Revolução e Contra-Revolução nos costumes, ambientes e instituições

Reunião extra, 15 de janeiro de 1964

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de exposição verbal do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, e não passou por revisão do autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

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Caricatura representando um burguês típicamente decadente

A ideia falsa da fatalidade de que o mal vence sempre * Daí a conclusão errada que é preciso ceder para não perder tudo * É preciso uma mudança nas camadas mais profundas da alma humana * A Revolução, imensamente sábia, preparou a degringolada do Ocidente por meio de regras especiais, baseadas todas elas no princípio de que, para levar o homem ao erro, é preciso fomentar as paixões * Estamos na melhor época que já houve para se fazer a Contra-Revolução: existe um fenômeno, dentro da alma das multidões, dentro da vida coletiva dos povos, que consiste numa apetência de passar do extremo da Revolução, para a apetência do ideal e da Cruz * Devemos seguir a Nosso Senhor Jesus Cristo com o espírito de sacrifício, de renúncia, de cumprimento do dever, oposto a tudo que tem sido feito até aqui. De homens imbuídos desse espírito sairá a aurora de uma nova Idade Média.

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Trataremos neste trabalho de desenvolver e fazer aplicações concretas de alguns princípios contidos no ensaio “Revolução e Contra-Revolução“.
A fatalidade histórica da Revolução
Quando nos encontramos diante das revoluções e dos acontecimentos  hodiernos, temos uma sensação estranha, porque se tem a impressão de que uma como que fatalidade histórica, de fato consumado doloroso, pesa sobre as boas causas, em nossos dias. Sempre que há uma luta entre bons e maus, vemos os bons perderem terreno. Sempre que ela se dá entre revolucionários e contra-revolucionários, aqueles ganham, se não sempre, ao menos na grande maioria das vezes.
As eleições, em geral, dão vitória aos esquerdistas, e, quando não, a esquerda acaba por tirar proveito delas, ainda que não tenha vencido. Os grandes homens, as grandes personalidades, os autores de muita evidência são, habitualmente, de esquerda.
O curso dos acontecimentos políticos vai, paulatinamente, favorecendo a esquerda. Quando um americano e um russo se encontram, por exemplo, o russo é esquerda e – por paradoxal que seja – o americano é direita. Ora, não se apresenta encontro internacional entre ambos em que os russos não tirem vantagem e os americanos desvantagem.
E assim se poderiam multiplicar os fatos que indicam que uma espécie de destino inexorável parece pesar sobre as boas causas, em nossos dias.
Os partidos conservadores, por exemplo – que têm toda a nossa simpatia, naturalmente – dão a impressão, hoje em dia, de uma árvore dos trópicos, uma seringueira do Amazonas, por exemplo, que está sendo cultivada no Alaska. O clima é tão hostil, as circunstâncias, o ambiente, tudo, enfim, é tão adverso, que se tem a impressão de que a árvore se esforça para lutar contra o clima, mas que este, inexoravelmente, vai arrancando, exaurindo as forças vitais da árvore, e que, em determinado momento, se receia que a árvore ceda.
Inevitabilidade das três Revoluções
Esse fenômeno é muito antigo. Quando estudamos a História, desde o fim da Idade Média até nossos dias, quando nos colocamos na perspectiva das três Revoluções, isto é, do protestantismo, da Revolução Francesa e do comunismo, temos sempre a impressão de que a situação era tão negra, que a Revolução era inevitável.
Quando, por exemplo, arrebentou o protestantismo, o clima já era tão infenso à Igreja Católica, que o legado papal na Alemanha, por ocasião da apostasia de Lutero, escreveu ao Papa uma carta em que dizia: “Santo Padre: noventa e cinco por cento da Alemanha grita: “viva Lutero!”; os cinco por cento restantes grita: “abaixo Roma!”. Este era o panorama da Alemanha no momento em que o luteranismo explodiu.
Por ocasião da Revolução Francesa a impressão é a mesma. Ao se analisar um quadro de Luís XVI em toda a pompa da majestade real, com a segurança própria de um rei, resplendente de joias, com tal magnificência de trajes, tem-se a ideia de um monarca de grande poder, firmemente estabelecido em seu trono. Mas, quando se estuda a Revolução Francesa, a primeira impressão que se tem é a de que ao subir Luís XVI ao trono, vinte anos antes da Revolução, ela já era mais ou menos inevitável.
Quando se estuda aqueles acontecimentos políticos, e se pergunta o que poderia ter sido feito para evitar a Revolução, chega-se à conclusão de que, talvez, a única solução possível fosse a “famosa” tática de fazer a Revolução por cima antes que fosse feita por baixo.
Fazer a Revolução por cima antes que a façam por baixo – se a Revolução não deve ser feita – é o mesmo que suicidar-se de medo de morrer
Imaginemos que surja amanhã um perigo de revolução comunista no Brasil. Seria cair no mesmo erro aconselhar-se a fazer o comunismo para se evitar a revolução comunista. Não se pode dizer a ninguém que faça o mal, para que outrem não o faça.
Esta situação de inevitabilidade, nós a sentimos por ocasião da revolução comunista, na Rússia. Quando se estuda a situação do czarismo e a eclosão do comunismo, temos idêntica impressão, isto é, de que é tal a pressão das circunstâncias que o czarismo teria necessariamente que cair. Ele estava condenado, pesava-lhe uma espécie de fatalidade.
A política de concessões: ceder para não perder
A mesma impressão temos em nossos dias quando se analisa a luta entre comunistas. É inumerável a série de pessoas que se apresentam dizendo: “o comunismo tem que vencer cedo ou tarde; façamos, pois, concessões para evitar que ele vença logo. Talvez fazendo certas concessões ele não se irrite tanto e venha mais devagar; porque vir, tem que vir.”
Assim seria com a Revolução socialista ou comunista. Concede-se aqui, depois acolá, amanhã mais além. Certo dia, concedeu-se tanto, que, à força de conceder, concedeu-se tudo. Se tenho um pão, e dou um pedaço desse pão, e depois outro, e mais outro, em breve não existirá mais: foi comido por inteiro. Esta convicção de que é preciso ceder, é um reflexo da convicção de que a partida está perdida e de que não há outro remédio senão ir entregando os pontos. Há em São Paulo numerosos agricultores, comerciantes, industriais, que acham que o melhor é ir cedendo, cedendo, até que chegue o momento final em que não exista mais uma reação possível.
O conhecimento das razões profundas dessa aparente inevitabilidade
Coloquemo-nos agora diante do seguinte ponto: se isto é assim, perguntamo-nos se realmente este “fado” ou “destino” existem.
Se sim, devemos nos perguntar qual a razão pela qual sempre que aparece alguma grande revolução em cena a situação já parece meio perdida para aqueles que representam a boa causa.
Qual a razão profunda disso? Alguma deverá existir. E ela precisa ser por nós analisada, pois, o único meio que temos de lutar bem, é conhecendo a natureza desse fenômeno e nos opormos a ele. Enquanto não tivermos noção da sua natureza e nos opormos a ele, lutaremos sem eficácia.
Se se observa o movimento católico brasileiro, nota-se em linhas gerais, coisas esplêndidas. O número de obras católicas se multiplica enormemente, fazem um grande bem, assistem a muitos doentes, amparam a muita gente desvalida, difundem a instrução religiosa. O bem que fazem é tão grande que não se imaginaria o Brasil sem elas, pois evitam a derrubada da muralha que está de pé.
Entretanto, se é verdade que essas obras fazem um bem enorme, devemos reconhecer que o processo de paganização do Brasil, isto é, a paganização das ideias, dos costumes, das instituições, absolutamente não para por causa disso, e que progressivamente o Brasil vai se paganizando. Conclui-se, pois, que elas fazem um grande bem, mas que esse bem não é tão grande quanto as circunstâncias exigem. Seria preciso fazer mais. E o que mais seria preciso fazer? Qual o ponto a que se deveria chegar?
Para responder a esta indagação é preciso conhecer as razões profundas deste processo de paganização, deste processo de revolução; qual o jogo de almas, qual o movimento profundo dos espíritos, quais os organismos que tocam esse processo por essa forma. Então, conhecendo o inimigo e suas manobras, não só poderemos fazer o bem, mas sermos eficientes no combate ao mal. Não basta fazer o bem. É preciso, também, combater o mal.
Construir com uma das mãos e combater com a outra
Quando a cidade de Jerusalém foi reconstruída, depois do cativeiro da Babilônia, os que a edificavam, diz a Bíblia, com uma das mãos construíram, e com a outra seguravam a espada para combater. Assim devemos fazer. Entretanto, muitas vezes, construímos com as duas mãos, e a espada está longe. O resultado é que construímos aqui, e o adversário derruba lá. E como estamos pensando só na nossa construção, não percebemos que o resto da muralha já está sendo derrubada e cercada.
Por essa razão é que temos um conjunto extraordinário de obras, porém o processo de paganização não é por elas detido. E às vezes até, esse processo de paganização se infiltra mesmo dentro de nossas obras, e é inevitável que isto se dê.
Imaginemos o melhor dos padres, um santo que funda um colégio católico em uma cidade do Brasil ou da América espanhola. Pode ele evitar que a influência do mal cinema, da televisão, do rádio, dos maus jornais, entre dentro de seu colégio? Ele forma os alunos, mas o ambiente de fora os deforma, e a consequência é que os resultados conseguidos são muitos menores do que poderia ser, porque enquanto ele constrói, alguém destrói. Ora, não basta construir, é preciso também saber destruir.
Fala-se comumente em “construtivismo”, que é o hábito de construir sem lutar, de fazer coisas positivas sem fazer negativas. Deve-se evitar o “destrutivismo”, que é o hábito de destruir sem construir. Mas deve-se evitar, também, o “construtivismo”. Devemos trabalhar usando uma das mãos para construir, tendo na outra a espada para destruir.
Ora, hoje em dia se encontram, muito facilmente, católicos que constroem, mas muito dificilmente católicos que destroem.
A falta de combatividade do temperamento brasileiro
Por outro lado, o feitio de espírito brasileiro, herdeiro do  português, é feito de um temperamento doce, meigo. Para se ter bem a ideia da diferença existente entre o português e o espanhol, e a consequente diferença do luso americano e do hispano-americano, tomemos um exemplo simbólico: a tourada portuguesa e a espanhola.
Nesta há uma luta de vida e de morte entre o touro e o toureiro. O touro quer acabar com o toureiro – na medida em que se possa dizer que um animal tenha vontade – e o toureiro tem um desejo positivo de liquidar o touro. E a arquibancada, por sua vez, faz questão que o toureiro acabe com o touro, porque não tem pena deste.
Na tourada portuguesa, o público e o toureiro têm certa pena do touro, e este também não leva muito a sério sua luta com o toureiro. Tem-se a impressão de que até o touro português é menos feroz que o espanhol! Além disso, os portugueses serram um pouco o chifre do animal para não machucar o homem. A tourada é, pois, uma tourada de amigos… bem diferente do caráter batalhador e destrutivo da tourada espanhola.
Quando nós, católicos brasileiros, ou brasileiros de qualquer espécie, lutamos uns contra os outros, fazemos sempre tourada à portuguesa, em virtude da cordura de nosso temperamento, característica que se nota em todos os episódios de nossa história.
A proclamação da República no Brasil, em 1889, lembra-nos bem esse aspecto da vida política brasileira e do estilo português de nossas touradas. Quando, por exemplo, vemos como foi feita a República na França, quando pensamos no tipo do republicano espanhol, capaz de jogar bombas em Afonso XIII, e os comparamos aos republicanos do Brasil, ficamos pasmos.
Ilustremos com um fato: o governo republicano depõe o Imperador, mas, ao mesmo tempo, preocupado com as condições de existência de D. Pedro II no exílio, vota uma verba de 5.000 contos – hoje alguns bilhões de cruzeiros – para que ele se instale confortavelmente no exílio para assim viver até o fim de seus dias! O Imperador teve, aliás, a dignidade de rejeitar esse oferecimento. Mas tal atitude mostra-nos bem que espécie de republicanos são esses que tiram o Imperador do trono, mas o ajudam a descer para que não se machuque!…
Tudo isto é tourada à portuguesa, é o contrário do princípio enunciado no Gênesis: “Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência d’Ela” (Gênesis III, 15).
São Luís Grignion de Montfort, o grande teólogo de Nossa Senhora, faz o seguinte comentário: Nosso Senhor diz “Inimicitias ponam”, no plural, e não “Inimicitiam ponam”, quer dizer, não porei uma inimizade só, mas porei inimizades – uma carga de inimizades. Tendo sido determinada por Deus, a inimizade entre Nossa Senhora e a serpente é indestrutível. A inimizade entre os filhos da luz e os filhos das trevas é uma inimizade que deve existir.
Assim, tratando-se de brasileiros, devemos insistir, e o fazemos nesse artigo, sobre o aspecto destrutivo, porque é exatamente aquele que temos a tendência de esquecer. Não insistimos quase nada sobre o lado construtivo, porque este vai por si mesmo… Basta fechar os olhos, e tudo se vai construindo… Precisamos, pois, dizer as verdades esquecidas, porque as verdades lembradas há outros que as dizem.
O método de trabalho do adversário
Coloquemo-nos, portanto, em presença de nosso adversário e procuremos saber como ele é, como trabalha, como consegue este resultado tão formidável, de, quando uma batalha se delineia, já estar meio ganha por ele, antes mesmo de ser travada. É esse o problema que devemos abordar neste trabalho.
Agir sobre o Estado é muito importante e até indispensável, mas está muito longe de ser a única e principal providência
Muitos têm a impressão de que se fizéssemos um Estado inteiramente católico, com leis segundo a Igreja, teríamos posto um dique a esse fenômeno. Nossa principal ação deveria exercer-se, pois, sobre o Estado. Após apoderar-se dele, reforma-se-lo-ia por meio de boas leis e tem-se resolvido o problema. Bastaria, apenas, dotá-lo de boa polícia. Esta proibiria os maus filmes, os maus jornais, os lugares de diversões imorais. O resto então se transformaria num convento. Os sinos das igrejas começariam a tocar, todos iriam piedosamente rezar, floresceriam os bons costumes e o problema estaria resolvido.
A solução é, pois, muito simples: organiza-se uma ação de tipo político, esta ação apodera-se do Estado, e por meios da força das leis e da polícia, eliminar-se-á os fermentos de destruição. Tudo estará resolvido.
Agir sobre o Estado é, sem dúvida, muito importante. É, até, indispensável, mas está longe de ser a única providência e, mesmo, muito longe de ser a principal. Além do agir sobre o Estado – e por cima do agir sobre o Estado – há toda uma ordem de problemas mais importantes que devemos considerar.
A prova concreta disso a encontramos num fato histórico que não se pode negar. No século XIII, no apogeu da Idade Média, a Igreja tinha tudo, ou quase tudo, para exercer uma ação desse tipo: as leis eram católicas; as instituições também o eram; a ação do Estado reprimia as heresias, reprimia o mal. Sabemos que assim é que foi derrotada a heresia dos albigenses; o maniqueísmo de igual maneira foi perseguido durante a Idade Média. Funcionava, nesta época, uma instituição muito caluniada, mas esplêndida, a “Sagrada Inquisição contra a perfídia dos hereges”. Como tudo que há no mundo, teve alguns abusos, mas a instituição era magnífica.
Apesar de tudo estar nas mãos do Estado, e serem, ao mesmo tempo, São Luís rei da França e São Fernando rei de Castela – dois santos governavam, portanto, países vizinhos, dois dos principais países da Europa daquele tempo – apesar de santos sentarem-se no trono da Inglaterra, no trono do Sacro Império Romano Alemão, da Hungria, apesar de tudo, em determinado momento essa organização começou a se deteriorar.
E qual o resultado? Nem as leis nem a autoridade pública do Estado conseguiram impedir a derrocada que veio até hoje.
Se o Estado tudo pudesse, o que aconteceu nunca deveria ter se dado. Disso inferimos que o Estado não pode tudo, e há uma ação mais subtil e mais importante que a do Estado e que devemos aqui considerar.
– II –
Vejamos a explicação mais profunda destes constantes fracassos, que se cifram na vitória das paixões, do orgulho e da sensualidade, e analisemos as enormes transformações que operaram na alma humana no correr dos séculos.
O elo de ligação entre as Revoluções
Tomando, pois, o problema como foi apresentado, devemos formular uma pergunta. Percorrendo a História vemos que São Luís morreu em 1270; em 1517 arrebentou a revolução protestante; em 1789 a revolução Francesa; e em 1917 a russa. Quem estuda a História tem, pois, à primeira vista, a impressão de que se trata de três revoluções sem ligação quase nenhuma entre si.
Qual é o elo que liga essas revoluções? Por que meios uma delas chegou até a outra? Quais foram os fenômenos que conduziram a isso? Esse é o estudo que devemos fazer.
Quando examinamos a decadência da Idade Média, notamos que São Luís morreu em 1270; quatorze anos depois, em 1284, sobe ao trono pontifício Bonifácio VIII, que morre em 1303. De 1270 a 1303, temos trinta e três anos. Foi, pois, neste curto espaço de tempo após a morte de São Luís que se deu o famoso episódio do esbofeteamento de Agnani. Como se passou este fato?
Felipe o Belo, neto de São Luís IX, ocupa o trono de França, e logo entra em colisão com o Papa, porque deseja praticamente todos os poderes sobre o clero francês. E afirma ainda que o Papa não tem jurisdição universal sobre a Cristandade, o que está em desacordo com a Doutrina Católica.
Era, pois, uma revolta do rei contra o Papa. E, assim, 33 anos apenas após a morte de São Luís dá-se este fato horroroso: representantes de Felipe o Belo entraram na cidade de Agnani onde Bonifácio VIII se encontrava, e, após injuriarem o Pontífice diante de uma multidão revoltada, esbofeteam-no. Pouco depois, Bonifácio VIII, que procedeu com uma dignidade extraordinária, morria de desgosto!
Era uma atitude de revolta de um rei contra um Papa, mas que demonstrava a existência de toda uma corrente, que adiante examinaremos, que criou clima para essa insubordinação, apesar de ter havido um São Luís. E é a existência dessa corrente que explica a primeira explosão da Revolução. Qual foi essa corrente?
A primeira explosão da Revolução
Na resposta a esta pergunta veremos como uma grande ordem de coisas, como foi a Idade Média, pode morrer em consequência de pequenos fatos.
Nas faculdades de Direito do tempo, sobretudo nas de Paris e Bolonha, estabeleceram-se os legistas, ou seja, estudiosos do Direito Romano, provavelmente ligados entre si por alguma associação secreta, que afirmava ser o Direito Romano o princípio verdadeiro da organização do Estado. Aquilo que um príncipe quer tem vigor de lei. Eram absolutistas. E, devido a isso, contrários à toda estruturação medieval, orgânica e cristã, e a favor de uma estrutura anorgânica e pagã.
A Idade Média, como sabemos, era constituída por um Estado composto de organismos autônomos em relação ao rei, em tudo o que era de sua esfera própria, e aceitando a autoridade real apenas para assuntos de interesse comum. Os legistas desejavam uma ordem de coisas em que o rei pudesse mandar, como o Imperador Romano. E começam, então, a combater a influência da Igreja, que estabelecia um limite na autoridade real. Combatem, por outro lado, a nobreza, que também constituía um limite para o poder supremo. Voltava-se, assim, ao Estado pagão.
Ao mesmo tempo que os legistas lutavam por este novo estado de coisas, encontravam nos reis ouvidos gratos e atentos.
A mudança na atitude dos reis
A atitude dos reis medievais nem sempre foi essa. A causa dessa mudança a encontramos no fenômeno descrito a seguir.
Notamos uma acentuada diferença entre os romances de cavalaria do fim da Idade Média e os do seu apogeu. O cavaleiro da época áurea é um cruzado. Luta por uma causa, e essa causa é sempre relacionada com a da Igreja Católica. Será um cavaleiro andante, que vai percorrer vales e montes, para a defesa das viúvas e dos órfãos, com o espírito de praticar uma obra de misericórdia; será um cavaleiro que vai lutar nas cruzadas para libertar o Sepulcro de Cristo, mas o que sempre caracteriza seu espírito é a abnegação, a renúncia. Luta, mas por amor à cruz.
O romance de cavalaria lentamente os transforma: o cavaleiro deixa de ser um idealista para ser um homem vaidoso. Começa-se a relatar fábulas absurdas de um cavaleiro que vai lutando e com uma mesma espada fura cinco mouros como se fossem cinco salsichas. Ou, então, a de outro homem que saiu lutando contra um rochedo e que o espatifou de um só lance. É o espírito destes e de outros fatos que Cervantes ridiculariza na pessoa de Dom Quixote.
Ao mesmo tempo que o ideal já não é mais o de servir à Cruz, mas fazer uma manifestação de força e de coragem, aparece no romance outra figura, que é a dama. Esta, ainda muito diáfana e pura, é já a dama romântica, pela qual ele tem entusiasmos, pela qual luta para satisfazer o seu amor. E a causa do cavaleiro não é mais a de Cristo, mas a do sentimentalismo, a causa da sensualidade. A dama substitui a Cruz. A cavalaria passa a ser um elemento de gonzo da vida.
As paixões do orgulho e da sensualidade
As duas principais paixões do homem estão, assim, em movimento: a do orgulho e a da sensualidade. Aquele manifesta-se na vaidade, na demonstração de força, na pompa da vida; a sensualidade, no nascimento do espírito de cortesania e de amor
Tomemos um jovem rei imbuído dessas ideias e compreenderemos que o que ele quer é mandar. Imaginemos que a esse rei jovem um legista diga: “Vossa majestade tem o direito de mandar em todo o mundo”. Essa afirmação soa a seus ouvidos como uma música. Em seu íntimo ele responde: “Este legista tem razão”. É fácil compreender como uma coisa chama a outra, e como se entrosam para constituir um só estado de espírito.
Ao mesmo tempo, o gótico muda de aspecto. No século XIII, ele é austero; no século XIV, começa a sorrir; aparece o gótico chamado “flamboyant”, que se enfeita de florões por todo lado e toma um ar de brinquedinho. Dir-se-ia que o gótico começa a dançar.
Ao mesmo tempo que as instituições e os costumes começam a se paganizar, também a arquitetura torna-se toda alegre, brincalhona.
É uma mudança de estado de espírito profunda e que constitui um deslocamento. A ideia de servir a Deus, de viver por um ideal, para a Cruz, vai desaparecendo e sendo substituída, nas camadas mais profundas do homem, pela preocupação do prazer. O homem não tem mais a ideia do dever, mas sim a do prazer. Ele deseja gozar a vida, e a partir desse momento, naturalmente, se estabelece uma fricção com as instituições antigas. Aninha-se, em sua alma, um ardente desejo de algo de novo, de uma transformação. Este desejo, que não é uma ideia força, mas uma paixão desbragada, esse desejo, vivo na multidão inteira, dá origem não só ao protestantismo, mas a um fenômeno que afeta todos os países católicos. E esse fenômeno chama-se Renascença.
A Renascença traz consigo o desejo desenfreado do gonzo da vida
Protestantismo e Renascença são fatos intimamente conjugados. Se formos ver o que é que a Renascença traz consigo, encontramos a satisfação de um furioso desejo de gozar a vida. Houve, certamente, uma Renascença cristã, mas sobre ela falaremos adiante. Quando analisamos os pontos em que a Renascença difere da cultura medieval, notamos que todos eles obedecem a este impulso: o desejo de gozar a vida.
Tomemos a primeira característica da Renascença: o naturalismo. Todos sabemos que a razão humana apaixona-se muito, e muito se irrita, com o fato de ter que aceitar o sobrenatural. O próprio do homem orgulhoso é não querer aceitá-lo. E, como é evidente, quando o homem se entrega ao prazer da vida, passa a querer rejeitar o sobrenatural em todas as suas manifestações, e a querer a afirmar o domínio de sua razão. O contrário exige dele o esforço, exige luta, e essa luta irrita-o sobremaneira, tornando-se ele, então, um naturalista.
Ora, quando comparamos a arte da Renascença com a medieval, vemos certos artistas da Idade Média profundamente imbuídos do sobrenatural. Um Fra Angélico, num Giotto, quase se tem a impressão, em suas telas, de que o sobrenatural está ali representado. Nos quadros da Renascença notamos que mesmo num Rafael, o pintor das “Madonas”, o sentido do sobrenatural é incomparavelmente menor, muito mais tênue – isso quando existe – e muitas vezes não existe. Aparece frequentemente na pintura renascentista um carácter pagão indisfarçável.
A um grande pintor italiano da Renascença pediram certa vez um São João Batista para uma igreja. Dentro de três dias o pintor apresentou o quadro. Como o teria pintado tão rapidamente, tão completo? É que a tela já estava pintada. Tratava-se de um Baco, que o artista se restringiu a alterar um pouco, colocando as insígnias de São João Batista!…
Esse Baco, que faz o papel de São João Batista, é bem o símbolo desta espécie de equívoco da Renascença, equívoco este, porém, que, para um bom analista, não é um engano, mas um fundo de paganismo que vem surgindo, que vem nascendo e se impondo a todos os espíritos.
Na verdade, da Renascença espanhola não se pode dizer bem exatamente o mesmo que das outras manifestações da Renascença. Quando consideramos os quadros de um Zurbarán, por exemplo, é impossível não notar neles ainda um grande sopro de espiritualidade. Mas devemos dizer, neste ponto, que a Renascença espanhola é apenas mais moderada que as outras.
A sociedade às vésperas da Revolução Francesa
A sociedade, nas vésperas da Revolução Francesa, apresentava um tipo de homem já profundamente diferente do Renascentista, e que diferia mais ainda do medieval. A obra do absolutismo e do legismo está consumada. O poder real se estabeleceu inteiramente e absorveu quase todas as manifestações da vida do país. Tudo está centralizado. A França apresenta-se como uma cabeça em que tudo se concentrou e na qual, uma vez se desfira um golpe, tudo se arrebenta.
Por outro lado, o naturalismo renascentista evoluiu e passa agora para o deísmo. O que vem a ser o deísmo?
À força de não se querer reconhecer o sobrenatural, forma-se um tipo de religião que afirma que Deus existe, mas só o deus da razão, o deus que a razão humana pode entender. Não existe outra forma de religião. Jesus Cristo não é Deus. Há apenas um Deus perdido pelas nuvens, e a respeito do qual não se sabe o que achar.
O tipo do deísta é, por exemplo, Voltaire, que dizia acreditar em Deus, mas negava ser Jesus Cristo Deus. Suas cartas terminavam sempre com esta expressão “écrasons l’infâme”: “esmaguemos o infame”! É preciso esmagar Jesus Cristo, que é o grande autor das superstições. Para ele, o clero é um conjunto de homens que vivem de explorar a credulidade pública. Os nobres são um conjunto de exploradores que vivem de espoliar os pobres. Não existe nenhuma forma de hierarquia, e, sobretudo, Deus está perdido nas nuvens.
Ao lado disso encontramos o enciclopedismo. O que vem a ser o enciclopedismo? Trata-se de um conjunto de sábios que se reúnem para fazer a enciclopédia, ou seja, uma compilação de todos os conhecimentos existentes no tempo, mas totalmente modelados pela ideia de que não se pode saber nada a respeito de Deus, e de que todas as religiões são falsas.
O deísmo gera então uma forma de cultura que é ateia também.
Como sempre, há meios termos: encontramos jansenistas e galicanos que são católicos, e que, sem chegarem até o deísmo, vivem dentro da Igreja Católica, mas como uma espécie de quinta coluna. Os jansenistas são protestantes disfarçados, e os galicanos os que negam a autoridade do Papa sobre a Igreja de França.
A transformação do nobre
Após estudarmos a revolta contra a Religião vejamos como o gosto pelo prazer se manifestou na transformação do tipo humano.
Qual é o tipo do nobre às vésperas da Revolução? É o que se possa imaginar de mais diferente do antigo nobre. O nobre medieval é um guerreiro forte, vigoroso para lutar. O seu descendente, o pequeno marquês das vésperas da Revolução, mais parece um “bibelot” que propriamente um guerreiro. A sua primeira preocupação não é ser corajoso nem heroico, mas gracioso.
Ele é frágil, usa sapatos com saltos altos, de verniz. O bonito é ter os pés pequenos, as mãos brancas e finas, as unhas às vezes com verniz. Usa gola de renda, roupa de seda, cabeleira empoada. Sua roupa é cheia de flores, os botões são de pedras preciosas. Anda perfumado, com um jeito feminino. Ninguém como ele para fazer uma reverência, para dar um sorriso, para ser muito amável. Parece um pequeno brinquedo detido na terra como um raio de lua. Anda de carruagem que mais parece uma bombonière. Dir-se-ia mais feita para guardar bombons que gente: tudo é douradinho, tudo tem cristais, e pluminhas em cima; usa um chapéu de três bicos, também com plumas; atrás vem dois lacaios, emplumados; na frente, outros dois; os cavalos são ensinados a andar direitinho, e assim lá vai ele pelas ruas.
É fácil compreender que esse tipo de homem, ao longo de uma larga evolução histórica, acabou sendo modelado quase inteiramente para o prazer. Não tem mais ideais de luta, nem princípios para servir. Sua única e grande preocupação é gozar a vida, e, para gozá-la, ser elegante, bonito, agradável, engraçadinho.
A consequência é que quando a tormenta se apresenta, ele não impõe mais respeito a ninguém. Um homem pode respeitar a outro homem, mas não a um brinquedo. Pode-se achá-lo engraçadinho, pode-se até ter pena de quebrá-lo, mas ninguém o obedece ou lhe serve como a um superior.
Às vésperas da Revolução, os nobres não moravam mais em suas terras, mas sim em Paris. Viviam longe de seus camponeses. Em uma única região da França, apenas, o nobre conservava o perfil antigo de pai dos camponeses, morando no meio deles e tratando de lhes resolver os problemas. Era na Vandéia.
Exclusão feita a essa região, a única que lutou contra a Revolução e onde houve coesão contra-revolucionária, em todas as Províncias da França houve uma verdadeira degringolada, porque o gosto do prazer pela vida tinha absorvido todas as virtudes, todas as qualidades.
O gentil-homem, agradável, gracioso, que era o sustentáculo natural do trono, não estava mais em condições de fazer face à Revolução. O que o havia corroído? O gosto do prazer.
A transformação do burguês
Ao seu lado havia o burguês, cuja fisionomia era muito diferente da do nobre. O próprio do burguês era viver na economia e tratar das coisas econômicas. Por essa razão, enquanto o nobre procurava ser magro e elegante, o próprio  do burguês era ser gordo, bem nutrido, com tendência para a obesidade. Ventre e burguesia pareciam coisas conexas. E não tão erradamente, pois que a Escritura nos fala daqueles que têm por Deus o próprio ventre!
O burguês era um homem estável: sapatões, roupa durável, forte, econômica; boa saúde, calmo, simples, trabalhador, mas, ao mesmo tempo, contente de si. Em comparação com o nobre, era como o pato em relação ao galo.
Era um tipo de homem que queria subir, e o queria porque achava que tinha tudo e só lhe faltava ser nobre para ser o primeiro na sociedade. Vemos, então, ele levantar-se contra o nobre, para derrubá-lo por uma razão análoga àquela pela qual os nobres, na época de Felipe o Belo, tinham procurado derrubar o Papa.
O nobre quis gozar a vida e ser o primeiro. Mas, com alguns séculos, ele se debilitou tanto, que agora é o burguês que deseja o prazer da vida e ser o primeiro.
E a burguesia organiza, então, uma revolução, levada não só pelas ideias voltairianas, que são sedutoras, pois que agradam à razão humana, mas também pelo desejo de mandar, pelo desejo de dominar. E temos, então, a revolta da burguesia contra a nobreza.
É tão forte esse movimento de ideias, tão forte a transformação da burguesia e o seu desejo de mandar, que quando a Revolução Francesa começa, já, por assim dizer, as cartas estão jogadas. As instituições antigas, vividas por homens que não mais tinham o seu espírito, pareciam já inexplicáveis. O burguês aparece, no cenário do mundo, estuante de força. No momento em que ele resolve sacudir a sociedade, todas as instituições caem como se fossem um cenário de teatro. É a presença de um espírito novo e de uma nova mentalidade que a tudo derruba.
– III –
Transformações finais da burguesia
Passamos, agora para outra etapa que, por um conjunto de movimentos, ligaram a Revolução Francesa à comunista.
Ao longo dos anos o burguês, que figura na primeira plana, é devorado ele próprio pelo desejo de gozar a vida. E este desejo o transforma. Enquanto antes da Revolução Francesa, ou no começo do século XIX, ele era um homem estável, ajuizado, trabalhador, seu filho será um gozador da vida. Procurará ter ares de dândi, de homem elegante. À medida que começa a tomar esse aspecto, torna-se um elemento superficial, vácuo, perdendo as qualidades que fizeram a grandeza de sua estirpe.
O neto do burguês é o “playboy“. Quanto a este tem-se a impressão de que perdeu totalmente a estabilidade e o peso. Sua velocidade é maluca; não anda, corre. Ou então deita-se e dorme. Não tem a velocidade da calma, nem ideias. O senso de coordenação do pensamento lhe desapareceu completamente. Salta de uma expressão para outra sem o menor nexo. Não tem hábitos. Muda completamente todos os dias seu modo de existir e de ser. Sua vida é um encadeamento constante de prazeres. Joga-se nos esportes, depois no “rock and roll”. Procura apenas divertir-se.
A ânsia do prazer explode no operariado
O “playboy” é um fenômeno extremo, mas o fato é que a massa da burguesia tende para o que podemos chamar de “playboysmo”. Ela dá, para a maioria do operariado e do proletariado, o espetáculo inebriante de uma vida de prazeres que, vista de fora, é deslumbrante, embora por dentro frustra.
Qual o resultado? Simplificando e cortando horizontes, chegamos, enfim, ao descrédito do burguês em relação ao operário. Mas, acende-se neste o desejo de gozar a vida do burguês. Então, essa espécie de ânsia das massas que conhecemos, ânsia de conquistar para si os prazeres que fazem a vida do burguês.
Por outro lado, esta ânsia é aguçada por certa modernização de uma parte do clero. Pio XII, nos seus documentos, faz mais de dez importantes afirmações externando a tristeza que lhe causava esse desvio de uma parte dos elementos do clero. Esta tendência é, pois, um fato que se pode constatar em documentos pontifícios.
E ainda temos as diversas tendências de nossos dias para o ateísmo, para o panteísmo, para o liturgicismo, para o socialismo; e mais, as formas malucas de arte como o cubismo, o dadaísmo, que exprimem todas elas essa espécie de ânsia de prazer, de desejo desenfreado, que constitui uma transformação diante da qual todas as alterações políticas e sociais não são senão meras consequências.
A dinâmica dessa ânsia de prazeres
Desta maneira, o grande problema que se apresenta é como conseguir conservar algo exatamente no momento em que sopra mais forte, e mais sem restrições, esse tremendo espírito de paganização e ânsia de prazeres.
E como essa ânsia é enorme, como essa tendência neopagã é colossal, e se sacia apenas naquilo em que pode satisfazer ao orgulho e a sensualidade, sempre que um escritor escreve um livro que favoreça o orgulho, ele é aplaudido, e sempre, ao contrário, que seu livro seja orientado no sentido da hierarquia e da humildade, as suas palavras caem como melancólicas, como fatores de tristeza e de desânimo. O escritor não encontra popularidade. Essa ânsia de prazer leva os homens para o lado da Revolução.
Suponhamos um romance profundamente moral, bonito e nobre. Se o seu autor pretender fazer concorrência com um livro imoral, qual o resultado? O romance imoral, que satisfaz certas paixões que estão à espera de alimento e de meios para expandir-se, seguramente vencerá. O romance moral, que fala só à razão, que lembra o dever, não agrada, porque há apetência tão somente para a ideia do prazer, da sensualidade.
Um orador que fizer uma conferência a favor do divórcio será por todos aplaudido, porque há um sem número de paixões que estão soltas à procura do amor livre. Mas, se um conferencista falar contra o divórcio, encontrará um auditório que pode até concordar com ele, mas que sai triste por ter tido que fazê-lo, deplorando que a lógica do conferencista o tenha amarrado. Os ouvintes sairão da conferência com a sensação de que foram roubados em algo.
Imaginemos um conferencista que costume falar contra o igualitarismo. Se, ao contrário, ele afirmasse como é bonito e nobre fazer com que os outros não sofram; como é belo, portanto, o homem que se despoja de sua superioridade para consolar os que são menos que ele, e que, levado por um sublime espírito de caridade cristã, sabe igualar-se e nivelar-se a todos. O auditório todo bate palmas. Por quê?
Porque todos têm uma ânsia de eliminação dessas barreiras que constituem uma fricção constante no mundo, e, devido a isso precisamente, têm já um ouvido preparado para ideias dessas.
Fundemos, por exemplo, um partido político com o nome de Partido Radical Progressista Revolucionário. Há mil cobras que se levantam sentindo avidez. Mas se o batizarmos de Partido da Reação Regeneradora, conseguiremos apenas os votos de algumas velhas, de alguns homens sensatos, da parte mínima do eleitorado, porque a maioria está já previamente conquistada para o outro lado. Conseguiremos apenas os votos de uma meia dúzia de camponeses atrasados para fazermos nosso partido. Mas o Partido Radical Progressista Revolucionário, esse sim arrastará todos os votos! Por quê? Porque uma determinação política, uma determinação ideológica já está no espírito do público, antes das ideias.
A apetência do prazer na população católica
Como explicar que sendo uma nação de 70.000.000 de católicos, e tendo uma minoria insignificante de protestantes, ateus e cismáticos, entretanto estejamos às voltas com a maior das crises morais? O povo brasileiro é católico e está profundamente ligado às tradições cristãs que recebeu de seus maiores. Mas está unido, por outro lado, por um movimento muito mais dinâmico de sua alma, às forças soltas do neopaganismo. Ele tem apetência do prazer; e apetência a essa forma arregaçada e explosiva do prazer, que é a destruição de toda a ordem, de toda hierarquia, de todo nosso passado cristão.
Qual o resultado? Enquanto vamos à Igreja e batemos no peito, enquanto dizemos no recenseamento que somos católicos, cada vez mais nossa alma se esvazia de conteúdo católico. E isto a tal ponto que o grande problema para o Brasil – e acreditamos que seja o mesmo para todas as nações católicas do mundo – não é o de converter os protestantes que há nessas nações. Se “catolicizarmos” os católicos dessas nações, teremos resolvido nosso angustioso problema.
Que adiantará converter os 5% de protestantes, enquanto a divisão dentro de nossas almas, que veio desde a primeira Revolução, e que vem se agravando, é a dupla herança que recebemos, no sangue português ou no espanhol, do qual nós descendemos, a herança da fé e a herança da Revolução? E enquanto vemos que, por um pavoroso fenômeno de alma, tudo o que nos representa a fé cada dia fica mais débil, ao mesmo tempo que tudo o que representa a Revolução se fortalece?
Há um problema de alma no fundo desta crise, há uma luta interna, e nesta luta as forças das paixões desregradas representam a Revolução. São as forças dinâmicas. De outro lado, as forças que representam a tradição, a virtude, a fé, são forças em declínio, sonolentas, enfraquecidas. E quando temos de um lado dinamismo e de outro inércia, de um lado vida e de outro morte, há de chegar um momento em que essa divisão cessa. O que é vivo acabou por devorar o que era morto.

 

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A Revolução, imensamente sábia, preparou a degringolada do Ocidente. O que devemos nós fazer? Exatamente o contrário: preparar a CR, que começa por ser, antes de tudo, a Contra-Revolução da Cruz
Qual, pois, a situação prática e positiva a que chegamos?
A Revolução, imensamente sábia, preparou a degringolada do Ocidente por meio de regras especiais, baseadas todas elas no princípio de que, para levar o homem ao erro, é preciso fomentar as paixões. Poderíamos fazer, aplicando os princípios que desenvolvemos no nosso livro “Revolução e Contra-Revolução“, um estudo do modo pelo qual, por um sistema de insuflação, a Revolução começou a espalhar moderadamente o gosto do prazer em algum lugar. Depois disto, e feito nascer o gosto da impiedade, começou ela a fazer se propagar para outros pontos, e assim um incêndio imenso se prepara em todas as gamas da sociedade.
O que devemos nós fazer? Exatamente o contrário. Devemos preparar a Contra-Revolução, que começa por ser, antes de tudo, a Contra-Revolução da Cruz. E que significa a Contra-Revolução da Cruz?
Estamos, hoje, talvez, na melhor época que já houve para se fazer a Contra-Revolução.
Os Evangelhos nos contam a parábola do filho pródigo que sai da casa paterna levado por um espírito que se poderia chamar de revolucionário, de gozar a vida na cidade, já não tolerando a autoridade do pai. Aí gasta todo o seu patrimônio, e chega a viver comendo as bolotas que se dão aos porcos. E há, nesta parábola contada por Nosso Senhor, algo de sumamente psicológico. Enquanto este homem viveu com dinheiro não se lembrou de seu pai, mas quando começou a sentir na boca o mau gosto das bolotas dos porcos, e no estomago o vazio das refeições que não satisfazem, então lembrou-se do pai. Em outras palavras, a hora do sofrimento é a hora da emenda, a hora da penitência.
O mundo contemporâneo está exatamente nessa situação, está na hora do sofrimento e da penitência. Andando pelas grandes cidades contemporâneas, notamos uma atmosfera de vida pesada. As fisionomias são sombrias, as pessoas correm para o trabalho, há fome, a vida é árdua, as almas sobretudo estão vazias. Elas não notam que estão vazias, mas isto nada quer dizer; de fato estão vazias. E esse sentimento de frustração das almas produz as neuroses, as psicoses, os desesperos tão característicos das grandes cidades. Todos sentimos que estamos num desses momentos da História em que  uma catástrofe ameaça a humanidade. E a bomba de hidrogênio é a menor delas. No fundo, o mundo todo treme e sente uma interrogação indefinível.
E, devido a isto, por causa desta dor, que é o resultado do que o demônio prometeu aos homens – prometeu prazer e acabou por lhes dar as bolotas dos porcos, porque o demônio mente sempre – em virtude desse fato, notamos algo de inteiramente novo.
Indícios da ótima oportunidade para a Contra-Revolução
Há 20 anos, um movimento contra-revolucionário seria considerado uma utopia. Quem conhece o movimento católico daquela época até hoje pode dizer que nunca as possibilidades de um movimento contra-revolucionário foram tão grandes como o são no momento atual. Não porque a crise não esteja no seu auge, mas precisamente porque ela está no seu pináculo, pois que isto traz também o início do desespero e, a seguir, o início da reação.
E é por esta razão, por uma espécie de amargor e desilusão profundas que se nota em todos – mas sobretudo na mocidade – que observamos esse fato fantástico e que a todos nos surpreendeu. Quando fizemos os planos do livro “Reforma Agrária – Questão de Consciência“, havíamos calculado uma edição de 5.000 exemplares. Do livro, em dois meses, saíram 12.000 volumes, e no Brasil inteiro era ele reclamado com tanta sofreguidão que pensou-se logo em imprimir uma nova edição de 18.000 volumes, perfazendo assim, em pouquíssimo tempo, 30.000 exemplares, já quase todos vendidos, o que constitui um verdadeiro recorde para um livro “furiosamente reacionário”, como se diz.
Que significa isso tudo senão exatamente uma apetência, um fato inteiramente novo, que ao longo de todo o período anterior não existiu? É um fato que se passa na zona alta da Revolução A, e que é muito mais importante que um acontecimento meramente institucional. É um fato, um fenômeno, dentro da alma das multidões, dentro da vida coletiva dos povos, que consiste numa apetência de passar do extremo da Revolução, numa apetência de algo de positivo, de ideal e de sofrimento.
É por essa razão que encontramos tantos jovens que poderiam estar na Europa divertindo-se esplendidamente, que poderiam comprar automóveis dos mais luxuosos, beber champagne da mais fina, viver a vida a mais regalada e a mais despreocupada, e que, entretanto, consagram a sua vida a combater a Revolução. É por essa razão também que, não sendo ricos, muitos outros poderiam estar tratando de fazer dinheiro, que é a grande ânsia do homem contemporâneo, e que, no entanto, estão gastando o seu tempo e comprometendo o seu futuro econômico em um trabalho contra-revolucionário.

 

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Seguir a Nosso Senhor Jesus Cristo com espírito de sacrifício, de renúncia, de cumprimento do dever, oposto a tudo que tem sido feito até aqui. De homens imbuídos desse espírito sairá a aurora de uma nova Idade Média
Qual a razão deste fato maravilhoso? São pessoas que vivem à procura da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Querem ouvir falar de dever, de ideal, mas sabem que as palavras “dever” e “ideal” não tem sentido a não ser quando conjugadas com as palavras dEle. Porque Nosso Senhor Jesus Cristo, o Sumo Bem, é o único ideal perfeito, e todos os ideais que se encerram n’Ele são verdadeiros, e todos os ideais que se desviam d’Ele são mentira, abominação, pecado.
E então compreender qual o sentido profundo desse movimento de almas, e porque ele tem aquilo que poderíamos chamar de “mística”, que é a mística de seguir a Nosso Senhor Jesus Cristo com o espírito de sacrifício, de renúncia, de cumprimento do dever, oposto a tudo que tem sido feito até aqui. De homens imbuídos desse espírito sairá a aurora de uma nova Idade Média. Enquanto os homens tiverem outro espírito, o espírito do prazer e do gozo da vida, só poderá haver abominação e paganismo.
No momento em que a civilização cristã está em vias de morrer, mas também de renascer, não queremos disfarçar nada do que há de admiravelmente verdadeiro, lógico, coerente, profundo, sincero, na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. É preciso levar uma vida de dever, de luta, de trabalho, de seriedade, por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo.
São palavras terríveis!
Nas pegadas de Nosso Senhor e sob o olhar da Santíssima Virgem
Mas o terrível destas palavras se atenua com duas considerações. Houve uma santa a quem Nosso Senhor apareceu carregando a Cruz por um caminho de espinhos, convidando-a a segui-Lo. Ela começou a andar no mesmo caminho, mas os seus pés não suportavam. Ela então disse: Senhor, eu não consigo continuar. Ele voltou-se até ela e a advertiu: Tu não fazes como Eu, tu não pões os teus pés nas pegadas dos Meus. Se andares e pisares onde pisei, então caminharás.
Não basta, pois, querer sofrer, mas é preciso seguir exatamente a Nosso Senhor, pondo os pés onde Ele os pôs, vivendo numa união estreita e íntima com Ele e, então sim, esse caminho é viável. Sobretudo se, ao longo desse caminho, para auxiliar a nossa fraqueza, para consolar os nossos corações, nós tivermos aquilo que há de mais doce no Céu e na terra, que é o sorriso inefável de Maria Santíssima!

 

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Nossa Senhora do Bom Sucesso (Quito, Equador)

Nota: Consulte a coletânea de documentos do Prof. Plinio com numerosas matérias relativas à Revolução e à Contra-Revolução.

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