Desigualdades e hierarquia: espécie de “fotografia de Deus” para os homens – Santo Inácio de Loiola para São Francisco Xavier era “pai de sua alma”

Santo do Dia, 19 de março de 1980

A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

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Papa Pio XI, na Carta Apostólica “Meditantibus nobis (de 3-12-1922), deixou registrado que «se (São Francisco Xavier) fez tantos milagres de toda espécie, tudo isto o próprio Francisco afirmava devê-lo, depois de Deus, a Inácio, “pai de sua alma”, como o chamava, pelo qual, no sacro retiro dos Exercícios Espirituais, fora guiado ao pleno conhecimento e ao amor de Jesus Cristo».

 

 

Foto ilustrativa: visita do Cardeal-mártir ucraniano Josyf Slipyj à TFP brasileira (setembro 1968), a respeito da qual se pode consultar o vídeo postado a tal respeito.

 

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Há uma carta de São  Francisco Xavier a Santo Inácio de Loyola, na qual dizia que, para ele, Santo Inácio era Deus na terra. A expressão, evidentemente, pode chocar a pessoas acidamente supercuidadosas da doutrina católica. Eu uso o advérbio “acidamente”, porque ninguém pode ser mais cuidadoso da doutrina católica do que São Francisco Xavier, ou Santo Inácio de Loyola, que recebeu bem a carta; carta essa que costuma ser publicada pelas editoras católicas, na correspondência de São Francisco Xavier, como uma coisa inteiramente normal.

Qual é a razão de ser dessas expressões? É que, na ordem da vocação, na ordem da graça, Santo Inácio de Loyola era mais do que São Francisco Xavier. Porque Santo Inácio de Loyola era fundador e São Francisco Xavier foi atraído à Companhia de Jesus por Santo Inácio de Loyola. Uma vez que Santo Inácio representava – pela doutrina que dava e pela personalidade dele – um ideal que São Francisco Xavier por vocação, devia seguir, Santo Inácio de Loyola era, para São Francisco Xavier, um representante de Deus, um símbolo de Deus, como que uma fotografia de Deus na terra.

Quer dizer, São Francisco Xavier conhecia os desejos de Deus, seguindo a vontade de Santo Inácio de Loyola. Ele tinha o espírito que Deus queria que ele tivesse, tendo o espírito de Santo Inácio de Loyola. Ele tinha a doutrina que Deus queria que ele professasse, tendo a doutrina católica. Mas, dentro da doutrina católica, tendo a doutrina com aqueles matizes psicológicos de apresentação e de insistência, que eram próprios a Santo Inácio de Loyola

O embaixador do país x no Brasil é o seu país no Brasil. Não quer dizer que ele traga no bojo a nação inteira. É uma expressão ridícula, mas quer dizer que ele é um delegado, um representante, mais do que isso, ele é um símbolo. Olhando-se para o embaixador, vê-se a nação, quando ele está à altura de ser embaixador. Todos os predicados da nação se espelham nele, e ele tem um representação dada pelo país, para que ele seja a nação presente em tal lugar. Então, o ultraje feito à pessoa do embaixador é um ultraje feito à nação. Estas são noções inteiramente corriqueiras e inteiramente comuns.

Isso que se dá na ordem inferior e superior na linha da vocação, dá-se também na ordem inferior e superior na linha da graça e de outros aspectos. Por exemplo, o Papa, o Bispo, o Padre são como que Deus na terra para os católicos, na medida em que eles, com fidelidade à vocação e à doutrina católica, ensinam a verdadeira doutrina.

É evidente que a Igreja é hierárquica. Ela é constituída de duas classes: a Hierarquia, que ensina, governa e santifica, e os fiéis, que são ensinados, governados e santificados. Aqueles têm a missão de Deus de ensinar, governar e santificar, e são como Deus para aqueles que são governados, ensinados e santificados.

Isso se dá também na ordem temporal. Aqueles que, na ordem temporal, são mais do que os outros, são como representantes de Deus na terra para outros. Isso vale para as autoridades oficiais. Então, o Presidente da República, o governador do Estado, tem um papel à maneira de Deus. Ele exerce uma autoridade cuja origem está na natureza e, portanto, é divina. Ele exerce essa autoridade sobre o público, sobre os súditos.

Não se trata de saber aqui se eles pessoalmente são dignos dessa autoridade. Eles a têm e têm o direito de mandar. E quem obedece a eles, na linha do poder que ele têm, obedece a Deus. Por exemplo, se há uma ordem da Prefeitura de não depositar o lixo no meio da rua e uma pessoa deposita, essa pessoa de fato não obedece a Deus. Porque Deus quer que haja cidade, Deus quer que haja Prefeitura e quer que as ordens dos prefeitos sejam seguidas pelos munícipes. Então, desobedecer ao prefeito é desobedecer a Deus.

O prefeito de uma cidade pode ser um ateu, pode ser até um comunista. Pouco importa, enquanto prefeito, ele mandando coisas que são na linha de sua missão e próprias a ordenar a cidade para seu fim, ele deve ser obedecido, por vontade de católico.

* Aqueles que têm mais educação, mais tradição, são imagens de Deus na terra

Mas não se trata apenas disso. Aqueles que têm uma situação social mais alta, aqueles que têm mais cultura, mais educação, mais tradição, que, portanto, espelham certas qualidades naturais muitas vezes ilustradas e iluminadas e reforçadas pela graça, esses são, para os que não têm, também eles como que imagens de Deus na terra.

Quer dizer, eles têm a obrigação de ter qualidades mais excelentes e têm obrigação de manifestar essas qualidades aos que são menos, de maneira que os que são menos admirem, e admirando, se elevem. Não se elevem para imitar, mas se elevem para assimilar, o que é uma coisa diferente de imitar.

A esse respeito, creio já ter falado aos senhores quanto eu sou contrário a essa organização do urbanismo moderno, que divide a cidade em bairros com classes sociais diferentes. Então, por exemplo, Higienópolis, Jardins, Pacaembu, Sumaré, Pinheiros, só uma determinada classe; caminhos de Itaquera, só outra classe, ou quase só outra classe. Eu acho que isso evita que os que são menos conheçam os que são mais e os que são mais conheçam os que são menos; e que essa permeação de qualidades dos que são mais para os que são menos se opere normalmente.

Eu fui criado no bairro dos Campos Elíseos, que era o melhor bairro de São Paulo naquele tempo. Em frente à minha casa havia uma fileira de casas operárias. Era uma casa de esquina e, do outro lado, havia casas de minúsculas burguesia, quase operária. Em diagonal, havia uma das casas mais ricas e grã-finas de São Paulo. Tudo misturado. E assim as várias categorias se conhecem, têm oportunidade de assimilar cada uma as qualidades da outra.

Qual é a diferença que vai daqui entre assimilar e imitar? Os senhores imaginem que desfila, garboso, um batalhão pela rua. Imaginem os couraceiros desfilando. As pessoas vêem aquilo e ficam animadas, elas assimilam aquele espírito.

O que quer dizer assimilar? Algo da decisão, da força, da disposição para a luta, da compenetração daquilo que é reto, direito, próprio a uma tropa militar que passa, isso é assimilado por aqueles que não são militares. Eles não vão comprar uma couraça e tomar ônibus de couraça; seria uma imitação ridícula. Eles tomam algo do espírito. E sem imitar nem copiar – uma vez que são civis é ridículo estar imitando – entretanto eles assimilam, quer dizer, digerem, inalam, respiram algo que é do outro. E com isso sua alma cresce, embora eles continuem nas condições em que estavam, não passem para a condição do outro. Mas lucram.

* Pela admiração, os inferiores assimilam as qualidades dos superiores
Isso lhes vem de onde? Vem do fenômeno da admiração. Eles veem passar o outro que tem mais cultura, mais porte, mais “maintien”, eles percebem assim algo no “maintien” deles que, sem copiar, assimilam.
Essa assimilação é uma verdadeira formação. Vem então da desigualdade, em que aquele é menos vê e admira; e no fato de admirar, instintivamente ele assimila. Porque a admiração traz uma assimilação. E essa é a função educativa que a classe mais alta deve exercer junto à classe mais modesta.
Essa função tem uma profundidade que não se pode imaginar. E por aí os senhores compreendem que a classe mais alta vive com o esplendor que tem, porque é admirada por aqueles que, entretanto, não a copiem.
Eu me reporto, para ser mais claro, à época em que não havia indústria mecânica como há hoje, mas a indústria era manual, era artesanal. Cada operário fazia sua obra. Como podia acontecer para os fidalgos do tempo de Luís XIII, Luís, XIV, Luís XV, Luís XVI, que houvesse uma verdadeira história das botas e dos sapatos?
É porque os sapateiros artesãos olhavam para os sapatos dos fidalgos e iam inventando formas sucessivamente novas. Quando o fidalgo encomendava o sapato, eles propunha: “Não fica mais bonito assim?” E o fidalgo combinava com eles. ±s vezes eles lançavam a moda e o fidalgo aceitava logo de uma vez.
Eles ficariam ridículos usando o sapato do fidalgo, mas quem tinha inventado o sapato para o fidalgo eram eles, sapateiros. Os senhores percebem como o sapateiro tinha entrado no espírito do fidalgo. É o artesanato. Propriamente artesanato é isso.
O fidalgo ia a um alfaiate, que propunha tal fórmula, tal modalidade, tal outra coisa, ia dando sugestões. Eles iam assim mudando gradualmente o modo de vestir-se com a sugestão daqueles que, metidos naquelas roupas, ficariam ridículos, mas sem cuja ajuda eles não se vestiriam bem. E aí os senhores estão compreendendo qual é a natureza dessa assimilação; quanto do espírito da coisa mais elevada entra naquele que é menos.
Um outro exemplo que é evidente: serve-se um banquete, a comida está à altura de convivas eminentes. Quem fez o banquete? Os cozinheiros e as cozinheiras, que ficariam ridículos sentados à mesa do banquete. Mas que compreenderam, nos convivas, qual é a comida gostosa, e que são capazes de fazer uma comida que possa ser acompanhada com um champagne que eles talvez nunca bebam.
Mas eles entendem tão bem o peixe e o molho, que a pessoa come uma coisa, bebe outra e diz: “Como vai bem!” quer dizer, há algo da alma formada e cultivada, que eles aprendem a ponto de se tornarem criadores naquela ordem.

 

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A famosa Rose Bertin, chapeleira de Maria Antonieta, era uma mulher do povo. Ela de tal maneira interpretava o gosto de Maria Antonieta para chapéus, que ela às vezes mandava chapéus feitos sem encomenda da rainha; já eram chapéus para a rainha. A rainha comprava e punha.

Ela já inventava qual era o último tipo de chapéu que convinha à rainha, uma vez que, da outra vez, ela tinha inventado outro. E às vezes tinham conversas de uma hora ou duas, ela e a rainha, sobre a nova orientação a dar aos chapéus que a rainha ia usar.

Os senhores estão vendo uma mulher pequena, do povo, ajudando a modelar a fisionomia de uma Habsburg, casada com um Bourbon, que séculos de tradição tinham modelado. E aí os senhores percebem a interpenetração e a cooperação das classes sociais.

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*  São José, esposo da Santíssima Virgem: um serafim-artesão

A festa de hoje entra muito adequadamente no que eu estou dizendo. Tomem em consideração São José. Hoje, 19 de março, é festa de São José, padroeiro da Igreja, pai legal do Menino Jesus. O Menino Jesus foi concebido pelo Espírito Santo nas entranhas imaculadas de Maria. Mas como São José, como esposo de Maria, tinha direito sobre o fruto das entranhas d’Ela, embora ele não fosse o pai, ele tinha, portanto, uma autoridade sobre o Menino Jesus, e uma autoridade legal. É uma condição excelsa!

São José, para ser esposo de Maria Santíssima, teve uma altura tal, que se pode perguntar qual é o lugar dele no Céu. E a resposta é que o lugar é o deixado por algum serafim, quer dizer, a mais alta hierarquia dos Anjos no Céu. Algum serafim que tenha caído com a revolta de Lúcifer e, eventualmente, do próprio Lúcifer; o lugar dele seria preenchido pelo esposo puríssimo de Maria Santíssima.

Se há um homem que chega até essa altura, de ter a virtude de um serafim, de sentar-se no Céu no trono de um serafim – um dos que, portanto, penetram mais profundamente nos segredos de Deus – esse homem é São José, que teve a glória, perto da qual qualquer outra glória é farelo e zero, de ser esposo de Maria Santíssima. É uma coisa de atordoar!

E, tendo o pátrio poder sobre Aquele que tem o poder sobre tudo, que é o Menino Jesus, como seria o reflexo, na ordem espiritual e na ordem temporal, da presença viva de São José na terra? Os senhores podem imaginar o que seria a edificação numa igreja, na hora em que entrasse um ancião de porte nobre, majestoso, sério, discreto, todo preocupado com coisas superiores, um verdadeiro serafim, que se ajoelha e começa a rezar? O reluzimento!

Os senhores podem imaginar o que seria esse reluzimento, se ele ocupasse um lugar na ordem temporal e exercesse a função com esse brilho? Os senhores podem imaginar o operariado que o visse, como subia? E o artesanato, como iria para o teto, para servir São José? Ele próprio, aliás, carpinteiro, e portanto, artesão?

Os senhores aí podem conceber o que seria o esplendor da Civilização Cristã no Reino de Maria. É para isso que o grupo operário deve se preparar. Eu gosto muito da pergunta que eles põem aqui, a respeito da desigualdade. Há um modo de tratar os operários, que é um modo hipócrita, que consiste em disfarçar a desigualdade que existe, para ver se eles aceitam essa desigualdade, se eles a toleram. É uma espécie de mentira recíproca. Eles fingem que não percebem a desigualdade e os que são superiores fingem que não percebem também.

Isso é uma hipocrisia, em que cada parte sabe que a outra está mentindo. E, sobretudo, é um erro de doutrina, como se ambas as partes concordassem que a desigualdade é ilegítima. A desigualdade é um bem; a desigualdade harmônica, proporcionada, é justa, é um bem e devem amá-la os que são inferiores, porque eles são guiados a Deus pelos superiores. E devem amá-la os superiores, porque eles têm a alegria de representar a Deus junto aos inferiores. E portanto, ele deve ser vincada, deve ser marcada. Marcada como entre nós é marcada a superioridade dos sacerdotes.

Se tivéssemos a alegria e a honra de ter um Cardeal entre nós, nós o trataríamos com toda a veneração que se deve às Eminências. Mas com alegria, não é disfarçando. E se ele fosse ter camaradagem conosco e se pôr como qualquer um de nós, ele decairia em nossa consideração imediatamente.

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