Eremo do Amparo de Nossa Senhora, almoço, 28 de abril de 1987
A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério tradicional da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
A diferença de panorama entre São Luís Grignion (1673-1716) e nós é de um gênero especial e levanta uma questão muito particular, a respeito de cuja solução eu hesito.
São Luís viveu numa mediocridade de ambiente terrível, precursora – mas precursora um tanto remota – da tragédia. Ele viveu nas primeiras décadas do século XVIII – XVII e primeiras do século XVIII –, e chegou a discernir, portanto, uns fulgores da tragédia que se abateria sobre o mundo no fim do século XVIII que era a Revolução Francesa. Ele [viu] alguma coisa disso e com uma luz toda profética a respeito dos acontecimentos que viriam; e aliás, pedia à Providência castigos etc., etc., – que muito “heresia branca” estremeceria ao ler no texto dele.
Mas isto não marcava o ambiente em que ele vivia, o ambiente era refratário a estas considerações. E nestas condições era ambiente aferrado à mediocridade. Uma mediocridade que ele descreve em tintas trágicas, quando ele diz que bastava para arrolar homens para qualquer coisa na terra, como por exemplo, para conseguir obter tal e tal riqueza, em tal e tal parte do mundo, para conseguir uma honra, uma vantagem em tal outra parte do mundo; que bastava rufar um tambor, bastava tocar um clarim, bastava etc., para os homens aparecerem em multidões.
E quando se convocava para o serviço de Deus, pelo contrário, os homens eram indolentes etc., tudo o mais que os senhores conhecem.
Agora, isto ele via – mas o ambiente dele não via –, ele denuncia mesmo como que para um ambiente que não vê, como que acusando o ambiente de não ver o que ele dizia, meio pasmo de ninguém ver uma coisa que era tão evidente.
De maneira que, o quadro que o ambiente tinha diante de si, era um quadro de mediocridade em que o ambiente todo queria ver, por má-fé, mediocremente alguma coisa que tinha muito de grandeza já, se nós considerarmos a enormidade do pecado que se cometia e a enormidade da punição que estava germinando em toda a Europa. Esse era o quadro diante do qual ele estava.
Então os homens entre os quais ele se movia, eram homens medíocres.
Os senhores dirão: “Mas, Dr. Plinio, é um absurdo. O século XVIII foi exatamente o século das luzes, foi o século do bom gosto, século da arte, o século da quintessência. O senhor diz que era gente medíocre?”
Eu digo: como horizontes sobrenaturais é precisamente o que eles eram! E esses são os horizontes fundamentais, o resto é acessório, vive de, se interpreta em função da amplitude dos horizontes sobrenaturais. O horizonte sobrenatural é o fundamental dos horizontes de um homem. Nesse horizonte eles eram terrivelmente medíocres.
* Um reflexo da mediocridade na sociedade em que vivia São Luís Grignion era a imprevidência em não ver a Revolução que se aproximava
A mediocridade se vê pela imprevidência completa, exatamente nas camadas mais cultas e mais brilhantes da sociedade, até nas vésperas da Revolução Francesa. Imprevidência que foi uma das causas da vitória da Revolução. A mediocridade deles foi um dos fatores da derrota deles. De tal maneira eles eram medíocres, no sentido fundamental da palavra.
Bom, isto posto, e ele tinha de sentir essa mediocridade de seu ambiente. E o mundo no qual ele vivia era um mundo de mediocridade.
A mediocridade faz sofrer, porque ela põe o homem de grandes voos, de grandes horizontes, numa posição a mais desagradável que pode haver. Porque se ele se manifesta, ele é tido mais ou menos como extravagante, um iluminado, um alucinado que vê coisas que ninguém vê, um homem meio gagá que não tem a boa noção, a reta noção das coisas e que, portanto, vive procurando fantasmas e um inoportuno, porque não há nada de mais desagradável do que viver apontando fantasmas onde eles não existem.
Agora, se ele não se manifesta, ele vive encerrado em si mesmo, num enclausuramento que é a pior solidão de um homem!
* Os eremitas do deserto sofriam menos que São Luís Grignion, pelo simples fato de saberem que havia no tempo deles uma sociedade que não era medíocre
Os senhores considerem os eremitas do deserto, eles viviam sozinhos, cada qual na sua gruta, mas eles sabiam que a alguma distância deles, a grande distância para quem se movia com os meios de transporte daquele tempo, estavam cidades, entretanto esplêndidas, magníficas e que participavam – se não das virtudes deles – ao menos das convicções deles, da fé deles. Eram cidades que todas estavam convertidas, tinham ficado católicas, com as quais eles tinham um certo uníssono.
Pelo contrário, São Luís Grignion de Montfort não. O homem previdente no meio dos imprevidentes não é como uma torre na planície; ele faz o papel de um espantalho no meio da plantação! Essa é a realidade! “Espantapájaro” [em espanhol, n.d.c.], é espanta pássaros!
Isto posto, ele tinha um sofrimento especial e o gemido da dor dele se sente, com uma eloquência de órgão, com a sonoridade vibrante de órgão –– o órgão tem às vezes gemidos de dor magníficos –– lendo o “Tratado da Verdadeira Devoção”, “A carta Circular aos Amigos da Cruz”, sobretudo a “Oração Abrasada”.
* A diferença entre a época de São Luís e a da TFP é que esta surgiu numa época medíocre, mas que está tendente à grandeza
Agora, qual é a nossa posição?
Antes de tudo inferiores como virtude a São Luís Grignion de Montfort de perder de vista, logo no primeiro passo; mas depois, colocados diante de um quadro que foi o da mediocridade, mas passa a ser o da grandeza. E cada vez mais vai sendo o da grandeza.
Eu, por exemplo, alcancei ainda um quadro da mediocridade plena e eufórica de São Paulo, da “São Paulinho” dos anos 20, dos anos 30. Talvez um pouco ainda dos anos 40 e 50, uma larga parte de minha vida, portanto.
Os senhores não podem imaginar – os senhores pensam que imaginam – os senhores não podem imaginar a alegria de viver, o otimismo, a coisa folgada, satisfeita que dominava a cidade. E quando nós, através do “Legionário”, emitíamos os nossos conceitos severos e fazíamos as previsões que estão no jornal sobre o que haveria de acontecer, nós notávamos uma atitude, da parte de alguns dos mais simpáticos, uma atitude que poderia ser qualificada de um público que tomasse uma pessoa que lançasse modas masculinas, ou femininas de verão, muito boas, muito bonitas – “por supuesto” [obviamente, n.d.c.] muito castas –, mas com o inconveniente que era na orla do inverno.
As pessoas olhavam e diziam: “Bem, isto está bonito – isto os mais simpáticos –, está bem redigido, mas é inoportuno porque a época não é esta que eles dizem aqui. Aqui vai tudo bem, e até vai cada vez melhor. E, portanto, esta severidade não tem razão de ser, esta previsão também não tem razão de ser.”
O pior é o seguinte: os medíocres, das primeiras décadas deste século, pensavam isto, mas não pensavam até o fundo de sua alma. Eles abafavam a consciência de que alguma coisa muito grave estava se passando e por causa disso não tinham coragem de nos contestar.
Eles nos respondiam pelo silêncio. Por um silêncio amarelo, ligeiramente desdenhoso e rejeitante. Mas o silêncio é a pior das rejeições, o silêncio constitui uma rejeição muito pior do que a polêmica contra. Na polêmica contra, a gente luta, de um modo ou de outro somos dois: aquele com quem eu duelo e aquele que duela comigo. Agora, os senhores imaginem um homem que se considera insultadíssimo por uma multidão, chega no meio da praça e vocifera a sua indignação: todos passam, olham um pouquinho… ele vai dormir muito mais machucado na sua alma do que estaria machucado no corpo por uma espadagada do adversário.
Alguns restos disto é inevitável que pelo menos os mais velhos dentre os senhores não estejam vendo ainda, porque há uns otimistas retardatários que ainda hoje teimam em se sentir em plena Bagarre Azul, mas eles percebem a barulheira dos adversários que dá pontapé na porta da casa deles. Eles sentem os trovões ribombarem, eles sentem a terra que treme, e eles não ousam dizer “não”. Sobretudo não ousam dizer “sim”, e mudam de assunto. Mas em todo caso, os senhores têm, no fato que eu vou contar, um exemplo frisante da mudança dos estados de espírito.
* Um exemplo de mudança do estado de espírito medíocre para o de grandeza: a reação do povo colombiano nos anos 80 para com a “Via Sacra” publicada em CATOLICISMO
Eu já disse aos senhores na última Reunião de Recortes – e pretendo, se Deus quiser, desenvolver isto na próxima reunião – o estado verdadeiramente crítico em que se encontra a Colômbia diante da guerrilha que está se transformando numa verdadeira revolução agrária, e revolução agrária evidentemente entretida pelas armas que Cuba manda e que são por sua vez armas vindas da Rússia. É evidente! Estas armas são apreendidas – porque na guerrilha às vezes os guerrilheiros fogem e largam as armas – naturalmente vão para a polícia do exército que examina e vê qual é a origem – está marcada em cada arma, a origem está indicada ali. Isto é publicado pelos jornais etc.
No começo havia “Bagarre Azul” [vide nota explicativa no final do texto, n.d.c.], mas aos poucos a Bagarre foi se tornando menos azul e menos, e menos, e acabou hoje em dia os jornais colombianos, os grandes, os bons, estão saturados de matéria alertando sobre o perigo etc., etc., etc.
Resultado: eu escrevi há alguns anos uma Via Sacra que foi publicada no “Catolicismo”. Os senhores não calculam qual foi a frieza dos leitores diante dessa Via Sacra. Aliás, foi “Catolicismo“ ou ainda foi o “Legionário“, não me lembro bem. Eu quando concluí a Via Sacra, eu pensei com meus botões: o quadro do mundo contemporâneo que se entrevê através dessa Via Sacra é um quadro trágico. Muitos leitores não concordarão, mas eu vou publicar para abrir os olhos deles. Não abri os olhos de ninguém, de absolutamente ninguém!
Esses anos, quatro – entre arcebispos e bispos – colombianos tendo recebido a Via Sacra distribuída pela TFP de Bogotá, escreveram aprovando, elogiando muito e pedindo um grande número de exemplares para serem lidos nas igrejas durante a Semana Santa…!
* Qual a atitude da opinião pública face à mudança do quadro tendente à mediocridade, para o tendente à grandeza?
Os senhores veem bem através disto a evolução dos espíritos, quer dizer, isto era impossível de acontecer naquele tempo! Foi anoitecendo… e os horizontes vão se abrindo algum tanto; as pessoas vão compreendendo algum tanto as coisas.
Mas cuidado… o que as pessoas vão compreendendo? Os espíritos estão no Brasil no ponto de flexão, porque a partir do esclarecimento desse quadro, e a partir de se colocar diante deles o problema “tudo está péssimo”, se põe uma questão: nasce para eles um mundo novo, é um mundo de luta, um mundo de problemas, mundo de riscos; e o problema que se põe é este:
Eles, que atitude vão tomar? Eles vão ver de frente e vão procurar agir? O que se chama aqui “ação”? Ao menos de palavra, eles vão protestar? Eles vão difundir a noção do perigo que nos encontramos, eles vão incitar os outros a tomarem alguma posição? Ou eles vão ignorar a situação até o fim, como tem acontecido em tantas e tantíssimas revoluções?
* Exemplo de reação de uma opinião pública medíocre: a atitude da burguesia vietnamita face à invasão de Saigon pelos vietcongues
Por exemplo, nós sabemos – eu já tenho mencionado este fato várias vezes – pelos jornais da época que no dia em que as tropas [comunistas] entraram em Saigon, capital do Vietnã, a burguesia grande e média, e pequena, estavam levando absolutamente a vida de todos os dias. Uns entregues à cegueira: “Não ia acontecer nada”; e outros vendo: “Vai acontecer”.
Num clube grã-fino de Saigon havia, por exemplo, uns vendo que o comunismo se instalaria dentro em pouco na cidade, e bebendo na piscina champagne e outras bebidas etc., e um jornalista estrangeiro perguntou a eles:
– Mas vocês não percebem o que está acontecendo, o que vai acontecer com vocês?
– Deixe-nos beber os últimos goles!…
Outros, pelo contrário… Eu vi a narração de uma dona de casa que depois se refugiou no Ocidente e contou – a respeito do dia dela – mas, via-se que era uma dona de casa da pequena burguesia ou média: que as tropas [comunistas] – pelo menos no bairro dela, foi o que ela viu – entraram em Saigon precedidas por uma coluna grande de enjolras, todos extremamente jovens e em pé sobre os caminhões e que tinham ordem – porque tudo isto é perfeitamente calculado – de ficar dentro do caminhão, não pular fora, não pedir comida, não pedir bebida, não dizer desaforo, nem nada! Ficar dentro esperando ordens. E ficaram e o povo que passava ali via que eram [comunistas], viam que aquela meninada dava risada, e às vezes até sorria: “Olha aqui a tão receada invasão comunista!… Eles não têm nenhuma intenção séria de se apoderarem de nós. Eles estão mandando estes meninos, que é o modo de nos dar a entender que não receemos nada, que eles vão nos governar de longe, e que, portanto, dentro de nossas casas tudo vai se passar como queremos!”…
Um repórter – eu li com muita atenção estas reportagens porque era uma manifestação do espírito burguês “en su tinta” [autêntico a mais não poder, n.d.c.] –, um repórter contava o caso [do dono] de uma loja média, que tinha resolvido – ao que parece já há um certo número de dias – mandar pintar do lado de fora o prédio que estava meio descascado. Estava pintando de verde – por coincidência a cor da esperança – o homem do lado de fora, olhando: pinte melhor ali, melhor aqui. Daí a poucas horas ele era tirado da loja aos pontapés. Ali era um estabelecido um [“consonola?], uma porcaria qualquer comunista. Porque não ia acontecer nada!…
Outros eram os velhacos: os ricaços que tomavam grandes aviões, iam então ao aeroporto em seus automóveis de luxo, tomavam grandes aviões em que as passagens eram a preços fabulosos, aviões de companhias estrangeiras, levando consigo joias, dinheiro – naturalmente já com dinheiro posto no exterior, depósitos em banco etc., etc. – e que iam a maior parte para os Estados Unidos, levar vida de ricaços nos Estados Unidos. Está acabado, não tinha mais nada.
Gente que resistisse? Nada! O Vietnã caiu assim…
* A missão da TFP, em cada país onde ela exista, é apontar o perigo e proclamar: “A salvação está na fidelidade à prática dos Mandamentos! Se não nos ouvirem, tudo se voltará contra vós!”
O papel nosso, em todos os países onde há TFP, cada TFP adequando seu modo de agir, as peculiaridades aos respectivos países, mas em todos países onde há TFP, a TFP toma uma atitude correspondente às circunstâncias para alertar, para avisar: “Vejam, aí vem, está o castigo, etc., etc., abram os olhos”!
Nós indicamos o modo de reagir e nós indicamos qual é o ponto terminal para o caminho para onde se deve rumar. A questão é: a volta à fidelidade na prática dos Mandamentos, sobretudo na profissão da Fé, o espírito aguerrido na luta contra o mal.
É evidentemente essa a mensagem da TFP.
Esse quadro tem grandeza, e a grandeza dá respiração! E é muito provável que outras formas de provação nos aguardem pelo nosso caminho. Estamos aí para isso. Algo é certo: é que nós ao menos poderemos dizer que no momento oportuno nós, com a graça de Nossa Senhora, soubemos analisar os acontecimentos à luz da Fé e tivemos a força necessária para bradar aos homens as verdades que os podiam salvar!
Mas, nesse sentido, a nossa posição se diria mil vezes mais leve do que a de São Luís Grignion de Montfort! Ao menos no meu modo de sentir as coisas, sem dúvida.
* Nós que somos chamados a dar esse brado profético, não teremos laivos desse estado de espírito dentro da alma e comprometemos desse modo a grandeza de nossa missão?
Mas se levanta aí uma questão especial, e que é a seguinte: isto que é para mim, na idade em que eu estou, com a experiência que eu tenho da vida, será a mesma coisa para cada um de nós dentro desta sala? Para cada um de nós, dentro do conjunto das TFPs? Nós não temos nada de Bagarre Azul dentro da alma? Nós falamos tanto de Bagarre Azul, nós não temos restos de Bagarre Azul? Nós não nos agarramos a esta quimera que vai morrendo? E com isto nós não comprometemos a grandeza e eficácia de nossa própria missão?
Vem a resposta: é indiscutível que mesmo – a resposta vai ser muito polida – é indiscutível, que mesmo para os mais moços entre nós, mas inclusive para não poucos dentre os mais velhos, uns restos de Bagarre Azul ficam!
* O convite para a Bagarre Azul: o contraste entre a casa dos pais, em São Paulo e a dos tios, em Santos
Esta visão otimista da vida, uma criança a tem diante de si, sem perceber, à maneira de uma verdadeira filosofia e faz escolhas às vezes mais profundas do que a gente pensa à primeira vista.
Eu me lembro que na casa em que eu morava – era uma casa que tinha sido construída e mobiliada nos padrões de fins do século XIX –, e quando eu era pequeno e eu ia para Santos –– para dizer alguma coisa de século XIX: é uma casa de pé direito alto, com portas muito altas, depois com janelas também altas, com as paredes todas forradas de papel especial, formando desenhos, quadros etc., e depois os móveis, móveis grandes também, cor comum de madeira, mas mais bem dadas ao escuro, as cortinas muito grossas impediam até certo ponto a entrada da plena luz do dia.
E tudo com certo ar de solenidade, uma solenidade ligeiramente melancólica; era o estilo romântico do fim de século passado.
Que tinha uma certa vantagem para mim: incutir uma concepção séria e calma da vida. Mas, todas as pessoas mais novas de minha família, à medida que iam se casando iam construindo casas. E essas casas todas já eram do século XX, eram casas “alegretas”, com materiais claros, com paredes claras, sem papéis mais forrando, com móveis de um tamanho muito menos monumental – o monumental desapareceu – e o luxo tomou o ar do prazer. Antigamente tinha os ares da pompa, passou a tomar o ar do prazer!
Isto era muito assim numa casa de tios meus em Santos, ele trabalhava em Santos, era corretor de café em Santos e a casa era toda construída em estilo bangalô, moderno, toda risonho, a pouca distância da praia.
De maneira que, eu que ficava fascinado pela praia, mesmo quando eu não estava na praia, me imaginava presente na praia o dia inteiro, a minha ideia fixa era a praia. Praias, eu já tenho dito várias vezes aos senhores, incomparavelmente mais moralizadas que as de hoje. E o meu fascínio não era o banho de mar – eu gostava, mas não era isto –, propriamente o meu fascínio era a praia propriamente dita, me encantava por mil lados, de mil modos etc., eu tinha entusiasmo pela praia.
Areia muito branca, os dias de inverno – ia-se lá sobretudo nos invernos, para evitar o frio de São Paulo –, então os dias de inverno, o sol muito claro, muito luminoso, de manhã já tínhamos que ir à praia. Eu digo “tínhamos que ir” não por causa da praia, é por causa do “de manhã”, jamais eu gostei de levantar cedo, mas era ali!
Pois bem, eu tinha tanta vontade de ir à praia que me levantava de bom grado. E às vezes chegava a acordar durante a noite para ver se já era dia. E quando era noite –– era coisa de criança –– eu saía para um terraço que havia lá fora para ver se adivinhava no aspecto do céu se já estava fazendo manhã, para poder ir à praia logo, que eu queria de todo jeito.
Chegando à praia, aquelas ondas, todo o mundo conhece; aquele rumor, todo o mundo conhece também; aquele rumorejar das [ondas] e uma névoa muito branca, muito ligeira que cobria certas partes – parecia espuma do mar que ia conquistando o céu – na praia todo o mundo alegre, eu alegríssimo, me formava uma certa ideia de que a vida era isto; e que a visão da vida que se tinha em casa de minha avó, era uma visão superada: de homens antigos, velhos que tossiam, sofriam de bronquite, arrastavam uma perna etc., com voz cava; senhoras certamente muito brilhantes, muito dignas que se sentavam, comentavam sobre se estava chovendo, ou se ia chover e outras banalidades assim.
Enquanto o mundo lá fora já estava modificado, estava modificando etc., etc. E eu pensava: o mundo inebriante é o mundo daí de fora; o mundo horrível é o mundo de dentro de casa.
Não sei se os senhores percebem que é o convite da Bagarre Azul!
* A praia de Santos e o bonde, o choque entre o mundo contra-revolucionário e o agitado mundo revolucionário
E eu sentia que havia alguma coisa de ruim nisto. Por outro lado, eu era muito tranquilo, muito quieto. Se a alegria da praia me agradava, quando perto da praia passava, numa rua marginal à praia, passava um bonde, já eu ficava implicado com o barulho do bonde. É uma cacofonia com o barulho do mar. “O mar faz este concerto magnífico e este bondinho ordinário, de uma Companhia de bondes de segunda classe – porque Santos é uma cidade pequena – fazendo «rem, rem, rem» lá de longe vem esta caranguejola, essa espécie de inseto de metal, correndo despropositadamente – eu achava que vinha depressa – correndo despropositadamente, fazendo este barulho, acaba com esta porcaria de bonde!”
Não só de bonde, mas de trem; o caminho de Santos para São Paulo é lindo, eu gostaria de vir num carro puxado a cavalos; não, eu sou obrigado a me enfurnar neste wagon, todo o mundo enfurnado ali, como se fosse uma sala de aula, dois-dois, dois-dois; no fundo anúncios, anúncio contra a saúva – formiga; anúncio contra a bronquite; anúncio… Eu cheguei a aprender de cor um anúncio que tinha assim nos trens e nos bondes – era um anúncio de um remédio chamado “Rhum creosotado”! Então dizia o seguinte:
“Veja, passageiro, que belo tipo o senhor tem ao seu lado; entretanto, acredite, quase o matou a bronquite, salvou-o o Rhum creosotado!”
* O papel de Dona Lucília (mãe do Prof. Plinio) e da atmosfera da Igreja do Sagrado Coração de Jesus para fixá-lo na tradição
O ponto forte, a favor da tradição, era que eu entrando em casa, encontrava um certo olhar castanho bem escuro, tranquilo, sério, sumamente atraente, trazendo consigo todas as reflexões, toda a seriedade, toda a calma; alguma coisa da tristeza do passado!
Eu dizia: “Entre isto e Hollywood, jazz band, e mil porqueiras que andam por aí, eu opto por este olhar! Por este olhar, por este carinho, até por este pito!”
E o peso que isto foi, de que isto foi para me fixar na tradição, os senhores não podem imaginar! Evolui assim a alma de uma criança.
Bem, todos nós fomos crianças, em épocas muito distante umas das outras. Todos nós passamos por problemas assim.
Eu não sei se os senhores se lembram de seus próprios problemas nesta matéria? Acho que se lembram, hein! E que se esquadrinharem bem encontram. É muito interessante a gente subir assim as origens de sua própria formação e de sua vida espiritual.
Mais do que este olhar, impressionava a atmosfera da igreja do Sagrado Coração de Jesus!
Além de todo limite! E ali a ideia: Igreja infalível é assim. E, portanto, esta alegria toda, esta história, não é da atmosfera dela. O anti-progressismo começava a se formar em mim. Naturalmente, não resulta só disto, eram os primeiros passos, depois veio a reflexão, veio o estudo, o conhecimento da doutrina católica etc., etc. Mas, os primeiros passos têm muita importância na vida de um homem.
Os senhores também deram os primeiros passos!
Não é um momento de fazer o exame de consciência, mas é o momento de dizer que muitos dos senhores – pelo que eu observo –, sem jamais lhes ter feito uma pergunta a este respeito, pelo que eu observo é – muitos… eu vejo que estão com as caras assim à espreita! – a pergunta: como é este negócio? O que vai sair agora aqui? Pelo que eu observo, muitos aderiram à “Bagarre Azul“ de todo coração, sem nenhuma reserva.
E agora, quando começam a perceber, que a Bagarre vai se fazendo preta, –– acham fenomenal é verdade, e com toda a sinceridade da alma, é verdade. Eu não sei se com toda a integridade da alma! E se não ficam uns restos de saudades, e uns restos de ilusão: “não, não é tanto assim! é claro, Dr. Plinio diz isto, ele demonstra bem; depois se vê, nem precisa mais de demonstração, isto entra pelos narizes adentro – como dizem os antigos – é verdade, mas, também tem lá os seus vagares, tem lá as suas calmas. De repente quem sabe, se aparece uma coisa que resolve tudo isto!”
E a gente aclama com entusiasmo a Bagarre vindoura, mas dá um olhar saudoso para a Bagarre Azul que deixa de existir!
Eu acho que isto existe. Existe e há uma coisa sobre a qual eu já falei, mas estamos no fim, eu falo depois, em outra ocasião mais detidamente –– existe o seguinte: fica uma certa – com esta nostalgia – vai-se formando aos poucos, na distância do mundo, uma ideia do mundo que nós não tínhamos quando o frequentávamos. Por otimismo, por puro otimismo, vai-se formando em nós uma ideia agradável de um mundo que quando nós deixamos, nos parecia horrível. E com isto é a Revolução, que depois de anos de fidelidade vai ganhando terreno em nossa alma…
Bem, o que é que nós deveríamos fazer? Pensando em São Luís Grignion de Montfort. No que eu falei: a nossa situação é menos – debaixo desse ponto de vista pelo menos – é menos aflitiva do que a dele, nos é pedido menos do que foi pedido a ele. Os senhores já pensaram, no que seria a dificuldade de perseverança dos senhores se de repente…
O quadro representava o rei passando com a rainha, por uma rua central de Berlim – Berlim! – e passando em frente a um grande hotel – vem o anúncio do hotel – assim o letreiro do hotel. E então o carro ia muito devagar, aquele carro brilhante daquele tempo, cocheiros, cartolas, aquela coisa toda, o rei e a rainha sentados sós, os dois no fundo do carro, carro aberto, eles eram vistos por inteiro, e aqueles homens de cartola, todos levantando a cartola porque o rei passava, e as senhoras fazendo reverências muito bonitas. A dois passos assim, um lampadário com uma parte de cristal muito bonita e um veterano, um querido e simpático veterano do Grupo, olhando aquilo comigo. Era o rei que ia para a guerra – para a guerra hein! – assim devagar, porque guerra não era “blitz”, ainda não era guerra relâmpago. Os homens não fabricavam relâmpagos naquele tempo.
Ele olhou, olhou aquilo, eu notei que ele demorou um pouco; e eu deixei a página ali diante dele. Ele me disse:
– Dr. Plinio, para mim graças a Deus que tudo isto acabou.
Eu disse:
– Por quê?
– Eu era homem de ir correndo para a Europa e nunca mais voltar!…
Os senhores se tivessem dinheiro, não receariam uma coisa análoga? Os que não receiam levantem o braço…
Agora, o que é que acontece? É que nós temos que pedir a São Luís Grignion hoje, na data de hoje, que ele reze a Nossa Senhora por nós para arrancar de nossa alma, estes restos asquerosos de Bagarre Azul, para que nós sejamos inteiramente adequados a nosso tempo, no sentido de que é adequado ao mal quem combate o mal. Não é quem vai junto do mal. E que faça de nós heróis nesta luta, como ele foi herói e santo na luta dele, sob certos pontos de vista pelo menos, mais terrível do que a nossa.
Com isto meus caros, está tudo terminado. Fatinho já foi contado: é a praia!
* Nota explicativa sobre a expressão “Bagarre azul”: neologismo para designar o período histórico iniciado por volta de dez anos após a Segunda Guerra Mundial (em torno a 1955, portanto), com o desenvolvimento econômico dos países antes atingidos pelos enfrentamentos bélicos. Naquela época, enquanto o processo de decadência moral e religiosa avançava, falava-se dos diversos “milagres” financeiros: “milagre italiano”, “milagre alemão” e outros surtos fabulosos de progresso econômico, promissores de uma prosperidade indefinida, à maneira de um céu celeste, sem nuvens escuras.
* Para outras matérias relativas a São Luís Maria Grignion de Montfort, clique aqui.