São Frei Galvão (III) – Ter sempre em mãos a própria alma para a governar continuamente!… Que elogio!

Folha de S. Paulo, 21 de julho de 1974

Plinio Corrêa de Oliveira

Não leiam ou leiam meu próximo artigo

Poucos contrastes há tão frisantes em São Paulo – onde, entretanto eles não faltam, e de toda ordem – do que entre a Avenida Tiradentes e o Convento da Luz, com o Museu de Arte Sacra, que lhe ficam exatamente à margem. Um longo muro, que toma talvez mais de meio quarteirão, separa os dois mundos. Do lado de fora, a avenida, com seu movimento emaranhado e ruidoso, complicado ainda pelas máquinas superpotentes destinadas à construção do metrô. Muro adentro, quase a mesma atmosfera de há duzentos anos atrás: a tranquilidade, a meditação, a oração e o bom gosto ali deitaram raízes e vêm florescendo há tanto tempo, que chegaram a impregnar de uma vez para sempre a atmosfera de um aroma espiritual sutil e envolvente. Tal envolvimento começa sem que a pessoa se dê conta, desde o momento em que transpõe o largo portão em cuja grade se lê a data de 1870. Penetra-se desta maneira em um jardim de uma despretensão, uma singeleza e uma calma desconcertante. E a não se visitar o lindo museu, caminha-se diretamente para a Igreja. A esta se acede por um átrio calçado de um venerável granito desgastado pelos passos de gerações e gerações de fiéis. Logo em seguida, uma alta porta ouro e branco, em estilo barroco, sólida e sisuda como se fosse a própria face da Meditação, apaga no espírito de quem entra a recordação de toda tralha que ficou a mexer-se e a febricitar pela rua. Entra-se no templo. E tudo é sorriso. Aquele sorriso leve, nobre e superiormente sério que constitui um dos encantos de nossa arte colonial. Alta cúpula, proporções graciosas, altares e imagens cheias de mimo e dignidade. A atenção se fixa, por fim, no presbitério.

Do alto do retábulo, uma imagem da Imaculada Conceição, na penumbra, faz descer de seu nicho sucessivos e ininterruptos eflúvios de meiguice materna, condescendência e esperança de socorro.

Um pouco aquém um tabernáculo, de linhas imponentes como se fora um palácio luisquatorzeano. No chão, uma lápide de mármore assinala dormir ali seu repouso final Frei Antônio de Sant’ana Galvão, o franciscano fundador da Casa. Como elogio póstumo só estas palavras simples e supremas: “animam suam in manibus suis semper tenens, placide obdormivit in Domino die 23 decembris. Anno 1822”. – Ter sempre em mãos a própria alma para a governar continuamente!… Que elogio! Quanto isto vale mais do que dirigir um avião superpotente, um país inteiro, ou até um banco (uso aqui a escala de valores característica de certa mentalidade supermoderna). A memória de Frei Galvão resistem à poeira destes 150 anos. Continuamente por ali passam pessoas de todas as idades e classes sociais, pedindo graças de toda ordem. E são  atendidas. Daqui a 150 anos quem frequentará as sepulturas dos homens superpotentes, para quem sobem hoje tantos aplausos e tantas petições… nem sempre atendidas?

Enquanto os olhos estão postos no Sacrário, onde – segundo indica uma lamparina rubra como se fosse um rubi – está realmente presente o Rei dos Reis e Senhor dos Exércitos, e o espírito vagueia por temas desta índole, ouve-se inesperadamente, a certas horas do dia, um conjunto de vozes femininas, de uma pureza que os anos não fanam, a recitarem, em rectus tonus, salmos, antífonas e lições. Só então se percebe que, nos fundos da Igreja, uma imensa treliça oculta a olhares profanos esposas de Cristo, cujas faces uma rigorosa clausura impede de serem vistas. Ali passam, há mais de 150 anos, sucessivas gerações de freiras Concepcionistas, apartadas das coisas do mundo, mas voltadas à oração e à expiação, para que Deus perdoe e regenere este mesmo mundo.

Do grau desse distanciamento das coisas terrenas, um simples fato – verdadeiro fioretti – pode dar adequada ideia. Contou-me certa vez o grande Arcebispo paulista, D. Duarte Leopoldo, o caso de uma religiosa que entrara em clausura, em remotos tempos em que São Paulo ainda não conhecia estradas de ferro. Quando então apareceram os primeiros trens, seus apitos, rasgando os ares pacatos da urbe de então, chegavam aos ouvidos das religiosas. Como podia entretanto vê-los a velha freira, já que a clausura lhe proibia olhar pelas janelas? Comovido pela observância da religiosa, D. Duarte lhe deu licença para, por uma vez, uma só vez, postar-se à janela quando passasse um comboio. Mas a freira pediu licença para recusar a regalia. Queria morrer sem ver o trem, para com esta mortificação sofrer ainda mais pelos pecados do mundo. Não tardou muito que “animam suas in manibus suis semper tenens”, partisse para contemplar a glória celeste, ao lado do Fundador.

Alguns há a quem a narração deste pequeno fato terá asfixiado. Recomendo-lhes que não leiam meu próximo artigo; não o entenderiam. Os outros, a quem tenha deleitado com um pouco de ar puro, talvez gostem de conhecer o que narrarei sobre a fundadora dessa colmeia de anjos, Madre Helena Maria do Espírito Santo.

Continua – IV

Contato