Sede da Rua Pará, Santo do Dia, 10 de outubro de 1969
A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo“, em abril de 1959.
Nós devemos passar agora ao Santo do Dia de hoje que é São Francisco de Borja, confessor, duque de Gândia e Geral da Companhia de Jesus, século XVI.
Estamos na novena de Nossa Senhora Aparecida. E hoje é aniversário do Sr. Giocondo Mário Vita.
A respeito de São Francisco de Borja há alguns comentários em Dom Guéranger de que nós podemos tirar proveito. É na sua famosa “L’année Liturgique”. Diz o seguinte:
“No dia 30 de setembro de 1572, São Francisco de Borja, terceiro Geral da Companhia de Jesus, entregava sua alma a Deus com a serenidade confiante do homem que sempre cumpriu seu dever.
“Tinha sido muito variada a sua existência movimentada. Neto de Papa Alexandre VI…”
Alexandre VI teve filhos antes de ser Papa, pelo menos. Depois de ser Papa não é muito clara a coisa. E então São Francisco de Borja descende dele antes de ser clérigo.
“Foi numa primeira fase um elegante e hábil cavaleiro, confidente do imperador Carlos V que o nomeou vice-rei da Catalunha. Depois se tornou jesuíta, Vigário Geral da Companhia para a Espanha”.
Quer dizer, que dirigia todos os assuntos da Companhia de Jesus na Espanha.
“Depois sucessor de Santo Inácio e, enfim, legado da Santa Sé. São Francisco de Borja esteve sempre a peito de pertencer antes ao Rei do Céu e de militar sob seu estandarte, de preferência a se comprometer com os poderes da terra.
“Francisco nasceu em 28 de outubro de 1510. Sua infância e sua juventude passaram-se numa piedade e numa inocência que foi uma lição para seus pais e seus amigos.
“Mas o exemplo foi maior ainda pela vida cristã e austeridade que ele soube ter na corte do imperador Carlos V e depois como vice-rei da Catalunha”.
Em termos menos indiretos, e mais ao nosso gosto, isto tudo quer dizer que ele foi uma criança exemplar, mas que quando ele se tornou moço e depois homem maduro e ocupou altos cargos públicos, a sua piedade ainda chamava mais a atenção.
“A morte da imperatriz e depois de sua própria esposa, lhe mostraram o vazio de todas as coisas da terra. Ele resolveu, então, abandonar o mundo e entrar para a Companhia de Jesus em 1551 em que foi ordenado padre.”
Este é um dos episódios célebres da vida de São Francisco de Borja. Ele era cortesão e os srs. viram que era muito chegado a Carlos V, Imperador do Sacro Império Alemão e rei de Espanha. Nós temos várias vezes falado de Carlos V aqui por causa do grande papel que ele ocupa na história do Ocidente.
Os srs. estarão lembrados que ele era o famoso monarca “em cujos reinos jamais o sol se punha”. Ele era tão poderoso que o sol jamais se deitava em seu império. As suas terras iam desde os confins da Rússia até a América do Sul e de parte do México até o Oceano Pacífico, abrangendo uma parte do território atual dos Estados Unidos que foi roubado pelos ingleses aos espanhóis.
Os srs. compreendem, então, que era um império imenso, que compreendia não só a Espanha e suas possessões na América, mas também possessões que a coroa da Espanha tinha na Itália. E então possessões de uma grande importância no mundo. O sul da Itália pertencia à Carlos V; por outro lado na Lombardia, que tem como capital Milão, Carlos V tinha domínios também.
São Francisco de Borja sendo íntimo do imperador, tinha conhecido muito bem a imperatriz. E ele teve ocasião de ver o corpo da imperatriz estendido no caixão. E ao ver aniquilada, pelas coisas da terra, esta dama cuja imensa majestade ele tinha conhecido tão bem – e esta sim era a primeira-dama da Cristandade no seu tempo – ao vê-la assim aniquilada pela morte, ele recebeu uma graça.
O próprio de certas graças é de darem uma vida extraordinária a verdades que para nós são correntes, são comuns, que nós até sabemos o que querem dizer, mas que impressionam pouco nosso espírito. Assim, a graça da visão da morte. Uma pessoa pode saber muito bem que a morte – quem não sabe o que é a morte? Qualquer um sabe o que é a morte. Nós podemos até passar uma noite inteira, numa capela, junto a um cadáver, velando um cadáver e isto pode não nos tocar muito especialmente.
Mas de repente, por uma graça de Deus, pode ser que tudo quanto a aniquilação da morte signifique, suba ao espírito de um e lhe fale na alma com uma força particular. E lhe aumente especialmente a sabedoria. E foi o que se deu com São Francisco de Borja.
Ao ver ali morta a imperatriz, ele mediu muito bem o vácuo de certas grandezas. Porque essas grandezas passam. A grandeza da imperatriz, a grandeza do Império, a grandeza dele que não era senão um adorno do Império. E então ele se colocou diante da ideia de renunciar a todas às suas grandezas e ficar jesuíta.
Para que nós compreendamos bem isto, é preciso notar que ele além de ser vice-rei da Catalunha, o título de Duque de Gândia – ou Gandía não sei como em castelhano se deve pronunciar – Gândia? – então, o título de Duque de Gândia lhe dava, sobre uma certa parte do território espanhol, uma jurisdição feudal, à maneira de um pequeno rei. E essa nem dependia do imperador. Essa ele tinha por direito próprio.
Tudo isto ele abandonou para entrar na Companhia de Jesus.
Companhia de Jesus que era naquele tempo uma Ordem religiosa novinha, que não tinha nem um pouco a força, nem um pouco a tradição, nem um pouco a base que as outras grandes Ordens religiosas tinham, ou aquela pobreza ilustre da Ordem de São Francisco. Quer dizer, ele de fato entrava para uma obra nova e que debaixo de certo ponto de vista ainda poderia ser uma aventura. Ali ele foi encerrar-se até o fim dos seus dias para procurar os bens do Céu, muito certo da vacuidade das coisas da terra.
“Santo Inácio percebendo as virtudes dele deu-lhe a direção da Companhia de Jesus na Espanha”.
É preciso compreender também o que significa isso da parte de Santo Inácio. A Espanha, como os srs. viram, era naquele tempo uma potência imensa. Dentro dos Estados de Carlos V, a Espanha e a Áustria eram os dois mais importantes. Mas para a religião, a Espanha tinha mais importância do que a Áustria. E embora a Áustria fosse muito católica, a Espanha o era ainda mais do que a Áustria. Era a nação mais católica da terra.
E era da Espanha que sopravam os ventos da Contra-Reforma, da luta contra o protestantismo. De maneira que agir na Espanha era atiçar as melhores brasas contra o protestantismo. Era movimentar as melhores forças da Igreja contra a Reforma, contra o Humanismo, contra a Renascença.
Os srs. compreenderão sem esforço a importância que tinha o cargo de chefe dos jesuítas da Espanha, quer dizer, chefe da Ordem religiosa suscitada especialmente por Nossa Senhora para lutar contra o protestantismo, no país suscitado para lutar contra o protestantismo. Quer dizer, lhe foi dada a alavanca fundamental da luta contra o protestantismo, que era a direção da influência jesuítica da Espanha naquele tempo. Quando Santo Inácio morreu, ele então se tornou o Geral da Companhia de Jesus. Ele foi o terceiro Geral da Companhia de Jesus.
“Ele aumentou muito o número dos missionários da Companhia de Jesus, tendo enviado missionários à Polônia, ao México, ao Peru – de que o principal benfeitor – e à Índia.
“Suas ocupações numerosas não o impediam de consagrar longas horas à oração. Sua bondade se adaptava a todas as almas. Sua humildade fazia com que ele procurasse os ofícios mais insignificantes e recusava as honras que lhe quisessem prestar”.
Estas palavras parecem muito bonitas, mas parecem uns enfeites a que a gente está habituado. Elas comportam, entretanto, uma especificação.
Em primeiro lugar, os srs. vejam que coisa curiosa: ele era Geral da Companhia de Jesus, é aquilo que se convencionou chamar pejorativamente o “papa negro”, quer dizer, o papa vestido de preto que manda por detrás do Papa vestido de branco que é o Papa, sucessor de São Pedro. Tal foi o poder da Companhia de Jesus no passado, que o Geral dos jesuítas chamava “papa negro”.
Os srs. sabem que até há pouco tempo pelo menos, o Geral dos jesuítas tinha um livre acesso junto ao Papa que nem os cardeais tinham. Mas com a recomendação de os jornais não noticiarem nada. Quando um cardeal – nos velhos tempos constantinianos – tinha audiência com o Papa, no dia seguinte, no “Osservatore Romano” [publicava]: “Sua Santidade o Papa, fulano de tal, se dignou receber…” ou então, frase mais constantiniana ainda e mais alienante: “a Santidade de Nosso Senhor se dignou receber em privada audiência, sua excelência reverendíssima o cardeal tal, bispo suburbicário de tal ou tal lugar etc.”
Quando vem [o Geral da] Companhia de Jesus, não. A audiência é à tarde, entrava aquele padrezinho vestido de preto, por uma porta do fundo, grande conversa com o Papa e saía… Quer dizer, era o estilo de audiência para a Companhia de Jesus. É, aliás, a grande classe da Companhia de Jesus.
Aqui os srs. veem uma dessas coisas bonitas da Igreja, é de ter classe até naquilo que parece não ter classe.
A classe bonita é um cardeal que chega trajado com seus grandes trajes, com um pequeno séquito, com gente carregando pastas, e que vai visitar o Papa. Ele chega com um automóvel, entra pelo portão de Santa Marta, entra por detrás do Vaticano, entra no pátio de São Dâmaso, a guarda suíça presta continência, vem pessoas de encontro ao cardeal, o levam até a sala do Papa. É a grande categoria de um cardeal. Isso [estilo do Geral dos jesuítas] não é categoria?
Agora, o outro estilo completamente diferente de categoria: homem importantíssimo, vestido de uma roupinha preta, saindo de um automovelzinho qualquer, com um chapeleco qualquer, mas que tem uma audiência direta com o Papa pelo elevador privado, e que nenhum jornal noticia. E que tem essa audiência várias vezes por semana. E ninguém sabe quantas…
Até seria o caso de perguntar quem é que os srs. acham que tem mais classe. Vamos fazer um plebiscito entre os mais jovens. Portanto, os que estão lá no fundo e aqui. O que é mais categoria? Ter uma coisa e outra… eu vou fazer a pergunta um pouco maliciosamente, mas é assim: o que faltaria mais à Igreja, ter uma coisa ou outra? A pergunta tem certa malícia, intencionalmente.
Os que acham que a categoria cardeal é maior, levantem o braço. Os que acham que é a categoria Geral da Companhia de Jesus, levantem o braço. Os que ficam indecisos levantem o braço. Pois não.
O que eu acho?
Eu acho o seguinte: que é preciso distinguir o que tem mais classe do que faz mais falta à Igreja. É claro que do ponto de vista decorativo – o qual tem uma importância suprema, para a própria vida concreta – do ponto de vista decorativo – os cardeais fazem mais falta que o Geral da Companhia de Jesus. É claro que, entretanto, o Geral da Companhia de Jesus tem uma importância pessoal muito maior do que de um ou de todos os cardeais. Mas que, no fundo dos fundos dos fundos, ainda categoria por categoria, a do cardeal é maior.
Por quê? Porque há certas coisas que não se separam de sua aparência. E que de tal maneira não se separam de sua aparência que quando se separa, ela mingua. Assim é, por exemplo, a importância. A importância não se separa tanto assim da aparência de importância, a tal ponto que [se] a pessoa perde completamente a aparência da importância, perde a importância. Aí é uma longa filosofia que não seria o caso de tratar agora.
Há dois erros: um é gostar das aparências de tal maneira que o indivíduo prefere a aparência à realidade. É o que os franceses chamam de modo debicativo “aqueles que gostam do veludo do trono mais do que do mando”.
Há um outro erro que é desprezar de tal maneira a aparência que se contenta apenas com a realidade do mando. Aquilo que contém a realidade e a aparência, é no fundo melhor do que contém só a realidade ou só a aparência.
Melhor do que tudo é pensar só em Deus Nosso Senhor e Nossa Senhora; e mandar quando Deus quer, e obedecer quando Deus quer. Isto é o verdadeiro. Isto que é classe verdadeira.
“Sua alma de adaptava a todos”.
Eu não sei se os srs. se dão bem conta do que é a alma se adaptar a todos. No tempo da Igreja constantiniana havia uma cançãozinha que dr. Paulo, dr. Azeredo, dr. José Fernando e outros devem lembrar, que era mais ou menos assim – canção popular que se cantava na igreja com muita compostura, quando acabavam os Ofícios litúrgicos, o povo ia saindo: “saudemos a Jesus, saudemos a Maria, a prece reanima… traz força… reanima e dá energia”. E a horas tantas o pessoal cantava o seguinte a Nossa Senhora: “vem sorrir com que ri; chorar com que chora; sê amparo, sê força, sê guia, sê luz”.
Sempre me impressionou muito isso em Nossa Senhora: “sorrir com quem rir e chorar com quem chora”. Nossa Senhora se afaz a todos os estados de espírito do homem: Ela é a quietude dos que descansam, Ela é a exaltação dos que lutam, Ela é o sorriso dos que estão distendidos, Ela chora com os que choram, e daí para a frente.
Há uma qualidade excelente da alma por onde um santo pode definir essa flexibilidade em que ele sabe, com cada um, estar no estado de alma daquele. Mas que elasticidade provavelmente isto significa! Que força de adaptação isso provavelmente deve levar! Porque ninguém quer estar no estado de espírito do outro… A gente quer estar no estado de espírito próprio, e quer que o outro se adapte à gente.
A gente entra numa sala, alegre. A gente quer que todo mundo faça cara alegre. “Pois tem toda razão, está alegre… E quando a gente está triste, a gente tem raiva dos outros que estão alegres. A gente está triste, como é que aquele palhaço está dando risada? É ou é verdade que a gente é o centro do mundo?… Não é verdade?”
Não sei se os srs. compreendem toda a destreza que está representada nessa virtude de saber afazer-se à alma dos outros.
“Em 30 de setembro de 1572 ele morreu.
“Antes de ser morto, alguém o aclamou santo. Mas esse alguém tinha uma autoridade – não uma autoridade jurídica, mas uma autoridade implícita para representar todos os santos daquele tempo: era Santa Teresa de Jesus”.
Ele foi conselheiro de Santa Teresa de Jesus. Os srs. imaginem uma salazinha de convento e Santa Teresa de Jesus conversando com São Francisco de Borja… a altitude! Nós não seríamos dignos de olhar pelo buraco da fechadura, não seríamos dignos; seria um favor do qual não somos dignos: olhar pelo buraco da fechadura.
E Santa Teresa de Jesus conheceu de perto as virtudes dele e dizia que ele era um verdadeiro santo.
“Numerosos milagres assinalaram quanto ele era grato a Deus. Clemente X o canonizou em 1670, ao mesmo tempo que São Caetano de Tienne, Filipe Beniti, Luís Bertrand e Santa Rosa de Lima”.
Aqui os srs. tem a vida dele.
Vamos aplicar o nosso método de meditação – quando os srs. estiverem por demais fartos do método, podem me dizer que eu mudo. Eu procurarei, de longe, imitar São Francisco de Borja que se “afazia” aos outros. Mas por enquanto vamos seguir o método.
Então, nós vamos nos pôr no seguinte ponto – eu tomo, naturalmente um ponto só de toda essa biografia, porque haveria um pequeno retiro a pregar com base nas várias noções que borbulham de dentro da vida de um santo. Mas eu pego um ponto só. Eu pego o seguinte ponto: imaginar Santa Teresa de Jesus conversando com São Francisco de Borja.
Eu posso imaginar vários modos de pintar esse quadro.
Um convento espanhol, as janelas altas – porque os srs. sabem que nos conventos das contemplativas, quando há janelas, a janela é muito alta para elas não olharem para fora – algumas grossas grades; um dia chuvoso – para estarmos no clima de hoje – paredes de reboco, caiadas; uma mesa de madeira, simples; sentado num dos lados da mesa, numa poltrona majestosa e pobre como são as melhores coisas espanholas, uma poltrona alta, espetada, um pouco incômoda, muito digna e pobre, sentado São Francisco de Borja.
Diante dele, numa cadeira sem braços, Santa Teresa de Jesus. Era a veneração da simples freira pelo sacerdote; da dirigida pelo diretor espiritual.
Agora, eu posso imaginar esse cena de dois modos: uma luz sobrenatural presente na sala, os dois conversando num momento de consolação única, e ou ele está deslindando um estado de vida mística de Santa Teresa, ou estão os dois falando a respeito das misérias da Igreja, do protestantismo, das blasfêmias, das hóstias calcadas aos pés, das imagens de Nossa Senhora quebradas, da infalibilidade do Papa que se nega etc., etc. e estão se aquecendo para a luta. Se os srs. quiserem, podem imaginar do lado de fora uma grande tempestade.
Bem, se os srs. quiserem, podem imaginar isso de outra maneira: os dois estão ali dentro, não tem nenhuma luz sobrenatural, os dois estão numa conversa difícil. Não é porque estejam encrencados um com o outro, mas é porque os dois estão fazendo luta para conversar, ninguém está com vontade de tocar aquilo para a frente. Ele estava, vamos dizer, indisposto; e ela está com suma dificuldade de abrir a alma para ele. Do lado de fora, uma chuva que deita umas gotinhas manhosas pam, pam… uma dessas chuvas que não molham. Uma coisa que também não desata. Mas acontece que está correndo perfeitamente bem, com toda a fidelidade dos dois. Ele vence a indisposição e dá inteira a direção espiritual; ela abre sua alma completamente.
Bem, do lado de fora, olhando por um grande buraco da fechadura – como eram naquelas portas daquele tempo – estou eu. Eu, quer dizer cada um dos srs.
Agora eu olho a primeira cena: a consolação extraordinária, a presença sensível do Espírito Santo, as inflexões de voz, os tons, os gestos santos, o perfume de santidade em tudo aquilo. Eu estou do lado de fora e vendo a cena.
Primeira pergunta: eu percebo bem o valor daquilo que eu estou vendo? Quer dizer, estou compreendendo essa presença indizível, mas sensível de Deus ali? Estou compreendendo o valor incomparável dessa santidade? Estou com afinidade de alma com aquilo de tal maneira que por nada no mundo eu trocaria por ver aquilo? Nada, nem na linha da megalice, nem na linha da microlice? Nem um trono, nem a cama eu trocaria por aquilo? Eu teria enlevo suficiente para passar horas e anos, ajoelhado, olhando aquilo?
Isto é admirar. É ver a coisa na sua excelsitude, compreender o que ela tem de magnífico. Corolário: sentir-me pequeno. Agora, notem o celeste da coisa: pequeno sim, ínfimo até; porém, não sem proporção com aquilo. Quer dizer, por mais alto que aquilo seja e por mais baixo que eu seja, o eu olhar aquilo e o eu admirar aquilo, mostra que aquilo tem uma proporção comigo. Algo daquilo pode entrar em mim. Algo daquilo eu posso ser.
Quer dizer, eu não estou diante daquilo como uma formiga, por exemplo, diante de um dragão, que repele a formiga, que amedronta a formiga. Aquilo é uma festa de espiritualidade da qual, do lado de fora e pelo buraco de fechadura, pode entrar naquela festa a minha alma inteira. E não é só dizer que minha alma pode entrar lá, mas é que aquilo pode entrar em mim, se eu devotamente, reverentemente, por compreender o que eu não sou, e por compreender o que é aquilo, eu admiro, aquilo entra em mim.
Então a gente compreende que um verdadeiro pintor gostaria de pintar a cena com três personagens. Gostaria de pintar os dois conversando, e do outro lado, ajoelhado na porta, o pobre coitado de mãos postas e de alma enlevada… haurindo aquilo!
Era ou não era um lindíssimo complemento da cena? Eu do lado de fora da porta, apenas pelo buraco da fechadura, mas vendo mais do que se visse o céu material inteiro. Os srs. compreendem o que é admirar. E como essa posição de admiração não nos humilha. Ela é um convite para nós subirmos, não para nos igualarmos, mas para participarmos. Quem sabe alguma alma, tocada pela graça, até para se igualar, até para ser mais. Mas há uma participação ainda para aquele que não se iguala.
Outro aspecto: a conversa está árida, vamos supor que não [constasse] sobre o segredo de alma de Santa Teresa de Jesus, porque senão quem está do lado de fora é um sacrílego, mas vamos dizer que fosse sobre um assunto que um terceiro possa ouvir. Ele está acompanhando a luta daquelas duas almas, está percebendo como elas estão sofrendo e cumprindo o dever. Ele assiste aquilo lance por lance, como quem assiste um torneio, em que cada um não tem como adversário o outro, mas a si próprio. E vai vendo a vitória de cada um sobre si mesmo…
Então, do lado de fora, ajoelhado, reverente, compungido, sentindo que a gente consigo não é aquilo, e rezando a Nossa Senhora para eles cumprirem o dever deles e para nós cumprirmos o nosso.
Bom, agora, a aplicação para nós.
Eu me olho assim, de frente, como estou olhando aquele lustre da sala de reuniões. Me olho de frente e pergunto: eu sou bem assim com as coisas que Deus me pôs nesta terra para admirar? Quer dizer, a minha alma é uma alma propensa a essa admiração? Propensa de tal maneira que eu me interesso mais por aquilo que eu admiro do que por mim mesmo? Ou, pelo contrário, minha alma vive preocupada comigo mesmo? E logo que eu vejo aquela superioridade, eu me sinto humilhado, me sinto invejoso e me sinto expulso? Qual é o meu movimento de alma: me sinto humilhado, invejo, expulso, excluído?
Ou, se não isso, em termos mais brandos: eu me sinto um tanto alheio?… olho um pouco por curiosidade, daqui a pouco eu estou sentindo sede, abandono o lugar e vou lá para dentro beber água, e depois fico conversando com um frade velho no convento, ou com uma freira velha.
Por quê? Porque de passagem a freira me disse uma amabilidade: “Oh! como o sr. é simpático, como o sr. se chama?” – esqueci de tudo…
“Ah! me chamo Plinio Corrêa de Oliveira, nasci em São Paulo, em 1908, a sra. não sabia?” nhênhê… começa dar jornal falado… este me [distrai] porque está falando de mim…
Então, como é isso? Diante das coisas que nós devemos admirar – eu falei, por exemplo, de um cardeal. Os srs. quase não pegaram a Igreja constantiniana, mas os srs. tem ideia do que era um cardeal na sua grande pompa. Um cardeal chegando, por exemplo, numa igreja, numa Sexta-feira Santa para a adoração da Cruz. Com uma capa toda púrpura com alguns metros de tamanho, carregada por caudatários, e ainda com uma espécie de pequeno capuz como se fosse de um Doge de Veneza. Chegando para adorar a Cruz.
Não quero saber qual é o cardeal que está dentro da capa; eu quero saber a instituição cardeal, o cargo cardeal, a função cardeal, a nobreza cardeal, o esplendor cardeal.
Eu sou capaz de admirar aquilo sabendo que eu não fui feito para ser cardeal? que aquilo nunca vai ser para mim, que aquilo é para um outro? Mas que aquilo é um adorno da Igreja de Deus?
E assim quanta coisa há pelo mundo para nós admirarmos?!
Onde está a nossa admiração?
Ora diante das coisas admiráveis, bonitas; ora diante das coisas admiráveis que não são bonitas para nossos sentidos, [são] só para nossa inteligência: o esforço cumprido, por exemplo.
A dedicação sem graça. Quantas vezes a dedicação é sem graça. É muito bonito a gente se dedicar ao outro, não é?… “que lindo, a dedicação”… Mas a gente dedicar-se ao outro, certo que no ato da dedicação a gente vai levar uma paulada na cabeça, não é bonito. Sobretudo quando ninguém entende aquela dedicação… nem o beneficiário. E a gente se dedica apenas porque esta é a ordem querida por Deus e a gente quer a Deus.
Então, aqui fica um conjunto de elementos para nossa consideração espiritual. Nós nos vermos de frente.
E procurarmos admirar a quem?
Não é só admirar a Santa Teresa de Jesus e São Francisco de Borja, não é isso não. É admirar a alma que é capaz de ser admirativa, admirar a admiração. Aqui está o centro do Santo do Dia. E com isto está terminado.
Existem ocorrências de hoje para noticiar? Então, vamos terminar.