinal nasce o filho da promessa, etc. Os senhores conhecem o resto da história.

Há uma confiança heróica pela qual a gente não desiste de esperar, apesar de tudo. Essa confiança dói. E a alma às vezes fica num estado que fica em sangue. Esta bem, mas ela continua a confiar. E ela diz: “A promessa interior, inefável, que Nossa Senhora me fez na alma, essa promessa não falhará, eu confiarei e eu cumprirei a minha missão. Vamos para frente. Nossa Senhora me ajude. Eu confio na palavra dEla”.

Qual é a palavra dEla? É uma voz da graça, é uma apetência que nós sentimos que nos leva a todas as virtudes, que nos leva ao amor de Deus. E que como tal nós vemos que tem origem em Deus, e que equivale portanto a uma promessa. É a isso que nós devemos nos dar, é com base nisso que nós devemos estruturar a nossa confiança. E a alma assim pode ter uma confiança heróica, ela vence a batalha.

É por isso que a oração dessa alma é uma oração que move as montanhas.

* “A oração é vitoriosa quando inspirada pela Fé que move as montanhas”

E é por isso também que os senhores vêem que Nossa Senhora só revelou a São Pio V o que tinha acontecido depois dele ter rezado um terço. Quer dizer, Ela quis mostrar que Lhe era tão agradável que ele rezasse um terço, que a oração do terço é uma devoção tão grata a Ela, que é tão grato a Ela que se reze pedindo-lhe aquilo que a gente precisa, e que se reze por meio do rosário, que Nossa Senhora resolveu esperar esta ocasião para dar a esse servo dEla esse enorme galardão.

Nós aí devemos compreender o que é a Fé que move as montanhas. Essa Fé heróica que crê apesar de todas as aparências em sentido contrário. Não desanima, não volta atrás. Continua a lutar ainda que esteja reduzido a um palito, porque sabe que tem mais do que tudo: para lutar tem um terço na mão.

Como essa frase soa “heresia branca” hein!: “Eu tenho como arma o terço”. Entretanto a frase não é “heresia branca”. A nossa principal arma é a oração. E a oração é vitoriosa quando é inspirada pela Fé que move as montanhas. É a expressão de Nosso Senhor no Evangelho: “A Fé que move as montanhas”. Aí os senhores têm bem a imagem do que é o herói.

Os senhores imaginem um santo. Passagem bloqueada para um exército católico. Um santo vai ao pé de uma montanha e começa a cavocar a montanha. Faz um túnel, e milagrosamente levanta a montanha com os dois braços. O exército passa, ele deixa baixar a montanha, abre o túnel e sai do outro lado. Esse santo nós consideraríamos um colosso. Um homem que carregou com as duas mãos uma montanha. Oh! Fantástico!

Seria admirável. Mas mais bonito é carregar uma montanha com a oração, muito mais bonito do que carregá-la com as duas mãos. Isso fez São Pio V por meio de oração. Os senhores aí percebem como é o verdadeiro heroísmo.

* O heroísmo é a aceitação enérgica, com espírito de fé, de qualquer sofrimento, físico ou moral, que põe em risco a nossa vida ou outros bens

Nós devemos ter apetência de derramar o nosso sangue pela Igreja? Pode ser que a graça nos dê essa apetência. Será uma coisa esplêndida. O desejo de derramar o sangue pela Igreja é um desejo de doação total. É magnífico. Eu não tenho palavras suficientes para encorajá-los. Os mártires tinham esse desejo, e muitos morreram na alegria do sacrifício que eles faziam.

Porém o que eu não posso aceitar é que se entenda que essa é a única forma de heroísmo, que outras formas de lutar pela Igreja não são verdadeiro e autêntico heroísmo. Esse aspecto nós temos que tirar de nosso espírito.

Então o que é o heroísmo? É a aceitação enérgica, firme, com espírito de fé, de qualquer sofrimento extraordinário, seja esse sofrimento qual for, físico ou moral, que põe em risco a nossa vida, a nossa integridade física, ou põe em risco outros bens. Isso é heroísmo.

Os senhores todos ouviram dizer de um caso que se contava aqui no Brasil antigo. Eu creio que chegou aos ouvidos dos senhores. De um padre a quem um assassino contou que tinha morto ou acabava de matar — contou em confissão — alguém na Igreja. E pediu absolvição. Ao padre pareceu que ele estava contrito e deu absolvição a ele, mas levantou-se logo depois para ir ver na Igreja — cidadezinha do interior, muito de manhã cedinho, a Igreja ainda vazia — quem estava morto. Estava ali um homem com um punhal.

O padre começou a tirar o punhal. Entram pessoas, começam a gritar… o padre tinha morto esse homem. O padre foi processado, condenado, foi preso, e passou muitos anos na prisão, tido como um sacrílego, um padre assassino, degradado, infame. Ele sabia que era inocente. Mas como o assassino tinha fugido ele não podia acusar o assassino, ele aceitou toda essa pavorosa humilhação. Mas ele não contou quem era.

“X” anos depois disso, digamos dez anos depois disso, em certo momento ele vê chegar à cadeia onde ele cumpria a pena, música, manifestações, brados de viva ao nome dele etc.

O que era? Era o assassino que antes de morrer tinha contado que ele era o assassino e que o padre era inocente. Então o padre foi absolvido e foi reintegrado no exercício do ministério sacerdotal. Mas dez anos, ou vinte anos de uma situação moral horrorosa.

Esse padre arriscou a vida? Não. Ele sofreu pancadas? Não. Mas ele sofreu muito pior do que isso. Eu acho que vários dentre os senhores preferiam morrer a passar por isso. Ele foi ou não foi herói? Um autêntico herói. Quer dizer, heroísmo é a disposição de agüentar qualquer sofrimento enorme, por amor a Nossa Senhora. Isso foi o que São Pio V agüentou. Ele foi herói.

Então compreendamos o valor do heroísmo ainda que incruento. E admirando enormemente aqueles a quem Deus pede que dêem o seu sangue na luta pela Igreja, compreendamos que Deus a muitos pede o sangue da alma, e que a esses Ele pede tudo, como pede aos que dão sangue pela Igreja, pela Civilização Cristã.

E assim, tenhamos ânimo em conduzir o sofrimento de nossa vida, desde que não seja conduzido a la nhônhô, porque então deixa de ser sofrimento.

É assim: “Eu estou sofrendo, quero sofrer isto porque não há outro meio para chegar à finalidade que eu tenho em vista a não ser sofrer isto, mas eu olho de frente tudo que estou sofrendo e meço grão por grão, milímetro por milímetro, todo o sofrimento que eu tenho que aceitar. Está bem, aceito. Nossa Senhora me ajude e me dê forças. Isto eu quero, porque o resultado vale mais do que o que eu sou”.

Isso é, quando se trata de um grande sofrimento, o sofrimento heróico.

Assim, fica essa consideração sobre o heroísmo e com ela nós podemos encerrar essa parte da reunião.

 

NOTAS

[1] Ludwig Pastor, posteriormente Ludwig von Pastor, Freiherr von Campersfelden (31 de janeiro de 1854 – 30 de setembro de 1928), foi um historiador alemão e um diplomata para a Áustria. Ele se tornou um dos mais importantes historiadores católicos romanos de seu tempo e é mais conhecido por seu History of the Popes. Foi nobilitado pelo imperador Francisco José I, em 1908.

[2] “Nhonhô” – Antiga forma de tratamento dos escravos para com os senhores ou dos serviçais para com as crianças do sexo masculino. Por analogia se usa o termo nos ambientes internos da família de almas de Plinio Corrêa de Oliveira para designar pessoas caprichosas, preguiçosas, acostumadas a terem seus caprichos atendidos sem maior esforço pessoal.

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