São Martinho de Porres (3/11): placidez, amabilidade, severidade e tom santamente aguerrido

Auditório São Miguel, 21 de dezembro de 1984, sexta-feira, Santo do Dia

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo“, em abril de 1959.

 

 

Há um princípio de que me parece ter visto aplicações em mais de uma fotografia, monumentos góticos etc., e que é o seguinte: quando figura na fotografia um elemento muito bonito, vamos dizer, por exemplo, uma bela torre audaciosa de catedral ou de castelo,  –  qualquer coisa que se ponha em volta, por um pouco de beleza que tenha como que se resplandece com aquilo e toma com aquilo uma beleza própria, ainda que seja muito desproporcionada.

A beleza de uma torre depende de várias circunstâncias. Fundamentalmente, tanto quanto eu possa entender do assunto  –  eu não sou arquiteto, falo aqui diante de arquitetos  –  depende de uma proporção bonita entre a largura da base e a altura. Quando essa proporção está encontrada, nós estamos na presença de uma bonita torre. Sobretudo se a torre é feita de um belo material, por exemplo, belas pedras de granito resistentes ou qualquer outra coisa, ela lucra ainda mais.

Nós podemos imaginar uma torre de catedral ou de castelo. Se pusermos bem alta a torre, vamos imaginar uma torre de catedral, mas aonde não haja construída senão ainda a torre, toda a catedral está para fazer. Bem junto à torre da catedral, colada nela, uma primeira capelinha, pequenininha, como que aconchegada à torre. Pode ser que pela proporção, fique muito bonita a coisa. Embora a torre seja enorme e a capelinha seja muito pequena, pode-se imaginar um jogo de proporções em que a capelinha fique encantadora ali, encostada na torre monumental.

Mas nós podemos imaginar também, em vez de uma capelinha pequena, duas capelas ou dois desenvolvimentos do futuro prédio, de tamanho médio que tenham proporção com a torre e que como que completem a torre e seja uma primeira transição entre a torre e o chão, de maneira que a torre não fique tão isolada, mas tenha como que duas caudatárias que lhe carregam a majestade. De si, se não houvesse a torre, aqueles dois edifícios colaterais poderiam ser comuns, mas porque está ali a torre, eles tomam uma beleza própria, um encanto próprio. A torre é que os realça. Eles, por uma certa proporção dão um como que realce à torre também.

Os senhores podem imaginar que das torres partam não as muralhas ou muros ou as paredes de uma catedral, mas as muralhas de um castelo. Então os srs.  poderiam imaginar muralhas altas e, de vez em quando das muralhas se desprende outra torre e outra torre, e outra torre, e dão a volta na praça forte inteira. Essas torres são como que as irmãs mais moças da grande torre central. Pelo número delas, pelo destaque que elas tomam da muralha, formando quase uma coisa separada da muralha; pelo acabamento delas, elas podem constituir com a torre capital um conjunto muito bonito. Quer dizer, dado um determinado elemento, por pouco que os outros elementos relacionados com esse sejam belos, o primeiro sendo muito belo espalha em torno de si uma certa beleza, difunde em torno de si uma certa beleza, uma certa grandeza.

Isto que se dá com as torres e se dá na arquitetura, se dá também na história. Aparecem, na história, certos personagens que são como torres. Alguns são esguios, se elevam com finura, com inteligência, com subtileza, como minaretes. Outros, pelo contrário, são atarracados e fortes e parecem garras que se elevam até ao céu. Outros são proporcionados, nobres, equilíbrios e parecem marcar a cadência dos tempos e a ordem das coisas.

Os senhores estão vendo bem que, quando eu falo destes últimos, eu estou pensando, sobretudo, num Carlos Magno. Diga-se dele o que se disser, pense-se o que se pensar, ele é a grande torre a partir da qual se constrói toda a muralha do Ocidente cristão: é o grande Carlos, Carlos o Grande, respeitado por todos os homens até por aqueles que o injuriam. Eu função dele, em comparação com ele é que os outros tomam realce. Roland, Olivier, Turpin… tantos outros, por que é que são tudo o que são? É porque são em função dele. É verdade que a glória dele recebe algo de Turpin, de Olivier, de Roland e dos outros… é verdade. Mas o que ele dá é muito mais do que o que ele recebe. Os outros são célebres por causa dele. Ele não é célebre por causa dos outros. Ele é célebre porque ele é ele. E dele irradia uma determinada luz que cobre o seu século, cobre a sua entourage, cobre o seu século com o seu esplendor.

Nós podemos dizer assim, em nível mais modesto, que há grandes personagens que aparecem na história de um povo e que a gente vê que o personagem é tanto que se tem a impressão  –  é uma mera impressão  –  que todas as forças vivas da nação concorreram para produzir aquele. E que quando aquele passar, a nação entra numa espécie de período de cansaço: foi tal o que ela deu para aquele, e tal o esforço que ela fez para acompanhá-lo, para segui-lo, para apoiá-lo, para carregá-lo, que durante algum tempo a nação vai viver, agradavelmente, na glória desse passado… até que, se esta for uma nação amada por Deus, mais adiante reaparece outro e mais outro e mais outro.

Aí há a observação de um fato meramente natural. Mas há algo de análogo, muitas vezes, entre os fatos naturais e os fatos sobrenaturais. Com o sobrenatural se dá isto também: em determinado lugar, em determinada zona, de repente a Providência suscita um santo. Este santo se ergue ali admiravelmente como o padrão da perfeição espiritual de terminada época, e dos homens de determinada época. Ele como que personifica toda a virtude da época. As pessoas, para elogiarem os seus contemporâneos, dirão: “este aqui foi discípulo de São Tal…  a este outro ele agradou tocando com a mão na cabeça quando era pequeno, aquele outro ainda recebeu dele um santinho no dia da primeira Comunhão e o guarda consigo em todos os dias da sua vida…”

São repercussões e ressonâncias daquela santidade que se multiplicam pelos tempos, pelos tempos e pelos tempos, fazendo com que as figuras ou as recordações religiosas mais augustas não fiquem mal perto daquele santo.

Eu recebi, há dias –  foi o bureau de Roma que me mandou – uma teca de que eu falei aos senhores e que contém uma relíquia de uma ponta de um espinho da coroa de Nosso Senhor Jesus Cristo; uma fímbria de uma túnica que o Menino Jesus vestiu; contém um fio da túnica ensanguentada de Nosso Senhor Jesus Cristo.

O que de mais alto do que isso? Não se pode imaginar! Não se pode imaginar! Está bem, mas juntamente com isso, como estas relíquias eram fornecidas por uma religiosa dominicana  –  o membro do bureau que me trouxe da Itália esta teca, pelo regulamento, pelos hábitos ou pela tradição (não sei bem) do convento dominicano, era preciso que junto a essas figuras ou relíquias augustíssimas figurasse também uma relíquia de um santo dominicano. Se não, não seria entregue. Então, colocaram junto a relíquia do santo  –  um santo feio  –  Martinho de Porres.

Os senhores podem imaginar a desproporção de qualquer pessoa, inclusive são Martin de Porres com essas três relíquias augustíssimas? Não se diria que ele ficava “deplacé”, que ele figurava deslocado, mal colocado, que deveria ficar quase humilhado e envergonhado de ter uma relíquia sua colocada com essas, tão, tão altas? Se não fosse erro do português, eu em vez de dizer dessas supremas, eu diria destas tão supremas como estas que eu acabei de mencionar? Entretanto, quando eu soube qual era a quarta relíquia, São Martin de Porres, eu tive um pouco de surpresa, por que não esperava encontrar relíquias de um santo junto com essas. Imediatamente depois, eu sorri encantado.

São Martin de Porres,  –  eu me lembro bem da fotografia de um quadro dele, que eu tenho guardado,  –  feio como uma miséria… com traços irregulares, quase vulcânicos e com uma peculiaridade que custei a explicar-me a mim mesmo: eu olhava no rosto dele e notava algo de díspar, porque de um lado ele me fazia uma impressão e, doutro lado, outra impressão. Acabei aplicando uma folha de papel sobre o rosto, isolando uma metade e depois outra metade. Aí eu percebi que ele tinha duas fisionomias conjuntas: uma plácida, amável etc., de um lado; e outra, severa e santamente aguerrida do outro lado. E que essa disparidade criava alguma dificuldade para a vista: como é que um homem pode ter assim duas fisionomias e duas caras? Mas olhando para ele, no total, é São Martin de Porres, canonizado pela Igreja. São Martin de Porres, rogai por nós!

Algum tempo depois, caiu-me nas mãos uma biografia dele. Até uma biografia ligeira, dessas que se fazem para distribuir assim, gratuito, numa porta de igreja ou qualquer coisa. Mas como eu tinha uma relíquia dele e tinha, de outro lado visto a fotografia dele e me tinha interessado muito, eu resolvi ler a biografia. E foi aí que eu li, entre outros fatos, esse fato simplesmente encantador. Ele não era padre, era irmão leigo de um convento dominicano. Um dia, creio que foi nos arredores de Lima, no Peru, se não me engano, ele e um grupo de dominicanos, com licença dos superiores, saíram para fazer um passeio nos arredores da cidade, para fazer um pouco de excursão, espairecerem um pouco, foram todos a pé. E quando chegou determinada hora, eles viram que tinham andado demais e que não tinham meio de voltar para o “Angelus” como era a ordem que eles tinham recebido do superior. Então, da parte desses bons dominicanos, muita surpresa e susto: que fazer?

São Martinho de Porres diz:  não nos alarmemos, vamos dar todos as mãos uns para os outros e tudo se arranja. Rezou e todos eles se elevaram pelo céu… E verdadeiro precursor da aeronáutica, sobrevoaram a cidade (devia ser uma pequena cidade colonial, fosse ou não fosse Lima). Os senhores podem imaginar o espanto da cidade, vendo aquele cordão de dominicanos andando pelos ares e depois baixando suavemente no claustro, de maneira que quando chegou a hora dos “Angelus” estavam em fila para fazer parte do “Angelus”.

A cena me parece encantadora, ligeira, é um verdadeiro “Fioretti”. Merecia ser pintada por Fra Angélico. Eu gostaria de ver Fra Angélico pintar a cidadezinha colonial, depois todos os frades com cara de anjo, olhando uns para outros e na ponta da fila São Martinho de Porres e todos andando sem nenhum medo de cair, sem nenhum medo de se precipitar para baixo nem nada: calmos, tranquilos e depois aportando no convento e, se não tivessem visto ele descer, eu tenho a impressão que eles não diriam nada a ninguém, nem comentavam nada para evitar qualquer vanglória ou qualquer vaidade. Agradeciam a Nossa que tão gentil e maternalmente os atendeu num momento de perplexidade.

Aí os senhores veem reproduzida a analogia entre a torre e a capelinha. Nosso Senhor Jesus Cristo… como compará-lo a uma torre? Ele é tão, tão grande, tão perfeito, tão incomparável, que não pode ser comparado nem sequer a uma torre. Mas, enfim, digamos, que Ele tenha sido a torre entre os homens e que os maiores dentre os homens não sejam nem sequer capelinhas junto a Ele, tal a sua perfeição, a sua… enfim, Ele!

Está bem, mas junto a três relíquias dele, uma quarta relíquia do servo de Deus, do Santo Martinho de Porres, humilde irmão leigo de um convento dominicano, de uma terra naquele tempo hirsuta e ainda caipira, como eram todas as terras da América do Sul, mas que fez esta coisa incomparável: precursor da aviação, ele voa com seus irmãos pelos céus e resolve um problema, naturalmente, pela oração dele. Nossa Senhora quis glorificar um santo e o glorificou desse modo encantador.

Tem ou não tem proporção, por pequenino que ele seja em comparação com a infinitude de Nosso Senhor Jesus Cristo? Tem ou não tem proporção colocar a relíquia dele junto com as outras, nessa teca? A resposta é: São Martinho de Porres, rogai por nós! Não há outra resposta.

Eu digo isto para que nós tomemos em consideração que, assim como em nossa última reunião nós falamos de um tema muito pouco natalício e do qual eu não vou tratar, portanto (nós já nos estamos aproximando das alegrias do Natal), um tema que não vou tratar, que é o boato e como ele corre e como ele voa…

Eu estou para trazer na próxima reunião, para os senhores uma poesia de Beaumarchais, do “Figaro”… Aliás, era bom o meu bom Fernando se lembrar disso e trazer para ler aqui com eles. Mimeografar e passar para eles acompanharem… O Beaumarchais descrevendo a marcha da calúnia, do boato difamador, como é que circula etc., etc., com muito espírito, muito bem descrito. Mas nenhum de nós quer sentir o mau hálito do boato e falar do bafo nojento da Revolução, quando nós estamos nos aproximando do santo Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo. Chega! Por um momento, acabou!

A festa do santo Natal, como a festa de Páscoa, tem este privilégio: (ao menos a impressão pessoal que eu tenho) elas interrompem o tempo e pode a pessoa estar na situação aflitiva que estiver, chegou o Natal, se abre um paredão – desgraças de um lado, lágrimas de outro, bimbalham os sinos, o Natal começou! Cristo nasceu, alegria para todos os homens!

Uma alegria que não é a alegria vulgar do homem que fez um bom negócio, do homem que deu uma tacada política e venceu, do homem que megalou e no qual os outros acreditaram, do homem que… do homem que… tirou uma loteria ou que faz qualquer outra coisa. Não. É uma alegria muito mais interna, uma alegria muito mais leve, uma alegria feita de luz, enquanto as outras são feitas de, não sei, de coisas palpáveis e de segunda ordem. Uma alegria toda ela feita de luz e de uma luz que é o “lumen Christi”, a luz de Nosso Senhor Jesus Cristo que brilhou uma vez na terra, na noite de Natal, e nunca mais, de ano em ano, deixou de brilhar, trazendo uma verdadeira alegria e uma verdadeira paz de alma até para as pessoas mais atormentadas.

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