São Lourenço, mártir (10 de agosto): lampejos da fidelidade feudal, altaneria ante a iniquidade, a dor e a morte. Triunfo do espírito sobrenatural

Santo do Dia, 9 de agosto de 1969

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério tradicional da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

blank

São Lourenço (sec. III) distribui esmolas às viúvas, doentes e pobres de Roma

São Lourenço, mártir. Festa dia 10 de agosto.

O comentário será feito com base num texto de Rohrbacher, “A vida dos santos”:

 “A perseguição de Valeriano [imperador romano] intensificou-se sobremaneira no ano de 258. O Papa São Sixto foi preso, com alguns membros do seu clero, quando estava no cemitério de Calisto para celebrar os Santos Mistérios.

Quando o levavam ao suplício, Lourenço, o primeiro dos diáconos da Igreja Romana, seguia-o chorando e dizendo: Aonde ides, pois, sem vosso filho? Aonde ides, Santo Pontífice, sem vosso diácono? Não estais acostumado a oferecer o Sacrifício, sem ministro; no que vos desagradei? Experimentai se sou digno da escolha que fizestes de mim para me confiar a dispensa do sangue de Nosso Senhor.

Sixto respondeu-lhe: Não sou eu que te deixo, meu filho, mas um combate maior te está reservado; poupam-nos, a nós velhos; mas tu me seguirás dentro de três dias. 

Entretanto, o prefeito de Roma Daciano, julgando que os cristãos tinham grandes tesouros escondidos, e querendo disso certificar-se, mandou chamar Lourenço, que lhes era custódio como primeiro diácono da Igreja Romana. Pediu-lhe que lhe entregasse os tesouros dos cristãos, e Lourenço respondeu-lhe que lhe entregaria após fazer o cômputo total do que possuíam. Reuniu, depois, todos os pobres e doentes de Roma, mostrando-os ao prefeito como os únicos tesouros, e os maiores na Igreja. Os pobres, eram ouro; as virgens e viúvas, as pérolas e demais pedras preciosas.

Furioso, o prefeito ordenou a morte do diácono, mas exigiu que fosse lenta e cruel. Despiram-no e deitaram-no sobre uma grelha tendo, em baixo, brasas semi-acesas. Os que assistiam ao suplício viram o rosto do mártir rodeado de esplendor extraordinário. Depois de muito tempo, disse o supliciado ao algoz: fazei-me virar; já estou bastante assado desse lado. Depois que o viragem, disse ainda: Está assado; podeis comer.

Olhando então ao Céu, rogou a Deus pela conversão de Roma e expirou. Senadores convertidos pelo exemplo de sua constância carregaram-lhe o corpo nas costas e o enterram no campo Verano, numa gruta. 

blank

Basílica de São Lourenço Fora dos Muros, atrás e ao lado (esquerdo) pode ser vista a vegetação do cemitério do Verano (Roma)

Há um número enorme de dados preciosos nessa ficha do “Santo do Dia”. O primeiro deles é o diálogo de São Lourenço com o Papa São Sixto.

Os senhores sabem que o Santo Sacrifício da Missa é a renovação incruenta do Santo Sacrifício da Cruz. De sorte que oferecer o Sacrifício da Cruz e oferecer o Sacrifício da Missa são uma mesma coisa.

O mártir, por outro lado, quando se oferece em holocausto, de algum modo, oferece um sacrifício que é o dele, sem renovar o sacrifício da Cruz. Entretanto, imita a Nosso Senhor Jesus Cristo, que Se imolou a Si próprio. Há, portanto, um conjunto de correlações entre o sacrifício do Calvário, a Missa e o martírio.

Foi em torno dessas correlações que girou o diálogo – entre todos admirável – do Papa São Sixto com seu diácono.

São Lourenço dizia: “Vós oferecestes tantas vezes o Sacrifício, comigo, diácono”. Com efeito, o papel do diácono consistia em ajudar o Papa para celebração na Missa. “Vós, tantas vezes, oferecesses o Sacrifício, comigo. Agora, vós não o quereis oferecer? Vós me deixais a mim nesta terra, no momento em que vosso sacrifício vai ser feito? É como que a vossa missa; eu não sou vosso acólito? Levai-me convosco para eu ser morto. Uma vez que eu vos servi a vida inteira ao pé do altar, quero servir-vos também ao pé da morte.” E então – depois dessa maravilha de diálogo – São Sixto profetizou: “Eu vou ter uma morte suave em comparação com a tua; os moços vão ser menos poupados do que nós velhos. Daqui a três dias chegará a tua ocasião e serás morto.”

Realmente, essa fidelidade de São Lourenço a São Sixto traz consigo um primeiro lampejo de Idade Média. É uma fidelidade que gira em torno de relações de caráter eclesiástico, mas é uma fidelidade feudal: essa união no serviço, por onde a pessoa que serve se une àquela a quem serve por um vínculo que é muito mais do que um contrato de locação de serviço, mas é um vínculo de amor e de dedicação da alma inteira, de consagração da vida inteira, de tal maneira que sente que ele não tem razão de existir a não ser em função daquele a quem serve. Na força desse vínculo de fidelidade nós vemos o prenúncio de feudalismo, com os vínculos de fidelidade já então de ordem temporal mas concebidos religiosamente. Isto porque a fidelidade é uma virtude religiosa ainda quando exercida ou praticada no âmbito temporal.

Nesses vínculos que ligavam o diácono ao Papa, vemos desabrochar a alma feudal, feita do senso do serviço, do senso da honra no qual quem serve põe a sua honra em servir de fato a quem se vinculou.

Vemos nisso uma admirável lição do contrário que a Igreja progressista deseja, um antegosto da Idade Média, que constituiu uma sociedade temporal em que as articulações das pessoas que a constituíam eram todas na base de uma entrega, de uma proteção. É todo o perfume da Idade Média que começa a evolar-se nessa lealdade, nessa dedicação, nesse senso de honra, nessa entrega de São Lourenço para com o Papa São Sixto.

De outro lado, temos o episódio admirável com os pobres. O prefeito de Roma  ouviu dizer que os cristãos eram riquíssimos. O tal “ouviu dizer”… Já era uma das calúnias que circulavam naquele tempo contra os cristãos.

No dia marcado, aparece tudo quanto é pobre de Roma – viúva, estropiada, estropiado – aos quais eles tinham um desprezo soberano. Porque o pouco caso do romano em relação ao pobre era uma coisa incomparável!

São Lourenço disse: “Aqui estão os tesouros da Igreja.” É uma admirável lição de espírito sobrenatural.

Por quê que o pobre é um tesouro? Antes de tudo, porque é batizado, filho da Igreja Católica. E o que vale na pessoa não é o que tem, nem o que sabe, nem o que pode, nem o que faz. O que vale, antes de todas as coisas, é que se trata de uma criatura feita à imagem e semelhança de Deus. Em segundo lugar, remida pelo sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo. Em terceiro lugar, que custou as lágrimas indizivelmente preciosas de Nossa Senhora. Esses títulos fazem de qualquer ser humano, ainda que seja um mulambo, um verdadeiro tesouro. Porque todo o Sangue de Cristo está ali. Nosso Senhor Jesus Cristo ter-se-ia encarnado e morrido na Cruz, ainda que fosse só por causa daquela pessoa.

Ora, duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si. Se aquele homem vale o sangue de Cristo, como o Sangue de Cristo possui um valor infinito, aquele homem tem – de algum modo – um valor infinito. Então, por ser uma criatura humana, por ser filho da Igreja, um pobre tem um valor incomensurável.

Nós não tomamos isso no sentido revolucionário de que só o pobre tem valor. Aos olhos de Deus, há uma porção de predicados humanos – até opostos entre si, se bem que não contraditórios – que tornam o homem digno de um amor especial de Deus, sob um certo título.

Por exemplo, “os simples de espírito”: pessoas de inteligência apoucada, pouco inteligentes. Deus os ama de um modo especial, os ama na sua fragilidade, os ama exatamente porque são desnudados dos recursos necessários para viver intelectualmente, digamos assim. E então a Providência Divina pousa sobre eles e os protege de forma especial. O que não quer dizer que Deus não ame o sábio. O fato de Deus amar com uma proteção especial aquele que é carente do ponto de vista intelectual, não exclui que Deus – por um outro título – ame imensamente um São Tomás de Aquino, ou ame imensamente Nossa Senhora, cujo conhecimento de todas as coisas deixava o de São Tomás de Aquino mais longe do que o de São Tomas de Aquino deixa a nós.

São títulos diversos segundo os quais Deus ama a cada coisa. É um pouco como o homem com a flor. O homem não se encanta com a rosa porque ela se  mostra no seu esplendor, como a rainha das flores? Entretanto, o homem não se encanta com a violeta, pela razão oposta? Ou seja, porque ela se esconde, porque é apagada, é delicada, é pequenina? São títulos diversos, se bem que não contraditórios, de se gostar das coisas.

Dizer que Deus ama o pobre não significa que Deus não ama o rico. Mas sim que na pobreza há um título especial para Deus amar aquela pessoa. Pois Ele ama os que sofrem. Bem entendido, os que sofrem com resignação, os que sofrem em união com Ele.

Assim, quem considera o sofrimento de um pobre, nele vê um tesouro. O que significa que se eu devo amar a pobreza de um pobre, este também deve amar sua pobreza. Evidente.

Porém isso não quer dizer que o pobre não deve trabalhar para deixar de ser pobre. Mas enquanto não consegue deixar a pobreza, deve carregá-la com resignação. Como nós, vendo um pobre, devemos lamentar e – na medida do possível, do que tiver propósito – devemos ajudá-lo.

Porque há uma excelência especial da alma humana na aceitação da pobreza, assim como da doença.

Assim é que com esse equilíbrio muito grande se pode dizer e se deve dizer que o pobre é um tesouro, ou a viúva é um tesouro, como um órfão é um tesouro e que constituem verdadeiros tesouros dentro da Igreja Católica.

São Lourenço deu uma admirável lição para todos séculos.

A última lição foi o seu martírio. Não se pode compreender sem um milagre, mas um milagre de primeira classe, que um homem aguente o que ele suportou. Os senhores podem imaginar o que representa a dor de ser assado daquele modo? Imaginem um animal vivo que fosse colocado sobre uma grelha: como urraria, berraria, que sinais de tormento horrível daria. Pois bem, esses tormentos são ainda muito maiores no homem; porque o animal não tem inteligência, e o homem a tem; o que aumenta o seu sofrimento enormemente.

Considerem a placidez de São Lourenço, sua face translúcida de alegria, quando percebeu que uma parte de seu corpo estava morta – o que já de si é um outro milagre ele não ter falecido inteiro com esse sofrimento – e disse: “Eu já assei bem de um lado, podem assar do outro lado”. Ele foi virado e morto assim.

No momento de expirar, ele pediu a conversão de Roma, o que lhe foi concedido… Vários senadores que assistiram o seu martírio, carregaram o seu corpo até a sepultura.

Quer dizer, ele, um pobre, um mero diácono da Igreja, que vivia naqueles tempos como perseguido nas catacumbas, é carregado por componentes do mais alto órgão legislativo da Terra naquele tempo, que era o Senado romano. Carregado aos ombros por aqueles que converteu com seu sofrimento e por eles sepultado.

blank

Acima, a lápide de mármore sobre a qual estava a grelha na qual foi martirizado São Lourenço. Abaixo, revestida com um tecido vermelho, a própria grelha antes mencionada. Ambas as relíquias encontram-se na Basílica romana dedicada a São Lourenço.

blank

Agora, considerem o resultado dessa humildade. No Magnificat, Nossa Senhora disse: “deposuit potentes de sede et exaltavit humiles – Deus destituiu de suas cátedras os poderosos e exaltou aqueles que são humildes”.

Vejam o que aconteceu com São Lourenço. Quem é que hoje ouve falar nesse imperador? A memória dele vacila entre o horror e o esquecimento.

Porém um dos mais célebres palácios do mundo comemora a glória de São Lourenço: e é o Escorial. Um palácio famoso, construído por Felipe II.

Era festa de São Lourenço e Felipe II ia travar contra os protestantes franceses uma batalha muito árdua, em território francês, no local chamado Saint Quentin, São Quintino. Então, como era festa de São Lourenço, Felipe II prometeu a Deus que faria construir uma basílica magnífica em louvor de São Lourenço, se ganhasse aquela batalha contra os hereges. Estes foram desbaratados e, então, mandou construir a grande obra de arte de seu reino, que é o Escorial, o qual possui precisamente a forma de uma grelha, para celebrar o instrumento do martírio de São Lourenço. Assim, todos os peregrinos de todas as partes, todos os turistas do mundo inteiro que vão ao Escorial, ficam sabendo da glória de São Lourenço. E isto sem considerar, naturalmente, o culto que lhe presta a Igreja universal.

Os poderosos, que se orgulhavam do seu poder, que eram filhos da iniquidade, foram lançados ao chão. O mártir sacrossanto está no mais alto do Céu, louvado por Nossa Senhora, pelos Anjos, objeto da predileção de Deus. Até o fim do mundo se louvará sua memória e ele receberá culto.

Valeriano onde estará se não se converteu?… Aí estão os desígnios de Deus, aí está a glória de Nossa Senhora.

Contato