Santo Atanásio (2/5): suas lutas e habilidades – Enriquecimento da noção de santidade

Santo do Dia, 20 de fevereiro de 1971, sábado

 

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério tradicional da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

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Imagem de Santo Atanásio na Basílica do município de Dobre Milasto, na Polônia (Wikipedia)

Estive lendo, antes de vir para cá, um resumo biográfico muito condensado da vida de um dos maiores santos da Igreja que foi Santo Atanásio e alguns dos aspectos de sua vida, que eu não conhecia, e me parece bem comentá-los aqui com os senhores.

Os senhores todos sabem que Santo Atanásio (296-373) viveu no tempo do Imperador Constantino e de seus sucessores imediatos. Quer dizer, naquela época em que a Igreja estava saindo das catacumbas e se organizando à luz do dia. Nesta época, ao mesmo tempo que as perseguições promovidas pelos pagãos estavam em declínio, a Igreja sofria de um outro flagelo, certamente pior do que a perseguição dos pagãos: heresias e divisões internas. Uma das maiores heresias de toda a História grassou exatamente no tempo de Santo Atanásio e Constantino, a dos arianosque afirmava que Nosso Senhor Jesus Cristo tinha uma natureza apenas humana: não era Deus, era um grande homem, um homem extraordinário.

E essa heresia importava na negação completa da religião católica. Reduzir Nosso Senhor Jesus Cristo a um puro homem é negar a religião católica por inteiro.

Os arianos, que eram muito poderosos, espalharam-se rapidamente por todo o Império Romano, que se localizava mais ou menos em torno da bacia do Mediterrâneo e – como eram exímios em toda espécie de intrigas e na organização de toda espécie de difamação – obtiveram influências na corte imperial e arrastaram um tal número de fiéis, inclusive sacerdotes e bispos atrás de si, que Santo Atanásio declarou que um belo dia o mundo inteiro gemeu porque, ao amanhecer, deu-se conta de que era ariano. Quer dizer, de um momento para outro essa heresia grassou por toda parte, e como que todo mundo se tinha tornado ariano.

Nesta luta contra o arianismo, o grande gigante foi Santo Atanásio. Ele era patriarca – ou seja, mais do que um arcebispo – de Alexandria, que era uma das grandes sedes episcopais da antiguidade. Ele foi – não me lembro bem se quatro ou seis vezes – obrigado a sair fugindo da cidade de Alexandria por causa das conspirações dos arianos contra si. Os arianos conseguiram vários decretos imperiais expulsando-o para esta ou aquela parte do império romano, muitas vezes perseguido de morte, e ao longo dessas perseguições e dessa luta tremenda que travou, alguns não são tão conhecidos. Conhece-se a história da querela dele com os arianos no terreno doutrinário, mas menos, por assim dizer, os episódios policialescos de sua luta com os arianos. Mas me parece que na vida de um santo, mesmo esses episódios menores têm muito de edificante e que valeria a pena referir alguns deles aos senhores.

Para os senhores terem ideia de quanto importa muitas vezes a resistência a favor da ortodoxia contra a heresia, basta lhes dizer o seguinte: Santo Atanásio, para fugir aos hereges, passou – num dos lances de sua luta – seis anos no fundo de um poço, sem ver sequer a luz do dia. Não sei se os senhores se dão bem conta do que significa isso… Havia apenas um católico fiel, quando o poço estava abandonado, que lhe jogava o necessário para viver. O poço ao menos água lhe fornecia… e o resto era comida que utilizava.

Então ele ficava ali lendo, refletindo, louvando ao Criador, rezando, de maneira que Deus, no mais alto dos Céus, recebeu durante seis anos o louvor perfeito que um santo lhe enviava, do fundo de um poço, sempre confiando na Providência, sempre disposto a lutar, sempre inquebrantável no seu propósito. De maneira que, ao cabo de seis anos, a perseguição amainou e seu amigo, do alto do poço, o avisou. Ele então saiu e continuou sua luta contra o arianismo.

Numa outra ocasião a provação foi menor, mas não deixou de ser também impressionante. Ele teve que fugir pelos desertos do Egito e não encontrou outro lugar para se esconder a não ser a sepultura do próprio pai. E passou metido dentro dela durante quatro meses. Lúgubre é para a sensibilidade humana; não o é para a alma de um grande santo, mas em todo caso… De lá ele saiu de novo e conseguiu retomar a luta contra o arianismo, por meio de sermões extraordinários que eram anotados e as cópias eram transmitidas de católicos a católicos, por toda a extensão do Império Romano também.

Numa das ocasiões, foi intimado a comparecer a um grande concílio de bispos arianos na cidade de Tiro. Ele declarou que não comparecia porque eram bispos hereges, e não os reconhecia, portanto, como verdadeiros católicos e não tinha comunhão com aquela gente. Porém recebeu do Imperador Constantino um decreto obrigando-o a comparecer para discutir com os hereges. Aí mudava a situação: não era mais aceitar o concílio como uma assembleia legítima, da qual participaria, mas era ir lutar contra o pseudo concílio, um conciliábulo de hereges.

Santo Atanásio foi e eram cento e tantos bispos, o que para aquela época era muita coisa. E com os hábitos de seriedade e solenidade daquele tempo, ele entra acompanhado de um sacerdote que lhe era fiel, na assembleia de todos os bispos paramentados que o recebem, não lhe destinam lugar para sentar-se, nem nada: ele fica ali em pé. E percebe logo que – como é hábito dos hereges – eles não queriam discutir doutrina, mas vão afirmando uma coisa, outra, outra e depois caluniando e fingindo o contrário…

Os senhores que conhecem o progressismo “católico”, sabem disso perfeitamente: travar uma discussão leal, eles não o fazem! Mas somente reafirmam os mesmos erros e procuram destroçar quem diz o contrário. Está acabado.

Ele percebeu que seria julgado e numa atmosfera de calúnia e de ódio tal que nem se constituía um tribunal regular. Foi um puro vozerio contra sua pessoa. E a primeira coisa que se fez contra Santo Atanásio foi uma coisa extraordinária: uma mulher de má vida se levantou naquele ambiente e disse que ela estava rica de dinheiro, que lhe havia sido dado por Santo Atanásio, que ela presenciara suas fugas, períodos em que ele passava por lugares ignotos, tal e tal outra abominação, e que podia dar provas disso pois ela era testemunha…!

À medida que ela falava, os bispos arianos bramiam que ele precisava ser deposto, ser condenado etc. Com efeito, não há como o herege para se fingir de zelador dos bons costumes quando se trata de perseguir um ortodoxo.

Santo Atanásio, com uma inteligência extraordinária, sutil, não disse nada. Conservou-se sereno e deixou o pessoal vociferar. Apenas soltou um cochicho no ouvido do padre que o acompanhava. Quando o padre pôde cortar a palavra dessa mulher infame, ele lhe disse, fingindo que era Santo Atanásio: “Então você afirma realmente que me conheceu, e afirma que me viu, etc., etc.?”. A tonta pensou que aquele fosse Santo Atanásio, o qual ela nunca tinha visto. Então, declarou ela: “Afirmo”. – “Jura?” – “Juro”. Os senhores veem com que superior inteligência ele decidiu a situação…

Deu-se na assembleia o que se deu aqui com os senhores: os próprios hereges estalaram na gargalhada, porque a farsa ficou de tal maneira evidente, que não era mais possível segurar. E houve assim um movimento que era para dissolver todo mundo, porque a coisa tinha terminado em chanchada.

Então, alguns mais fanáticos dentre os arianos começaram a exclamar: “Não senhor! tem mais essa acusação, e é gravíssima, onde é que se viu?! etc. etc.” É tal a má fé dessa gente, que voltaram para ouvir a segunda acusação. Depois de se constatar que a primeira era uma chanchada, do que valeria a autoridade desses mesmos homens para levantarem outra acusação?

Nessa circunstância, Santo Atanásio foi mais uma vez extraordinariamente servido pela Providência. Levantou-se um bispo herético e tirou de uma caixa uma mão ressequida de um morto. E disse: “Aqui está a mão do bispo – havia uma heresia colateral, meio relacionada com a dos arianos, chamada dos melecianos – aqui está a mão do tal bispo Meleciano, morto por Atanásio em tal ocasião, o que foi um crime nefando! E para provar que realmente foi morto, aqui está a mão desse venerável homem de Deus que se afundou no deserto. Era o mesmo deserto onde estava Atanásio. Quem é que poderia ter cometido esse assassinato senão Atanásio?!”

Santo Atanásio ouviu também com toda a serenidade possível. Entre os assistentes – é uma coisa que só se explica por intervenção divina – estava um homem de cabeça baixa e recoberto com aqueles panos do Oriente. Santo Atanásio foi ao homem e disse: “O bispo tal morreu? Vocês têm certeza?” “Temos”. Ele puxou o pano e disse: “Olhem aqui ele…” Era o próprio!

Então, Santo Atanásio, gracejando, disse o seguinte: “Deus não deu a cada um de nós mais do que as duas mãos. Levante uma mão!” Ele levantou. “Agora, levante a outra”. Ele levantou. Santo Atanásio disse: “Bem, compete a vocês explicarem em que parte do corpo dele se encaixava a outra mão”…

Os senhores pensam que os arianos desarmaram? Não, começaram a gritar atrás dele: “Mágico! Praticou crime de magia! Não pode explicar a não ser por magia que esse homem estivesse aqui presente nesta hora!”

Isso é a psicologia do herege absolutamente. Diante das provas mais capazes de cegar, mais retumbantes de que estão com má fé, não desanimam. Eles encontram outra calúnia, depois outra calúnia e vão sempre para frente. Mas a coisa ficou tão desmoralizada, que acabou.

Outro episódio da vida de Santo Atanásio. Ele, como verdadeiro santo, tinha verdadeiro horror à mentira. Evidentemente, não mentia nunca, nem que fosse para coisa leve. Em determinado momento estava ele andando pelo deserto e apareceram tropas imperiais à sua procura. Alguém lhe perguntou: “Sabes onde está Atanásio?” (não o tinham reconhecido, obviamente) Responde o Santo: “Sei, sim. Ele não está longe daqui”. O pessoal foi à sua procura, enquanto ele se esquivava…

Da parte de um Doutor da Igreja, grande teólogo, herói de grande sisudez, de grande profundidade de espírito, esses traços enriquecem sua fisionomia moral, mostrando a pluralidade e a riqueza de aspectos que tem a alma de um verdadeiro santo. Sobretudo, destroçando um tanto essa ideia meio melada que certas imagens projetam sobre o fiel a respeito do santo. Não me refiro às imagens monstruosas modernas, mas a imagens chamadas sulpicianas, que apresentam o santo com uma carinha muito bem feitinha, sem barba, olhando com um sorrisinho de quem não compreendeu nadaNão é isso de nenhum modo um Doutor da Igreja! Sobretudo um Santo Atanásio, que é um dos maiores santos de toda a História, e que sozinho foi um lutador contra a heresia como talvez a Igreja não tenha tido nem antes nem depois dele.

Agora, para os senhores conhecerem os lados dramáticos de sua vida, menciono apenas um episódio, e com isso encerro.

Constantino, o Grande – que libertou a Igreja – foi enredado, em certo momento, pelas intrigas dos arianos. Aliás, a vida pós conversão de Constantino é um tanto discutida. E tomou, em certo momento, partido decidido por Ario, chamou Santo Atanásio e o expulsou para a Gália. Santo Atanásio lhe disse: “Vós me proibis de voltar para meu trono patriarcal e apoiais o herege. Vós prestareis em breve contas a Deus por isso”. E tomou o caminho do exílio.

Na Gália, foi recebido com todas as atenções e toda a cortesia por Constantino, filho de Constantino, o Grande. E ali ele esteve durante algum tempo, tendo ido depois para Roma, justificar-se perante o Papa que lhe deu toda razão. Assim são os santos: expulsos de um lugar, aproveitam para fazer maravilhas em outros; ninguém consegue tolher a capacidade de ação deles. E esse biógrafo que escreveu essa sua vida afirma que, em Roma, aproveitou e fundou o estado monástico na “Cidade eterna”.

Posteriormente, veio a notícia de que Constantino tinha morrido. E pouco depois chegou a notícia de que Ario também havia passado para a eternidade. Ario tinha sido colocado por Constantino no trono patriarcal de Constantinopla, onde era, portanto, um arcebispo usurpador, não era o patriarca legítimo. No ato de sua posse, Ario organizou a procissão com aquela solenidade que se fazia antigamente para a posse de um bispo. Quando a procissão ia correndo, ele, em determinado momento, sentiu-se mal e, estando perto de instalações sanitárias públicas, desceu do animal em que montava e entrou em ditas instalações, onde morreu do modo mais horrível que possa haver: parece que seu abdômen se rompeu e as vísceras se derramaram pelo chão…

Assim, Santo Atanásio ficou senhor de sua diocese. Mas pouco depois recomeçaram novamente as perseguições e ele levou sua vida, quase até o fim, de perseguição em perseguição.

O povo de Alexandria gostava muito dele e em geral quem o perseguia eram as cúpulas podres. Numa das ocasiões em que voltou àquela cidade e foi reempossado na arquidiocese como legítimo pastor, o povo de Alexandria lhe preparou uma grande recepção. E esta foi tão afetuosa e tão extraordinária, que se transformou em provérbio, em Alexandria e naquelas partes do Egito, a seguinte expressão quando se queria dizer que alguém era muito bem acolhido: “foi recebido como Santo Atanásio”. Ou seja, era o mais alto grau de popularidade, da acolhida respeitosa, cheia de veneração filial e, ao mesmo tempo, cheia de entusiasmo!

Aí os senhores têm um outro aspecto da vida de tantos santos perseguidos: as cúpulas podres organizam contra eles toda espécie de difamação, mas o Espírito Santo sopra onde quer e previne a opinião pública a respeito da realidade das coisas. De maneira que de um modo ou de outro acontece com frequência – não é uma regra absolutamente geral, pois não há regras absolutamente gerais nessa matéria – que o povo vê claro e que justiça a quem os poderosos estão perseguindo.

Essas são as notas mais interessantes que me parecia conveniente dar a respeito do grande Santo Atanásio.

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