Catolicismo, Nº 71 – Novembro de 1956, pág. 1 e 2
No portal da Catedral de Estrasburgo uma estátua de granito rugoso, em que se entranhou a poeira de séculos, mas que se conserva sempre bela e jovem, representa a Igreja. O Apóstolo diz da Esposa de Cristo que Ela não tem mácula nem ruga. Sua formosura lhe vem da doutrina perfeita, da santidade constante, da autoridade infalível. As misérias do tempo podem, por vezes, impregnar em larga medida seus elementos humanos, sem contudo atingir sua imortal perfeição. É que a beleza da Igreja é o mais límpido reflexo da própria beleza de Deus e por isso nada tem Ela a perder com a manifestação plena da verdade.
Em princípio, a discussão entre católicos é um mal? Ou é um bem? A este respeito, as opiniões se dividem.
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Para uns é um mal. Antes de tudo porque a discussão, e a fortiori a polêmica, são espécies adaptadas ao mundo das idéias de um gênero essencialmente mau e, sobretudo, essencialmente anticristão, que é a rixa. Neste vasto gênero, estão não só a briga de botequim, a briga doméstica, a vendetta siciliana ou o cangaço nordestino, como ainda, em esferas de atividade mais largas, a conspiração, as lutas intestinas, a guerra com o estrangeiro e a guerra mundial. Há, pois, uma imensa gama de rixas, que vai do particular ao nacional e até ao internacional. E neste gênero tudo é maldito, pois tudo cheira a ódio, a ganância, a vaidade, a vingança, a traição, a carnificina. Ora, se a discussão e a polêmica são formas ideológicas de rixa, merecem elas a mesma execração. E ainda que alguém provasse que uma discussão pode em tese ser correta, distinta, elevada, tal execração não deveria descer de ponto. Pois é tão fácil cair-se desse alto nível para os mais fundos abismos da ira, e são estes tão atraentes para a maior parte dos homens, que, pelo simples perigo que encerram, as discussões mais elevadas constituem ocasião próxima de todos os desmandos de alma e de linguagem. Pelo que devem ser evitadas.
Acresce que as discussões e polêmicas só têm e só podem ter um fim, que é persuadir o adversário. E para este efeito elas são perfeitamente contraproducentes. Pois a discussão necessariamente irrita, ou pelo menos magoa. Ora, nessa disposição de espírito cresce a propensão do homem para se apegar a suas idéias. A discussão, em via de regra pelo menos, só tem por efeito, pois, aferrar em suas convicções a pessoa a quem delas quereríamos demover.
Mais particularmente devem ser censuradas as discussões quando os contendores são católicos. Pois muito maior é entre eles a obrigação da caridade. E esta obrigação torna ainda mais censurável que católicos discutam como tais e em matéria que diz respeito à Religião. Pois faltar com a caridade a propósito de temas religiosos, que por sua natureza induzem veementemente à caridade, é um verdadeiro cúmulo de desatino e contradição.
Por fim, essas discussões e polêmicas desedificam. Pois quando elas ocorrem, é porque está em erro uma das partes, ou ambas. Ora, não convém revelar aos não católicos que um católico, ou toda uma corrente de católicos, está em erro. Pois no que pode isto edificá-los? Não seria preferível que eles só vissem o que entre nós há de edificante?
Em resumo, diz-se, é preferível evitar toda e qualquer discussão ou polêmica. Claro está que se deve atacar o erro. Mas para isto basta enunciar a verdade. Esta tem um tal poder sobre a mente humana, que naturalmente convence, encanta, arrebata. Máxime quando dita com muita caridade. Pois a caridade toca e faz vibrar no homem a corda boa que cada um traz no fundo do coração. Assim, construindo em lugar de destruir, irradiando amor em lugar de semear ódio, conquista-se o mundo para Cristo-Rei.
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Simetricamente com a figura da Igreja, aparece no portal da Catedral de Estrasburgo a da Sinagoga. De olhos vendados, recusa-se a ver a verdade. Tem junto de si um bastão quebrado, que já não lhe poderá servir nem para o mando, nem para o caminhar. Cegueira, invalidez: características lamentáveis de uma decrepitude que também ela não está nos acidentes mas na própria alma da Sinagoga. Toda a hediondez da filha de Satanás resulta de seu interior, – poder-se-ia dizer dela, ao contrário do que da Santa Igreja diz o Salmista. O erro só tem a perder quando com tanta clareza se lhe manifesta a natureza íntima.
A posição radicalmente oposta a esta consistiria em achar que nada na vida é tão bom quanto a discussão. Tal posição é tão perfeitamente estúpida e contraria tão violentamente a moleza, a preguiça, a displicência do comum dos homens que não me consta haver sido sustentada por alguém.
É claro que, quando há discussão e polêmica, ao menos um dos lados está em erro. Logo, se em um grupo, uma sociedade, um país há muitas discussões, há muitos erros. Quem pode achar que o haver muitos erros pode ser um bem?
De outro lado, disse Nosso Senhor que todo reino dividido contra si mesmo perecerá (Mt. 12, 25). Ora, as discussões e polêmicas são divisões. Logo, de si mesmas constituem um fator de deperecimento e não podem ser consideradas como absolutamente boas.
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Mas o que acabamos de afirmar se pode dizer de muitas outras coisas que nem por isto o homem rejeita. Antes as procura avidamente.
Assim, não se vai pretender que tomar remédio seja absolutamente um bem. Pois só toma remédio quem está doente. E a doença é um mal. Quando a população de uma cidade absorve muitos remédios, não se diz que por este fato ela é mais feliz do que a de outra em que o consumo dos remédios é quase nulo, por desnecessário. Antes pelo contrário. O mesmo se poderia dizer de mil outros objetos, como muletas, pernas e braços mecânicos, aparelhos para a surdez, dentaduras, óculos, etc. Em si, não são um bem. Pois se o fossem seria preferível a condição dos que os usam.
A exemplificação poderia ainda ser mais ampla. Todos reconhecem que as escolas, as bibliotecas, as livrarias são um bem. Entretanto, se nós, filhos de Adão, precisamos de tudo isto, nosso primeiro pai, no Paraíso, conheceu toda a natureza sem necessidade de estudos nem de livros. Somos nisto mais felizes do que ele, porque temos universidades ou bibliotecas?
Assim, devemos admitir como inegável que certas coisas que normalmente não nos convêm, dadas certas circunstâncias nos são boas. Um homem sadio considera um mal usar cadeira de rodas. Um aleijado, admitindo em tese que o homem sadio tem razão em não usar cadeira de rodas, acha-a boa para si, em virtude do estado em que se encontra. E por isto paga por ela uma boa quantia. Quanto pagaria um homem sadio para evitar uma operação? E quanto paga um doente para ser operado? É que, relativamente ao estado deste, a operação é um bem. Pois todo mal menor é um bem relativo.
Situação ideal… e rara
Há casos em que o simples enunciado da verdade convence uma pessoa que está em erro. Dá-se isto quando tal pessoa é de uma extraordinária retidão de alma. Ou quando é objeto de uma ação toda especial da graça, à qual corresponde. Neste caso, para que discutir ou entreter polêmicas? Seria afanoso, supérfluo, eventualmente perigoso, em todo o caso contra-indicado. Pois toda discussão é em si mesma como um remédio ou uma muleta: absolutamente falando nenhuma pessoa normal a pode estimar.
Mas são muito raros os espíritos de tal retidão, ou as operações da graça tão fulminantes, as quais, aliás, podem não ser correspondidas. Do contrário, não se compreende como Nosso Senhor, que é a suma caridade, tenha expulsado a chibatadas os vendilhões do Templo (Mc. 11, 15-19), e tenha aceito discutir com os doutores e os fariseus, tomando mais de uma vez na discussão um tom polêmico, como quando os chamou raça de víboras e sepulcros caiados (Mt. 23, 25-35, Lc. 11, 37 ss.). Nem se compreende que São João Batista tenha preparado as almas para a vinda do Senhor por meio de palavras de cunho nitidamente combativo (Mt. 3,7). Ou que inúmeros Santos, com os aplausos da Igreja, se tenham assinalado na controvérsia com os adversários desta.
Há, pois, um manifesto otimismo em imaginar que o simples enunciado da verdade basta habitualmente para derrotar o erro. Otimismo incompreensível num católico, já que incompatível com a doutrina da Igreja sobre os funestos efeitos do pecado original no homem.
A discussão e a persuasão
Do excesso de otimismo esta opinião passa para o excesso do pessimismo, quando sustenta que toda discussão só tem por efeito obstinar ambas as partes em suas opiniões. Que isso possa suceder, é óbvio. Mas sob a condição de que a discussão seja conduzida sem caridade, ou se ressinta de um personalismo e um subjetivismo notáveis. Ora, pode dar-se que uma discussão seja levada segundo as normas da mais perfeita caridade, ainda quando nela se tem de dizer coisas muitíssimo duras. E pode ser que os contendores sejam objetivos e leais. A estes, faz bem ouvir a verdade, pois, como diz a Escritura, o homem prudente não murmurará quando for repreendido (Ecli. 10, 28; e cfr. Ecli 21, 7; e Prov. 12, 1). Há manifesto pessimismo em supor que necessariamente as partes faltam com a caridade e a boa-fé. Logo, há discussões e polêmicas que podem dar excelente resultado. E disto a história está cheia.
Mas, perguntará alguém, se uma pessoa se aferra ao erro em conseqüência de uma discussão, não teria sido melhor não discutir?
Ainda aqui, não estamos de acordo. Uma discussão ao longo da qual uma pessoa ouça a exposição clara do erro em que está, é para ela uma graça. Falamos, é claro, da discussão franca, mas cortês. Se essa pessoa recusa tal graça, não há nisto uma prova de que melhor teria sido não discutir. Se se pensasse assim, teria sido melhor que Nosso Senhor não tivesse chamado à perfeição o moço rico do Evangelho. Pois o convite não foi por ele aceito, e seu coração se encheu de uma tristeza má (Mc. 10, 22). E o mesmo se dá com quem quer que rejeite bons conselhos. Segundo esta lógica, melhor seria não os dar a ninguém. Erro grosseiro, pensar que a causa do mal está no bom conselho. Não é ele que pode fazer mal à alma. O mal só vem da recusa. E a responsabilidade pela recusa não está senão nos vícios que conduziram à rejeição do conselho. Não. Este, bem como a repreensão justa, a argumentação cerrada e vitoriosa são normalmente úteis às almas. Normalmente, dizemos, pois pode haver situações excepcionais em que um homem de discernimento age também de modo excepcional. Mas em via de regra é bom discutir com cortesia e vigor, admoestar, aconselhar.
Pode ser utilíssima para terceiros
De mais a mais, há estreiteza de vistas em considerar as discussões e polêmicas apenas do ângulo da pessoa que está em erro e precisa ser esclarecida. Uma discussão pela imprensa ou na televisão, por exemplo, visa um efeito muitíssimo mais amplo. Pois embora na aparência os contendores se dirijam um ao outro, na realidade têm em vista também – e em geral principalmente – o público. Desmascarar um erro diante de um grande público é insigne obra de caridade. Pois assim podem reconduzir-se à verdade alguns transviados. Ou pelo menos se circunscrever a área de expansão do erro, confirmando na verdade os que já a possuem. O que não é de nenhum modo “chover no molhado”, mas dar muita glória a Deus, e prestar à Igreja um serviço eminente.
Elemento indispensável da vida intelectual
É incontestável que entre católicos, máxime quando se trata de assuntos religiosos, deve ser maior a caridade. Mas se uma polêmica pode ser conduzida com caridade, não há motivo para que, nos casos em que haja cabimento, não discutam entre si os católicos. E, pelo contrário, é isto por vezes necessário. No século passado (XIX), intoxicado pelas ilusões do liberalismo, exagerou-se o valor da discussão e da polêmica. “Da discussão nasce a luz”, dizia-se com tanta insistência que esta máxima até se transformou em chavão. Não é de qualquer discussão nem é só da discussão que a luz nasce. Sem embargo, não podemos cair no excesso oposto e afirmar que da discussão só nascem as trevas. Pelo contrário, na história de todas as culturas, de todas as ciências, de todos os sistemas de pensamento, a discussão teve um papel próprio, de inegável fecundidade. Nada seria mais fácil do que demonstrá-lo com exemplos tirados da história da Teologia. Abafar toda e qualquer discussão seria simplesmente mutilar a vida intelectual.
A discussão entre católicos pode ser edificante
Resta a última objeção. A discussão revela a existência de erros entre os católicos. Ora, isto pode desedificar os acatólicos.
Cumpre distinguir. Do fato de uma coisa ser edificante não se conclui que o contrário dela seja necessariamente desedificante. Assim, é edificante ver-se um pai agradar seu filho. Mas não é desedificante ver-se que ele o castiga. Antes, é também edificante, pois castigar é um dever, tanto quanto agradar. Entretanto, o castigo é o oposto da carícia.
Assim, é edificante que entre os fiéis reine a concórdia, mas não é desedificante que os acatólicos vejam que eles discutem entre si. E isto por uma razão muito simples. É que não podemos imaginar a Igreja – nem devemos querer que os acatólicos a imaginem – como Nosso Senhor não a fez. Ora, Nosso Senhor fez a Igreja infalível, mas não deu a mesma prerrogativa a cada católico. Se os católicos são falíveis, seria impossível que em tantos séculos vários deles não caíssem em erro. Daí, o que se poderia concluir contra a Igreja? Nada. Logo, o que perde Ela em que este fato se revele?
Extinguir toda discussão é favorecer o erro
Ademais, posto o erro, o que fazer para o circunscrever e extirpar, se, de receio de desedificar os acatólicos, se deve observar silêncio sobre ele?
Transponhamos esta problemática para outro campo. Nada é mais coerente com a profissão da fé, do que a prática da virtude. Nada pode edificar mais os acatólicos do que a virtude praticada pelos filhos da única Igreja verdadeira. Imagine-se que, para não desedificar os acatólicos, os jornais católicos deixassem de fustigar os defeitos e vícios em que incide esta ou aquela parcela do povo fiel. Haveria algo de mais tolo, de mais perigoso, em última análise, de mais desedificante? Pois se é concebível que haja pecados entre os católicos, não seria concebível que a respeito deles se fizesse um silêncio que redundaria em vergonhosa impunidade. Substitua-se a palavra “pecado” pela palavra “erro” que lhe é tão e tão afim: o argumento correrá igualmente bem.
Erro intra muros
Mas, diria por fim alguém, não seria melhor que os católicos fizessem frente única contra o adversário, em lugar de se entredigladiarem?
Conforme. Se o adversário está investindo as muralhas da fortaleza, é necessário que todos se unam. Mas se ele penetrou na cidadela, não basta lutar extra muros. É necessário lutar intra muros também. Ora, no terreno das idéias, o adversário é o erro. Se o erro penetrou entre os defensores da cidade – no caso os fiéis – basta combatê-lo entre os infiéis?
Como se vê, a fobia contra as discussões e polêmicas – suposto que elas se mantenham dentro dos ditames da moral e do bom senso – não tem o menor fundamento. E em última análise só aproveita ao erro. Pois lhe assegura a mais cômoda, deleitosa e profícua impunidade.