Plinio Corrêa de Oliveira quando deputado na Constituinte (1932)
Legionário, N.º 754, 19 de janeiro de 1947
O que é a “questão social” de nossos dias?
Genericamente falando, “questão social” é todo o problema suscitado por alguma anomalia na vida da sociedade. Distingue-se de “questão política”, enquanto esta diz respeito à organização do Estado. Ninguém ignora que o mundo já conheceu muitas questões sociais que culminaram em conflitos: lutas entre plebeus e nobres, entre escravos e homens livres, entre nobres e burgueses na Idade Média e no século XVI, etc. Mas é um erro supor que a única forma de “questão social” é a luta entre classes. A corrupção dos costumes públicos e privados a dissolução de todos os organismos que constituem a contextura social, a decadência da família, dos órgãos profissionais, das classes sociais, da probidade comercial, das artes, tudo isto pode constituir uma “questão social”-monstro, que leve a sociedade à ruína. E uma questão social deste tipo pode existir, medrar, levar aos mais trágicos desfechos, sem que entre as classes componentes do organismo social haja luta ou rivalidade. Assim, pois, a luta de classes é uma forma de “questão social”, porém não é a única, e nem sequer é necessariamente a mais perigosa delas. O Império Romano do Ocidente, por exemplo, pereceu em virtude de uma imensa “questão social”: toda a sociedade romana, na Itália, como na Gália ou na Ibéria, estava radical e absolutamente podre; por isto e só por isto, conseguiram os bárbaros dominar os romanos; a questão social levou, pois, a sociedade e o Estado romano à ruína: nem por isto havia no Império uma luta de classes.
* * *
É um erro supor que nos dias que correm a questão social consiste tão somente na luta entre proletários e burgueses. Sofremos de um fenômeno social de decomposição dos caracteres e das instituições, absolutamente tão vasto, tão profundo, tão virulento quanto o Império em seus últimos dias. Apenas, a agravar a situação, temos além de tudo uma luta de classes que o Império não tinha.
Temos também os bárbaros? Sim, e dentro das fronteiras. Em nossos dias, não há, como no tempo dos romanos, uma divisão entre o mundo bárbaro e o mundo civilizado. No mapa contemporâneo, não existem, delimitadas com nitidez, as duas zonas anteriores à invasão: de um lado o território imperial onde a civilização decadente arrastava uma existência crepuscular; e do outro lado o mundo bárbaro que planejava a invasão, o saque, a universal destruição. Hoje, os bárbaros vivem dentro de nossa civilização, e, mais ainda, são engendrados pelas próprias entranhas dela. Se nem todos são bárbaros, quase ninguém está inteiramente escoimado de um quê de barbárie. Todos os dias, quebra-se mais um pouco do que nos resta de nossa civilização cristã. Aqui, é um princípio que se nega, ali uma tradição que se restringe, acolá um costume sadio que se revoga. Hoje somos menos cristãos do que ontem, amanhã seremos menos cristãos do que hoje. Se tudo quanto se corroe, se arranha, se quebra do velho edifício da civilização cristã deixasse vestígios materiais, e se esses restos pudessem ser recolhidos e reunidos em um só lugar, poderíamos medir melhor com os olhos do corpo o que nem todo o mundo vê com os olhos do espírito. Notaríamos, então, com horror, a que proporção fantástica chega este fenômeno de destruição.
Neste grande crime coletivo, em que quase todos têm as mãos ou os dedos mais ou menos tinto do Sangue de Cristo, não se sacia o ódio dos seus piores inimigos. Querem estes apressar a agonia. Desejam que se chegue já, que se chegue completamente, que se chegue com violência, a ferro e fogo, a hora extrema e ao consumatum est da civilização cristã. Estes são os comunistas.
Ora, há dias atrás, os comunistas realizaram um grande comício, e reuniram mais de 80 mil empreiteiros desta obra diabólica, no Anhangabaú. É certo que nem todos, ali, eram comunistas: havia também simpatizantes e curiosos. É certo, ainda, que alguns dos que ali estavam, desejando embora a vitória do comunismo, não sabiam muito claramente que a Igreja é verdadeira e que, atacando-a, se tornavam réus de um crime contra o próprio Deus. Pouco importa. Sua culpa estava em não o saber. Nosso Senhor fez milagres, que todo o povo judeu presenciou. Se, apesar disto, no momento da Paixão muitos ainda não estavam certos de que Ele era Deus, tinham culpa nesta ignorância. […] Aqui está a Igreja de Cristo, e nela os caracteres de divindade refulgem como um sol. Se alguém há que ignora esses caracteres, depois de ter recebido o santo Batismo, e de ter professado conscientemente a Fé, tem culpa nisto. Se alguém há que, tendo pertencido à Igreja, dela se separou odiando sua doutrina, suas instituições, a civilização que engendrou, é réu do Sangue de Cristo. Se algum católico há, que chegou a ponto de apostatar e de se inscrever nas hostes dos demolidores da civilização cristã e da Igreja de Jesus Cristo, é réu do Sangue de Cristo, qualquer que seja o grau de ignorância por onde tenha deslizado até o crime. E se os católicos ou ex-católicos ignorantes ou indiferentes (?), que ali estavam, são réus do Sangue de Cristo, que dizer dos outros, dos que ali sabiam o que se queria o que se tramava, para onde ia tudo isto, e a Quem, com tudo isto, se persegue?
* * *
O que levou tanta gente a tão grande delito? Diz-se que a fome. Será verdade?
Deixemos de lado qualquer demagogia, e consideremos as coisas de frente.
Em primeiro lugar, devemos lembrar-nos de que os que ali estavam não pertenciam, em sua maioria, à classe social que mais sofre. Infelizmente, temos ainda operários que passam necessidade. Mas é forçoso reconhecer que constituem minoria. A grande maioria de nossos trabalhadores manuais vive com verdadeira fartura. É o que todos sabem. Sofre imensamente a pequena e média burguesia: modestos funcionários públicos, viúvas e órfãos vivendo de pequenas rendas desvalorizadas, de aposentadorias tornadas insuficientes pela inflação, professores menos bem pagos que um motorneiro ou um engraxate, e obrigados entretanto a se vestir com certa linha. Estes os principais sofredores. Pois bem: não são estes o principais revoltados! Os revoltados encontramo-los em todas as classes, e até em fúteis mocinhos de salão. Logo, não é a fome que faz a revolta.
Revolta? Digamos melhor, apostasia. Pode a fome só por si impor uma apostasia? Pode ela ser a única culpada por que alguém perca a Fé?
Não. É doutrina católica que ninguém é tentado acima de suas forças. Deus dá a todos a graça necessária. Se, pois, um católico peca, peca livremente. A ocasião do pecado pode ser a fome, a luxúria, ou qualquer outra. Mas a culpa é dele.
Assim, a razão de tantas apostasias está muito mais na debilidade das convicções e do fervor religioso de quem pecou, na sua falta de generosidade para com Deus. E consiste apenas secundariamente na ocasião que o levou ao pecado.
* * *
De tudo isto se conclui que o comunismo e a luta de classes não resulta em nossos dias de causas apenas econômicas. Estas incluem certamente o problema, não porém a título capital. E tantas apostasias não são senão um aspecto da enorme crise de caracteres contemporânea que em última análise é uma crise religiosa.
À vista de tudo isto, como qualificar a ingenuidade dos que imaginam que, resolvida a questão econômica, estaria resolvida a questão social? Dos que acham que contra o comunismo não se deve empregar a violência, como contra o crime, porque comunismo é fome e não é crime?
As labaredas da pregação comunista caminham com a velocidade da chama. As reformas sociais mais inteligentes, eficazes, seguras, só atuam lentamente. Muito antes da terapêutica ter produzido seu efeito, o doente terá estrangulado o médico.
Se fosse só o médico é pouco. O médico e todos aqueles que não concordavam nem com a ingenuidade nem com a minoria destes tristes “curadores”.