Santo do Dia, 4 novembro de 1968
A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
Hoje temos a festa de um grande santo, São Carlos Borromeu [1538-3/11/1584], bispo e confessor:
“Suscitado por Deus para a verdadeira reforma da Igreja. Século XVI. À sua prudência deve-se, em grande parte, a feliz conclusão do Concílio Tridentino”.
É preciso que os senhores considerem bem o que quer dizer aqui prudência. A prudência não quer dizer somente a atitude de um homem cauteloso, que evitou qualquer risco. Este é o sentido comum da palavra. A prudência, como virtude cardeal, é – simplificando um pouco as coisas – a virtude que nos faz conhecer e aplicar bem os métodos necessários para os fins que temos em vista.
Por exemplo, um membro prudentíssimo da DAFN [Diretoria Administrativa Financeira Nacional da TFP brasileira] é aquele que emprega as boas regras para levar a bom termo a escrituração. Nós tratamos com prudência da legislação trabalhista não só quando estamos pagando qualquer coisa para cumprir a lei, mas é também quando fazemos uma boa briga trabalhista para pagar algo. Quer dizer, a prudência é o acerto no agir.
Então, o que se está aqui elogiando em São Carlos Borromeu é porque teve esse acerto; para a aplicação do Concílio de Trento, ele empregou os métodos adequados. É por isso também que, na Ladainha Laurentana, se chame Nossa Senhora de Virgo Prudentissima, a Virgem que – com muito acerto – fez todas as coisas para chegar ao fim que a superexcelsa vocação dEla pedia ou indicava.
São Carlos Borromeu realizou os concílios provinciais e os sínodos diocesanos na catedral de Milão
“Ele foi cardeal aos 23 anos, presidiu sínodos e concílios, estabeleceu colégios e comunidades, renovou o espírito de seu clero e das ordens religiosas. A ele se deve a criação dos seminários diocesanos no século XVI”.
É uma coisa curiosa como os modos de ser da Igreja caminham e como são diferentes dos modos de ser – legítimos – de hoje. Os senhores imaginem que tudo na Igreja estivesse andando bem. Os senhores imaginem que se fizesse o seguinte elogio de um bispo: “Esse bispo é muito bom… Primeiro, ele presidiu sínodos” (sínodos são reuniões de padres sob a direção do bispo para fazerem leis para a diocese; o bispo é que faz as leis; o padre está ali apenas para dar sugestões, como um conselheiro qualificado do bispo), “presidiu sínodos, presidiu concílios (ou seja, concílios parciais de bispos em nome do Papa); depois, estabeleceu colégios católicos e comunidades religiosas e renovou o espírito de seu clero e das ordens religiosas”.
Os senhores não ficariam com uma certa decepção? Não achariam, de um lado, uma coisa excelente e, de outro lado, não ficariam com uma impressão de que falta qualquer coisa e que há uma lacuna que deixa passar o perigo, apesar de tudo? Ora, qual é essa lacuna? É exatamente que, como a Revolução se estruturou de maneira a organizar um movimento revolucionário de leigos agindo sobre leigos, não dentro dessas ou daquelas instituições só, mas no conjunto de todos os fiéis, tornou-se necessário um movimento de leigos agindo sobre o conjunto dos leigos a favor da Igreja. E se esse movimento não for feito, não se tem uma ação eficaz da Igreja. Haveria uma ação falha, com lacunas.
Exatamente o que nosso Grupo[1] visa realizar é essa atuação em benefício da Tradição, da Família e da Propriedade[2]. Mas se nos dessem asas livres – sobretudo sem deixar a Tradição, Família e Propriedade nem de longe, mas a favor de Nossa Senhora e de coisas espirituais etc. – faríamos ainda mais porque o leigo agindo sobre o leigo, no ambiente da vida comum que a ação dos eclesiásticos não atinge, é propriamente o nosso apostolado. E sem esse apostolado, não existe uma penetração eficaz do espírito da Igreja no mundo de hoje.
Quer dizer, onde houve um perigo, onde a Revolução cresceu num ponto, compete à Igreja acompanhá-la e crescer neste ponto correspondente, opor-se à Revolução ponto por ponto, paralelamente. Esta é a característica da ação da Igreja.
São Francisco de Sales A compara num de seus livros, muito belamente, com uns rochedos de que fala a mitologia e que cercavam não me recordo que lago ou que mar. Dizia que eram rochedos que cresciam com as tempestades e que, quando o mar ficava revolto, o rochedo crescia. De maneira que, por mais que o mar crescesse, ele nunca podia invadir a terra. Assim é a Igreja Católica em face da Revolução. À medida que o mar – o mundo – vai ficando revolto, nessa medida a Igreja vai crescendo.
Nós temos que ter isso bem em vista, caso contrário não entendemos bem o Grupo. E se não fosse levar o Santo do Dia mais longe do que os limites do horário permitem, eu estaria disposto a mostrar aos senhores como a história do Grupo obedece precisamente a esta regra. Ele vive de uma luta em que, cada vez que o inimigo dá um passo a mais, o Grupo cresce. E assim se aperfeiçoa interiormente. De tal maneira que, quando se olha para trás, a gente se pergunta se o inimigo não foi um modelador, um artífice dele. Ou seja, é na defesa e na contra ofensiva legal, pacífica e no campo das idéias, em face de um adversário que nós tomamos toda nossa estatura.
Outra coisa: Nossa Senhora de Genazzano. Por razões que já expliquei várias vezes [3], o que está implícito nessa devoção é que Nossa Senhora nos assistirá com graças, por assim dizer, fora de toda a proporção e fora de todo o mecanismo das anteriores. São graças que não se podiam imaginar, não seria sensato imaginar. São extremos de misericórdia, correspondendo a ocasiões de gravíssimo apuro de vida interior ou de vida de apostolado.
Não é verdade que a graça de Nossa Senhora de Genazzano nos veio numa ocasião de muita aflição, pelo menos para mim? Não é verdade que uma oração a Nossa Senhora de Genazzano deteve subitamente uma tempestade que estava em cima de nós? E por aí exatamente os senhores estão vendo que, ainda que não pareça, nós crescemos em função dos golpes do adversário. Eu poderia fazer toda uma filosofia da história do Grupo, desenvolvendo isso. Seria uma coisa muito bonita.
Com isto, meus caros, falando de São Carlos Borromeu, mudei de assunto e acabei falando no assunto sobre o qual várias vezes refleti hoje. “A boca fala da abundância do coração”. Por causa disso, minha meditação de hoje transvasou para o Santo do Dia, e não farei senão ler a ficha do Santo do Dia.
A nobreza de sangue é poderoso estímulo para a prática da virtude
Do magnífico texto da homilia de S. Carlos Borromeu, na festa da Natividade de Nossa Senhora, em 8 de Setembro de 1584:
“O início do Santo Evangelho escrito por São Mateus, que deste lugar vos foi há pouco proclamado pela Santa Madre Igreja, nos induz antes de tudo a examinar atentamente a nobreza, a insigne linhagem e a magnificência desta Virgem Santíssima. Se, pois, se deve considerar nobre aquele que tira a sua origem do mérito de antepassados ilustres, quão grande é a nobreza de Maria, que teve princípio de geração em Reis, Patriarcas, Profetas e Sacerdotes da tribo de Judá, da raça de Abraão, da estirpe régia de David?
“Ainda que não ignoremos sermos nós de verdadeira nobreza – a cristã – a qual nos conferiu a todos o Unigênito do Pai, quando `a todos aqueles que O receberam lhes deu o poder para se tornarem filhos de Deus’ (Jo. 1, 12), e que a todos os fiéis cristãos é comum essa dignidade e nobreza, não obstante de nenhum modo pensamos que deve ser desprezada ou rejeitada a nobreza segundo a carne. Pelo contrário, quem não reconhecesse esta mesma nobreza igualmente como dom e favor singular de Deus, e não desse também por ela graças especiais a Deus, que é o dispensador de todos os bens, este seria na verdade absolutamente indigno da denominação de nobre, posto que, por deformidade de um espírito ingrato, que mais vergonhoso não pode ser, obscureceria o brilho dos seus maiores. Pois a nobreza da carne muito contribui também para o verdadeiro reluzimento da alma e proporciona-lhe não pequenos benefícios.
“Antes de tudo, o esplendor do sangue, a virtude dos antepassados e os feitos famosos predispõem de modo maravilhoso o varão nobre a marchar sobre as pegadas daqueles de quem ele descende. E é fora de dúvida também que a sua própria natureza é mais inclinada ao bem e à virtude: seja porque isto lhe toque pela conformidade do seu sangue com o dos seus progenitores e, em conseqüência, pela transmissão do espírito deles; seja pela perene memória que retém das suas virtudes, as quais considera como mais caras – o que ele sabe avaliar – por terem brilhado nos seus consanguíneos; seja, por fim, pela reta educação e formação que recebeu de varões ilustres. É certamente reconhecido como verdadeiro que a nobreza, a magnificência, a dignidade, a virtude e a autoridade dos pais induzem muito os filhos a manterem o zelo por essas mesmas coisas. De onde se segue que os nobres, por um como que instinto da natureza, são desejosos da honra, cultivam a magnanimidade, desprezam as vantagens de baixo preço, aborrecem [odeiam] enfim tudo aquilo que reputam indigno da sua nobreza.
“Em segundo lugar, a nobreza é igualmente um estímulo a aferrar-se às virtudes. Difere este do primeiro benefício que referimos pelo fato de que aquele predispõe o nobre a abraçar mais facilmente as obras retas; este segundo, porém, acrescenta ainda, àquilo que se tornou fácil, estímulos veementes; e, como um freio, coíbe os vícios e as ações que desconvêm ao nobre, e faz com que, se alguma vez o nobre cair nalguma falta, logo se tomará de um pudor extraordinário e cuidará, com todas as suas forças, de se purificar dessa mancha.
“Por fim, o último benefício a considerar na nobreza é que, assim como uma pedra preciosa refulge mais quando engastada em ouro do que em ferro, assim as mesmas virtudes são mais esplendorosas no nobre do que no plebeu; e à virtude junta-se a nobreza, como o maior ornamento dela.
“Não apenas é verdade que se deve atribuir valor à nobreza e ao lustre dos antepassados, como além disso sustentamos muito firmemente estas duas teses, a saber: a primeira é que, tal como no nobre é muito mais esplêndida a virtude, também nele o vício é de longe muito mais vergonhoso. Assim como mais facilmente se nota a sujidade num lugar claro e batido pelos raios do sol do que num canto obscuro, e as manchas numa veste de ouro do que numa veste comum e andrajosa, ou, por fim, marcas e cicatrizes no rosto do que em outra parte oculta do corpo, assim também os vícios são mais notáveis e chamam muito mais a atenção, e mais vergonhosamente desfiguram o espírito dos culpados, nos nobres do que nos homens de condição vulgar. Que há, na verdade, de mais indigno do que o adolescente nascido de pais ilustres e de fino trato, que se vê corrompido e entregue às tabernas, jogos, bebidas e comedorias desregradas?
“A segunda tese é que, ainda quando alguém seja nobilíssimo, se à nobreza dos seus maiores não acrescenta as próprias virtudes, imediatamente se torna obscuro. Pois, com a descontinuidade da virtude, cessa nele a nobreza, uma vez que, se permanecem nele os vestígios do lustre dos seus antepassados, são certamente inúteis; pois nem sequer atingem o seu fim, a saber: que o tornem mais inclinado aos grandes feitos, que sejam para ele estímulos à virtude, e freio que o coíba de pecar. E toda a nobreza serve, para ele, de sumo opróbrio ou não acrescenta à sua honra o mínimo grau. E isto é o que exprobava Nosso Senhor Jesus Cristo aos fariseus que se jactavam de ser filhos de Abraão, dizendo-lhes: `Se sois filhos de Abraão, fazei as obras de Abraão’ (Jo. 8, 39). Pois alguém só pode vangloriar-se de ser filho, ou neto, e partícipe da nobreza daquele cuja vida e virtudes imita. E, por isso, o Senhor dizia aos mesmos: `Vós tendes por pai o Diabo’ (Jo. 8, 44); e eram chamados, além disso, pelo santíssimo Precursor de Cristo, `raça de víboras’ (Lc. 3, 7).
“Quem é na verdade tão ignorante e inadvertido que ainda encontre base para duvidar da suma nobreza da Santíssima Virgem Maria? Quem não sabe que Ela não apenas igualou as virtudes dos progenitores, mas muitíssimo de longe os excedeu, a tal ponto que se pode e deve chamá-La, com razão, nobilíssima, pois que o esplendor de tão ilustres Patriarcas, Reis, Profetas e Sacerdotes, cujas séries o Evangelho de hoje descreve, tomou nEla o máximo desenvolvimento?
“Perguntará sem dúvida alguém porque razão, de tudo quanto foi até aqui exposto, se pode deduzir a nobreza dos antepassados de Maria, uma vez que é descrita a origem de José, que foi esposo de Maria. Porém, quem mais diligentemente tiver estudado as Sagradas Escrituras resolverá facilmente esta dúvida. Porquanto na Lei Divina era estabelecido que a virgem não tomasse varão fora da própria tribo, principalmente em vista da linha de sucessão hereditária (cfr. Num. 36, 6 ss.); e por isso fica claríssimo terem sido José e Maria da mesma tribo e família, e desta descrição da geração humana do Filho de Deus, torna-se patente ser uma e a mesma a nobreza duma e doutro“.
E o Santo passa a encarar outro aspecto do grande tema sobre o qual discorre.
Diz ele:
“Em terceiro lugar, por fim, ó dilectíssimas filhas – pois isto vos concerne – é descrita a progênie de José e não a de Maria para que aprendais a não vos ensoberbecer, nem dizer de modo insultante aos vossos maridos: `Eu introduzi a nobreza na tua casa; eu trouxe-te o brilho das honras; a mim deves referir, ó varão, o que recebestes de dignidade’. Sabei, na verdade, e isto esculpi constantemente nos vossos espíritos, que o decoro e a nobreza da família da esposa, não é devida a outra família senão à do esposo; e são detestáveis aquelas esposas que ousam preferir-se de algum modo aos seus maridos, ou – o que é pior – se envergonham das famílias dos seus maridos; calam o apelido gentílico deles, e mencionam apenas a sua própria origem. Há aqui realmente um diabólico espírito de soberba. Qual é pois a família de Maria? A de José. Qual é a tribo, qual a casa, qual a nobreza de Maria? A do seu esposo José. Isto, esposas cristãs, verdadeiramente nobres e tementes a Deus, é o que mais se deve ter em conta” (*).
(*) Sancti Caroli Borromei Homiliae CXXII, Ignatii Adami et Francisci Antonii Veith Bibliopolarum, Augustae Vindelicorum, editio novissima, versio latina, s.d., Homilia CXXII, cols. 1211-1214.
[1] Grupo: O “grupo” que se reunia em torno ao “Legionário” e, posteriormente, ao “Catolicismo”, deu origem à TFP. Daí manter-se a denominação de “Grupo” para referir-se a si mesmos.
[2] Para aprofundar o tema, vide a Conferência do Prof. Plinio proferida a 9-04-1983 “Algumas reflexões sobre a posição da TFP ante a Igreja (sociedade espiritual) e o Estado (sociedade temporal)” – Qual é o papel do Clero e dos leigos? O que a TFP é e pretende ser no futuro? Uma Sociedade inteira e abnegadamente a serviço da Igreja e da civilização cristã, submissa aos legítimos pastores espirituais e vivendo em perfeito acatamento às autoridades civis. Mas, ao mesmo tempo, irradiando os bons princípios e estimulando as boas iniciativas por toda a Cristandade, sem querer ocupar qualquer posição de mando nem na Santa Igreja nem na sociedade temporal.
[3] Vide o relato que o próprio conferencista fez para a Revista “Madre del Buon Consiglio”, editada pelos padres Agostinianos de Genazzano (Itália), julho-agosto de 1985, p. 28.