Santo do Dia, 31 de março de 1971
A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo“, em abril de 1959.
Conversão de São Francisco de Borja (Museu do Prado, Madri) – A cena se reporta ao momento em que viu, no caixão, a esposa do Imperador Carlos V e considerou o nada que são as coisas desse mundo que passa
Hoje, 1º de outubro, festa de São Francisco de Borja, confessor: Duque de Gândia e Geral da Companhia de Jesus, século XVI. É também novena de Nossa Senhora Aparecida. Passo agora à vida de São Francisco de Borja.
O século XVI marcou sobre a Igreja uma época dolorosa. É uma ficha com um pequeno discurso:
“O paganismo renascente, o alastramento do protestantismo pela Europa e logo o jansenismo devastavam-na no interior. Enquanto no exterior o islamismo torna-se cada vez mais ameaçador.
“Naquele tempo foram martirizados 40 mártires na Holanda. E São João Fischer e São Tomás Morus na Inglaterra; o bem-aventurado Inácio de Azevedo e seus 39 bem-aventurados companheiros, frustrados por calvinistas em pleno mar, a caminho do Brasil. Mas para remediar tantos males a Providência suscitou uma plêiade de santos em toda a Europa. Na Espanha Santo Inácio de Loiola, São Francisco Xavier, Santa Tereza de Ávila, São João da Cruz, São Pedro de Alcântara, São Pascoal Bailão, São Tomás de Vila Nova; realiza-se verdadeira reforma espiritual que abrange toda a cristandade.
“Houve santos como São Carlos Borromeu, São Felipe Néri, São Pedro Canisio, São Francisco de Paula, São Luís Gonzaga, Santo Antonio Maria de Zacarias, São João de Deus, São Jerônimo Emiliano e o grande São Pio V, iluminam a Cristandade que as trevas da heresia procuram obscurecer. É nesse século tormentoso na católica Espanha que a Providência faz brilhar, com sua nobreza, com sua virtude, pela sua combatividade contra a investida do espírito do mal a São Francisco de Borja.
“São Francisco de Borja nasceu de uma família de sangue real originaria do reino de Valência, das mais antigas e mais nobres de toda a Espanha que tinha relações de parentesco com as principais casas reinantes de toda a Europa, inclusive com o imperador Carlos V. Este, ao receber São Francisco em sua corte aos 17 anos, ficou imediatamente cativo por seu porte nobre e modéstia prometendo tê-lo sempre ao seu lado e preparar-lhe um futuro digno do mérito e do sangue real de que descendia. Esta amizade carregada de afeto e admiração Carlos V conservou por toda vida.
“Quanto a Francisco de Borja, depois da morte de sua esposa, quis entrar para a Companhia de Jesus. Como era de sangue real, Santo Inácio ordenou que obtivesse para isso a licencia do imperador que se encontrava nos Países Baixos. São Francisco escreveu ao imperador se prontificando a essa graça ao que respondeu Carlos V: Eu sinto vivamente a perda que nós sofremos pelo fato de se retirar um homem de vosso mérito que foi nossa luz e conselho, o modelo nos primeiros cargos do Estado, um fator de edificação para toda a Corte por suas grandes virtudes, sua alta piedade. Mas reconheço que seria pouco razoável de [afastar-vos] do mestre que vós escolhestes e que vós quereis daqui por diante seguir unicamente. Eu vos concedo, portanto, com pesar, a licença que me pedis. Eu vos autorizo [a constituir herdeiro] de vossos feudos o vosso filho primogênito. O número daqueles que vos invejam será maior que o daqueles que perguntarão … porque é fácil admirar um mundo de bonitos exemplos, mas é difícil segui-los. Eu me recomendo às vossas orações e eu conto convosco para atrair bênçãos sobre mim, meus Estados e toda a Cristandade”.
“São Francisco de Borja, com a morte do Pe. Lainez, foi eleito 3º superior geral da Companhia de Jesus.
“Nós, no início das funções desse novo cargo, tivemos que rebater e lutar contra as calúnias dos luteranos e dos inimigos da Companhia de Jesus que procuravam de todos os modos levá-la à ruína. Para isso procuram até excitar a rivalidade desta com os dominicanos, na esperança de que a Ordem de São Domingos, mais antiga, se esforçasse por destruir [a ordem de] Santo Inácio, mais nova.
“Foi, portanto, com alegria que viram subir ao Trono de São Pedro, no dia da eleição de São Pio V [pintura acima], a um dominicano, o Cardeal Alexandrino. Um membro do Sacro Colégio no próprio dia da eleição de São Pio V narrou-lhe quanto os inimigos da Igreja se rejubilaram com sua eleição, na esperança de obter sob seu reinado a extinção da Companhia de Jesus. ‘Deus me preserve de cometer um tão grande pecado’, exclama o papa. Nós vemos claramente que o Senhor quer servir-se destes padres para Sua glória. O seu instituto é chamado a produzir grandes frutos para a Igreja.
“No dia seguinte Pio V, segundo Hugo, dirigia-se à Basílica de São João de Latrão para a cerimônia de coroação. Era levado solenemente na sedia gestatória, acompanhado de todos os esplendores da corte romana. Uma multidão imensa encheu as ruas e os lugares onde devia passar o cortejo papal. Chegando diante da casa professa da Campanha de Jesus o papa ordena que se suspenda o cortejo”.
Era quebrar um antigo uso, era fazer uma coisa inédita até então. Era um acontecimento que devia tocar todos os espíritos, a ser transmitido para a posteridade, para a História, e tornar-se uma lembrança popular para a Tradição.
“São Pio V fez chamar São Francisco de Borja que se aproximou com respeito do soberano pontífice. O Papa o abraçou com efusão, disse-lhe que será sempre para com ele [São Francisco] um amigo, e para todos os seus um protetor e um apoio. Agradece-lhe em altas vozes os serviços que sua Ordem não deixou de render à Santa Igreja desde a sua instituição, e diz-lhe que seus votos mais ardentes são o de ver seus religiosos trabalhando com o mesmo zelo e devotamento para a glória de Deus e à salvação das almas. Depois, ordenou continuar a marcha interrompida”.
São Francisco de Borja (1510-1572). Quadro de Alonso Cano
Essa ficha consta de duas partes bem distintas. A primeira é uma descrição de São Francisco de Borja enquanto ainda leigo. E depois uma descrição mais da atuação que da pessoa dele depois de ter sido eleito geral da Companhia.
Os senhores para poderem avaliar o alcance dos dados biográficos contidos nessa ficha, devem analisar o quadro dentro do qual este santo se moveu e dentro do qual ele dependia de Carlos V que era imperador do Sacro Império, rei da Hungria, rei da Bohemia e Senhor de diversos territórios espalhados pela Itália. Ao mesmo tempo rei da Espanha e, portanto, das colônias espanholas. Era o monarca que dizia que “o sol jamais se punha nas fronteiras do império”. Quer dizer, quando era manhã de um lado já anoitecia do outro lado, e reciprocamente. Havia sempre dia nas fronteiras do império. Ele foi um dos monarcas de maior poder que a História tenha registrado.
Mas não se trata aqui apenas do poder. O século XVI no qual São Francisco viveu era sem dúvida já de decadência em relação à Idade Média, mas ainda próximo a ela. E muitos valores da Idade Média ainda estavam vivos naquele tempo. Um desses é que se sabia melhor naquele tempo apreciar o direito, do que o poder. E se é verdade que Carlos V era o monarca mais poderoso de seu tempo, é verdade também que era o monarca que tinha maior direito à honra e à reverência de seu tempo. Porque o Imperador do Sacro Império Romano Alemão era considerado o chefe natural de toda Cristandade, superior a todos os reis, a todos os soberanos temporais, e tendo acima de si apenas o soberano espiritual que era o Papa.
São Francisco de Borja como senhores acabam de ver, era de uma alta linhagem, descendia de uma família real que tinha reinado outrora no reino de Valença. Esses reinos da Espanha foram se unindo. Algum tempo após a conquista moura, várias destas famílias reais ficaram sem trono, mas muito consideradas, ocupando uma alta categoria na nobreza. São Francisco de Borja descendia de uma destas famílias reais.
A situação dele era quase a de um príncipe e daí atrair sobre ele o olhar do imperador. Quando ele era apenas adolescente, 17 anos, foi encaminhado para a corte do imperador que sendo a maior corte do mundo era o que atraia também o maior número de homens de valor, de fidalgos importantes, distintos pela sua educação, pelas suas maneiras, pela sua instrução, pelas suas virtudes, enfim, por mil modos. Depois, artistas famosos, políticos famosos, financistas famosos, diplomatas famosos, militares famosos. É um ponto de concentração de todos os homens de valor que havia em toda a Europa. Ou, digamos, de homens de valor dentro dos maiores que havia na Europa, pairando sobre todos eles a figura do imperador Carlos V, muito respeitado pelo que já disse aos senhores e pelo seu valor pessoal. Era um grande estadista, um pouco militar, e que governava com grande êxito esse número extraordinário de Estados.
Entra então esse adolescente de 17 anos neste cenário extraordinário. E aí, imediatamente se sobressai. E de modo tão extraordinário que a atenção do imperador, que tinha tantas pessoas sobre quem se fixar, se fixa sobre São Francisco de Borja. Príncipes como ele, ou semi príncipes como ele, a Europa regurgitava naquele tempo. Com muitas monarquias, casas reinantes etc., que enxameavam em torno do imperador. De maneira que ele tinha um mundo de concorrentes em torno de si.
Mas explica a nossa ficha que ele era muito “nobre e modesto”. A palavra “nobre” — nobre se entende o que tinha maneiras de uma grande dignidade, grande esplendor, de uma grande superioridade. Mas o que quer dizer a palavra “modesto” aí? Modesto é o que na linguagem antiga — isto aqui é empregado No sentido antigo — é uma pessoa que tem bons modos.
A palavra “modéstia” vem de “modos”. Não é uma pessoa apagada que está procurando uma toca onde se meter. Isso é o contrário de bons modos. Ninguém foi feito para estar sumido. O convívio humano não consiste nessas pulgas imbecilmente tímidas. Mas é uma pessoa cujas maneiras eram extraordinárias, atraiam muito a atenção. E por causa disso o Imperador resolveu chamá-lo junto de si.
O imperador sentiu desde logo de tal maneira o atrativo da santidade de São Francisco de Borja que chegou a ponto de querer que estivesse o dia inteiro ao lado dele. E colocou São Francisco em seu Conselho. Ser conselheiro do maior monarca da terra, era participar de seu poder, era um dos homens mais importantes da terra.
Depois, ele era senhor dum principado na Espanha que devia governar também, o ducado de Gândia. Casou-se, fundou casa, teve descendentes etc., etc.
Aliás, é curioso, mas uma descendente dele casou-se com um sobrinho, ou vice versa, de Santo Inácio de Loiola. E houve uma espécie de política entre os dois santos porque São Francisco queria o casamento e Santo Inácio não queria, porque Santo Inácio era nobre, mas São Francisco era de família mais nobre. Santo Inácio não queria o casamento para não dar a impressão de que estava aproveitando-se da condição de superior de São Francisco de Borja para fazer bons negócios com a família.
Mas São Francisco tinha uma veneração por Santo Inácio como poucas vezes tem-se visto um homem ter por outro. E se sentiu muitíssimo honrado em ver alguém do sangue de Santo Inácio, embora menos nobre, entrar para sua família. Então os dois faziam uma santa política desencontrada. Porém a política de São Francisco prevaleceu sobre a de Santo Inácio, e o casamento se realizou.
Então, volto a dizer, ele tinha descendentes, tinha, portanto, um mundo de interesses materiais com que devia tratar. Entre outras pessoas que conheceu, figura a esposa do imperador Carlos V. Se não me engano era uma princesa francesa. Carlos V teve três esposas. Eu não me lembro qual delas era. São Francisco ainda quando jovem, vivia no século, recebeu a notícia, que a imperatriz tinha morrido, ia ser enterrada. Quando abriram o esquife, o cadáver estava já começando a se deteriorar. E ele viu dentro do caixão, em estado que caminhava para a putrefação, o corpo daquela que tinha sido a maior princesa da Cristandade, e que ele venerava muito, parece que era uma pessoa brilhante.
Quando se deu assim de frente com a morte, ele compreendeu como todas as coisas da vida são pocas. Então resolveu abandonar tudo: pediu a Santo Inácio para o receber como jesuíta. Santo Inácio exigiu, como condição, uma licença do Imperador, porque sendo ele uma pessoa tão relacionada com o Imperador, não devia dar um pontapé nas obrigações que tinha em seu serviço.
O Imperador escreveu esta linda carta que acabo de ler aos senhores, fazendo elogios de São Francisco de Borja, mas culminando nesta confissão: “este homem me é muito necessário para direção do meu Império, mas não tenho direito de disputá-lo a Deus que o chama”. E depois esta frase que exprime bem o espírito do tempo:” o senhor vai ter muita gente que o vai invejar, mas vai ter poucas pessoas que o vão imitar, porque os bons exemplos muita gente admira, poucas seguem”.
Os senhores estão vendo a diferença entre a Idade Média, os tempos modernos que são esses [do século XVI] e os da nossa época contemporânea. Na Idade Média os bons exemplos muita gente admirava e muita gente seguia; nos tempos modernos muita gente admirava e poucos seguiam; em nossa época os bons exemplos não são admirados, nem são seguidos… e perseguem os que dão o bom exemplo. Aí os senhores têm as três Revoluções, vistas debaixo deste ângulo.
Os senhores veem como os tempos mudaram: Carlos V era um imperador que tinha defeitos e não pequenos. Entre outros — e os senhores sabem quanto este defeito é um defeito grave e execrável — mostrou-se mole na defesa da Igreja contra o protestantismo, o qual teria sido esmagado por ele e não o foi. Não preciso dizer mais nada. Mas era um homem que admirava quem se entregava a Deus. E sentia ainda de bom grado quando alguém o fazia.
Entra São Francisco na Companhia de Jesus e ocupa logo os primeiros cargos, torna-se Geral. Em tais funções, se dá o lindo episódio com São Pio V. Este era de uma Ordem que tinha tido rivalidades com a Companhia de Jesus. Os dominicanos sustentavam uma tese a respeito da graça que era diferente da Companhia de Jesus. Aliás, a tese desta última é mais simpática do que a dos dominicanos, e cuja solução não se deu naquele tempo. A rivalidade chegou tão longe que quando os irmãos da Companhia de Jesus e os irmãos dominicanos se encontravam no mercado onde iam comprar alimentos para os respectivos conventos, saía às vezes brigas de um lado e de outro. Mas estas são coisas que não preocupavam os santos… preocupava a quem não era santo.
Quando São Pio V subiu ao trono pontifício, a máquina de boatos — bem entendido já existente naquele tempo, pois sem ela não havia Revolução — a odiando a Companhia de Jesus, começou a espalhar que São Pio V, que era dominicano, fecharia a Companhia.
O que São Pio V fez para acabar com esse boato? No dia em que foi coroado papa, ia carregado na sedia gestatória, aquele trono portátil onde os papas até este [Paulo VI então reinante, n.d.c.], faziam-se carregar, com leques e com trombetas etc., numa linda procissão. Fazia parte do costume do tempo que quando o soberano ia se coroar, no trajeto todos os donos de casa ficavam na entrada com os respectivos familiares, para se ajoelharem à passagem do soberano. O papa era rei de Roma, e muito mais do que isso era papa. De maneira que quando passou pela sede da Companhia de Jesus estava de lado de fora São Francisco. O papa então — ele era senhor disto — não seguiu a regra até então jamais alterada, segundo a qual o Santo Padre no trajeto entre seu palácio e a igreja de São João de Latrão, onde ia ser coroado, não interrompia para nada.
Diante da sede a Companhia de Jesus, mandou parar. Ali estava São Francisco de Borja com toda a direção da Companhia. Ele manda chamar São Francisco de Borja. Podemos imaginar a cena: São Pio V, alto – tinha sido inquisidor -, magro, até esquelético, com um nariz enorme, em forma de bico de águia que parecia feito para cortar – sublime! -, já velho, caminhando para a etapa suprema de sua vida em que ia deitar as últimas luzes do pontificado e depois ia para o Céu. Era o papa da batalha de Lepanto (1571). E São Francisco de Borja que se aproxima, tendo em si, debaixo da humildade do traje de jesuíta, algo do “grand seigneur”, respeitoso, cheio de veneração, admirando aquele santo que Deus tinha mandado como papa à Igreja. Ajoelha-se, São Pio V se inclina e o abraça. Então há este diálogo que está relatado na ficha.
O cortejo passa, os religiosos entram para dentro da casa e com certeza vão, com São Francisco à testa, agradecer ao Santíssimo Sacramento… Que cena! que perfume o encontro destes dois santos! Que destilações de alma se percebe em tudo isso! Que esplendor!
Acho que é legitimo a gente às vezes desviar os olhos exaustos de tanta podridão e de tantas asquerosidades e tantas traições da época contemporânea, e fixar os olhos numa cena desta. E para ter um fim de semana, em Nossa Senhora, não pensar na época presente, mas no olhar enlevado de São Francisco de Borja para um santo como São Pio V, de um lado. E, de outro, considerar o olhar enlevado de São Pio V para um santo como São Francisco de Borja! É uma espécie de arco voltaico do encontro destes dois pontos.
Vamos ficar no encontro desse duplo olhar. Nesses olhares havia alguma coisa do olhar de Nossa Senhora.