Santo do Dia, 16 de março 1967
A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
São Patrício (Vitral do transepto norte da Catedral de Carlow, Irlanda. Vitral de Franz Mayer, séc. 19)
Amanhã é dia 17, nós temos a festa de São Patrício. No livro de Ernest Hello, “A fisionomia dos Santos”, há alguns dados biográficos a respeito de sua figura.
“São Patrício é, sem dúvida alguma, um dos santos mais extraordinários, de vida mais extraordinária que se conhece. Aos 12 anos foi raptado por piratas e levado para a Irlanda”.
Quem era raptado por piratas era feito escravo.
“Aí foi feito pastor, recebendo o dom da oração. Ajoelhava-se no meio do campo e rezava, cercado por seus animais”.
Os senhores sabem que a grama da Irlanda é extraordinariamente verde, é de um verde famoso e cobre grande parte da Irlanda. De maneira que os poetas antigos comparavam a Irlanda com uma esmeralda encastoada no mar ao norte da Europa. Os senhores imaginem que cena bonita: São Patrício, pequeno, mas já com cara de santo, pastorzinho pobre e humilde, rezando sobre a relva esplendidamente verde da Irlanda e os animais fazendo círculo em torno dele, ou a protegê-lo ou a contemplá-lo. Isso são das tais cenas da hagiografia da Idade Média, que dão para Fioretti, dão para iluminuras, dão para vitral de catedral, dão para uma porção de coisas. Porque a história e a fantasia se reúnem aí para a realização de um aspecto magnífico do poder da candura, do poder da oração, do poder da inocência quando fortalecida por carismas vindos de Deus. Continua:
“Depois de seis anos…
Portanto, seis anos dessa forma pastoral tão encantadora.
… sai dessa região fazendo várias viagens cheias de peripécias e se tornou novamente escravo”.
Quer dizer, ele tinha conseguido fugir e se tornou escravo de novo.
“Enfim, chegou ao mosteiro de São Martinho de Tours. E como sempre sentira que sua vocação…
São Martinho de Tours é na França.
… estava na Irlanda, partiu para evangelizá-la. Mas tal era a via estranha porque Patrício era conduzido, que apesar de seus desejos, de sua santidade e de seu zelo e do chamamento sobrenatural de que era objeto, fracassou completamente. Foi tratado como inimigo”.
Os senhores estão vendo, portanto, a coisa tremenda! Como Deus prova os seus santos, fazendo com que eles caminhem por uma porção de lados, sem conseguir o objetivo que o próprio Deus tem em vista. Num belo momento esse objetivo lhe vêm às mãos. Aí a gente compreende como a TFP sofre dificuldades, como é natural que no nosso apostolado tenhamos revezes. São os que não são santos que progridem rapidamente nas suas obras de pseudo apostolado, porque não faz apostolado a não ser quem é santo ou, pelo menos, quem tende para a santidade e admira a santidade com todas as veras de sua alma.
“A hora não era chegada, e a Irlanda não estava pronta. Patrício volta à Gália…
Que é a antiga França.
… onde passa três anos sob a direção de São Germano de Auxerre. Depois retira-se para a solidão da Ilha de Lerine”.
Os senhores vêem quanto esse homem viaja e quantas curvas têm a vida dele antes dele voltar para a Irlanda. Ele vai para a Gália, aprende ali com um santo as vias da vida espiritual, depois se torna eremita, se distancia ainda mais da Irlanda porque vai para Roma.
“Onde o papa São Celestino lhe dá a benção apostólica. E ele retoma então o caminho da Irlanda, ai aportando em 432. Logo dirigiu-se à assembléia geral dos guerreiros da Hibérnia.”
A Hibérnia era o antigo nome da Irlanda. Os senhores imaginem que bonita [cena], no meio da natureza suave da Irlanda, uma assembléia geral de guerreiros para deliberar a respeito das coisas da nação. Eram os nobres — os guerreiros eram os nobres da nação —, e compareciam a essas assembléias revestidos de todas as suas armas. E votavam com as armas; e quando a votação não dava certo, brigavam com as armas também. Quer dizer, estavam prontos para isso, era o regime de barbárie. Reunida ali essa assembléia, reunido também o colégio dos druidas, que eram os sacerdotes pagãos da Gália e da Irlanda, que eram a mesma raça, se apresenta afinal São Patrício.
Narra que ele atacou de frente o centro religioso e político da nação.
“Perante todos os seus inimigos agrupados, pregou ele a fé.”
Os senhores vejam que destemor. Nada de meias medidas, de panos quentes, de recuos; ele era um santo e tinha o poder dos santos.
“A datar desse momento, as maravilhas se sucederam com rapidez. Conversão de famílias reais inteiras”.
Naturalmente, famílias reais a gente precisa entender: eram os chefes de tribo. Federações de tribos. Nós não podemos pensar, nem um pouco, numa princesa como, não sei, como as filhas de Luís XV pintadas por Natier, quando nós pensamos nessas princesas reais. Nós devemos pensar na nossa Paraguaçu (*), umas paraguaçus louras, mas umas autênticas paraguaçus. Enfim os senhores imaginem a selvageria dessas hordas; São Patrício chega e prega, e prega de frente dizendo todas as verdades. Os guerreiros começam a ficar pensativos, depois contritos, as mulheres começam a mudar de atitude, a admiração pelo santo desperta e depois o batismo de famílias reais inteiras seguidas das respectivas tribos. Os senhores vejam que cena linda, que aurora da graça verdadeiramente maravilhosa.
“Aquela Irlanda se transforma rapidamente na ilha dos santos”.
É como a Irlanda foi conhecida durante séculos.
“Naquela terra onde outrora fora escravo, Patrício anda agora como conquistador triunfante. Reis e povos e também poetas vêm a ele porque a Irlanda é umas das mais antigas pátrias de poesia”.
Os senhores sabem que a cítara em que cantavam os bardos irlandeses e do País de Gales faz parte até da bandeira irlandesa, é uma harpa pequena. Os senhores vejam, portanto, que beleza, é o maior cantor que a Irlanda teve que se cristianiza.
“O Homero da Hibérnia inclinou os velhos heróis ante o estandarte do Deus desconhecido. Então, diz o velho autor…”
– e vejam os senhores a beleza do pensamento:
… os cantos dos bardos ficaram tão belos com a conversão, lucraram tanto em sua beleza —agora vem a coisa linda—que os Anjos de Deus se inclinavam na beira do Céu para os escutar.”
Essa idéia dos bardos cantando na terra e do Céu aberto, como se fosse uma clarabóia, revoadas de Anjos ouvindo aquela voz, tem uma indiscutível poesia que dá um aroma e uma força de atração verdadeiramente extraordinária, como bem definiu certo escritor do séc. XIX chamando a Idade Média de “doce primavera da fé” (**). Como tudo isso parece com a primavera! É uma energia que nasce, que [tem] todo o dinamismo para crescer, que vence todos os obstáculos, que ilumina tudo como um sol que vai nascendo, ou como uma boa estação do ano que vai entrando. Os senhores vêem como é diferente a situação, o dinamismo desse apostolado tantas vezes em nossos dias.
“Entretanto, as invasões dos piratas desolavam a Irlanda. Patrício escreveu a Corotido, chefe da quadrilha”.
Vikings invadindo a Inglaterra (Iluminura do livro “Miscellany on the life of St. Edmund” séc. 12)
Eram piratas — um susto para aquelas populações! — em navios vindos da Dinamarca, Noruega e Suécia — quão mudadas daquele tempo para cá; eram os reis do mar! — nações inteiras que entravam no mar, em pequenas esquadrilhas, com aquelas naus com proas monumentais, com aquelas velas bonitas, rápidas, que singravam pelos mares e que desembarcavam suas hordas nas praias e iam devastando os povos, as terras. Então, um tal Corotído, ou Corótido, não sei como se pronuncia isso – estava por lá e Patrício escreveu o seguinte:
“Patrício pecador ignorante, mas coroado bispo de Hibérnia…
Vejam que linda a idéia de que o bispo é coroado como um rei.
… refugiado entre as nações bárbaras por causa do seu amor a Deus, escrevo de próprio punho essas letras para serem transmitidas aos soldados do tirano”.
Logo de uma vez “tirano”.
“A misericórdia divina que eu amo não me obriga a agir assim para defender aqueles mesmos que não há muito me fizeram cativo e trucidaram os servos e as servas de meu pai?”
Quer dizer, ele, portanto, enfrentou e mostra os desígnios de misericórdia da Providência ali. Ele prediz que a realeza de seus inimigos será menos estável que a nuvem e a fumaça. Em presença de Deus e de seus santos acrescenta:
“Atesto que o futuro será tal qual eu o hei previsto.”
Quer dizer, ele, portanto, ameaça que não adianta atacar porque eles vão perder o que estão querendo conquistar.
“Alguns meses depois, Corotido acometido de alucinação mental morria no desespero.”
Os senhores podem imaginar o desespero do Corotido, mandando gente, golpeando-se a si mesmo, gagá solto? Era o resultado da maldição de São Patrício.
“Os inimigos de Patrício caíam mortos, os amigos ressuscitavam. Os túmulos pareciam um domínio sobre o qual ele tinha direito”.
Quando se tem esse direito sobre o túmulo, quando se abre e se fecha a porta da morte dessa forma, o que mais?
“À sua chegada a Irlanda, os demônios, diz um historiador do século XII, fizeram um círculo com que cingiam toda a ilha para lhe barrarem a passagem. Patrício levantou a mão direita, fez o sinal da cruz e passou adiante”.
Lindo tema para uma iluminura, não é? Um barquinho com São Patrício na frente, com um pé colocado mais para frente e outro para trás, um halo de santidade enorme, frágilzinho e uma sarabanda de demônios correndo. Para pintarmos os demônios pediríamos o auxílio da arte moderna, que isso realmente pinta como é. São Patrício com uma benção — segundo quadro —, os demônios entrando pelo mar adentro, saindo fogo das pernas deles enquanto de ponta cabeça caíam no mar; monstros marinhos fugindo espavoridos de todos os lados porque os demônios até aos monstros causam horror. E o barquinho de São Patrício ancorando sereno na Irlanda, ele descendo, amarrando o barquinho e subindo o caminho… Eu lamento não saber pintar iluminuras para pintar coisas dessas.
“Depois derrubou o ídolo do sol ao qual as crianças, como ao antigo Moloc, eram oferecidas em sacrifício”.
Isso eu gostaria muito mais de pintar. Um ídolo horrendo, em pé, com uma atitude… sanguinária, uma mãe que entrega espavorida sua criança, adoradores infames diante do ídolo, ao lado restos de cadáveres de crianças mortas; São Patrício que entra — segundo quadro — e faz o uso da palavra violentamente; terceiro quadro: derruba o ídolo; quarto quadro: a população que festeja. Não há melhor. Assim é que se tocam as coisas para frente. Mas para isso, meus senhores, é preciso ser santo.
Uma vez perguntaram a Napoleão — e podem imaginar o cretino que fez a pergunta — porque ele não se fazia aclamar como Deus. Napoleão deu essa resposta: olhe, meu caro, depois de Jesus Cristo só há um jeito para a gente ser Deus: é pegar a Cruz, subir ao Calvário e fazer-se crucificar. E eu não tenho vontade disso. Porque depois dEle ninguém toma a sério outro Deus. – É bem verdade. Assim também, para fazer essas coisas é preciso ser santo. Se fôssemos santos poderíamos, talvez, fazer coisas dessas.
São João Bridlington no Purgatório de São Patrício (Ilustração do livro “The Vision of William of Stranton”, séc. 15, British Library)
É uma grande classe uma caverna numa ilha. A ilha já é uma coisa que se distingue, que se separa do mais, que tem um prestígio próprio. A caverna dentro da ilha é uma caverna cercada de um duplo mistério: mistério das trevas e a barreira das águas, posta num isolamento. Lá vai ele, então.
“Nessa caverna viu [inaudível] as cenas do outro mundo: de um lado apareciam os anjos com um cortejo inaudito de esplendores, de outro os aspectos dos ídolos e todos os monstros que adorara a Irlanda idólatra, seguidos dos terrores e dos horrores que não se podem imaginar. Encerravam-se ali por dois dias os penitentes voluntários que reclamavam seu purgatório na terra e ninguém sabe a história exata das 48 horas que aí passavam.”
Está confuso esse trecho, não se entende o resto infelizmente. Vamos ver se amanhã se traz o texto integral para podermos dar a explicação.
“Atribui-se ao bastão de São Patrício o poder de enxotar as serpentes. Esses animais são, ao que parece, desconhecidos na Irlanda e sua ausência é atribuída a uma benção particular: a benção do bastão que São Patrício segurou nas mãos”.
Por que não pedimos um pouco dessa relíquia para o Brasil? Positivamente é falta de imaginação. Pelo menos para a Fazenda do Morro Alto, a gente andar com a cruz de São Patrício na ponta de um bastão…
A figura desse santo assemelha-se um pouco a esses navios que a gente vê se distanciarem da pátria: durante algum tempo segue-os a vista distintamente; mas o céu e o mar se confundem no horizonte e logo o navio parece desaparecer ao mesmo tempo no céu e no mar confundidos. Assim também São Patrício no céu e nos mares da Irlanda. É uma linda vida a qual nada há que acrescentar.
(*) Catarina Álvares Paraguaçu foi uma índia Tupinambá nativa da região onde hoje é o estado da Bahia. Segundo a certidão do batismo, realizado em junho de 1528, em Saint-Malo, na França, e encontrada no Canadá, seu nome verdadeiro seria “Guaibimpará” e, não, “Paraguaçu” (nome que significa “mar grande”), como escreve o Frei José de Santa Rita Durão em seu poema Caramuru.
Teria sido oferecida por seu pai, o cacique, como esposa ao náufrago português Diogo Álvares Correia, o Caramuru, que gozava de grande proeminência entre os Tupinambás da Bahia. Adotou o nome cristão de Catarina do Brasil. É considerada a mãe biológica de boa parte da nação brasileira. Faleceu em idade avançada por volta de 1586 e elaborou testamento existente até hoje no qual deixa seus bens para os monges beneditinos. Seus restos mortais repousam na Igreja da Graça, em Salvador.
(**) “ô doux printemps de la foi” – Histoire de Sainte Elisabeth de Hongrie, Montalembert, Jacques Lecoffre et Cie, Neuvième édition, Paris, 1861, pag. 253.