“Legionário” n.º 64, 24 de agosto de 1930, pag. 1 e 3
O pretor romano Pôncio Pilatos apresenta a Inocente Vítima de sua covardia (Santuário da Scalla Santa, Roma)
Certos estudiosos das coisas da pré-história presumem poder reconstituir, baseando-se em um simples osso, o esqueleto de animais mortos há muitos séculos.
Não sei se as tentativas de reconstituição de corpos de animais antediluvianos, tendo por fundamento tão-somente um osso, são aceitas pelos cientistas mais ponderados, e duvido muito de que estas ousadas tentativas tenham grande número de admiradores.
No entanto, somos freqüentemente tentados a imitar os pesquisadores das coisas da pré-história, no terreno psicológico. De fato, temos muitas vezes a tentação de reconstituir a nossos olhos toda uma mentalidade, baseando-nos simplesmente em uma frase, um dito.
Assim, ainda que não tivéssemos as narrativas evangélicas a nos mostrar eloqüentemente a sinuosidade de inteligência e de caráter de Pilatos, poderíamos fazer uma idéia bastante segura de sua mentalidade através do seu imortal “quid est veritas?”
Abstraindo da feição religiosa do diálogo entre Nosso Senhor e Pôncio Pilatos, não podemos deixar de considerar a beleza histórica da cena rapidamente relatada pelos Evangelhos.
O diálogo entre o pretor romano e a inocente vítima de sua covardia representa o diálogo entre uma época que se extinguia, nos últimos lampejos de uma civilização decadente, e outra época que nascia no sangue e na aparente infâmia da Cruz, mas que, dentro de alguns séculos, desabrocharia numa aurora suave de doce vitória, trazendo aos homens desvairados o doce lenitivo de uma doutrina de salvação.
O pretor romano é pintado ao vivo pelo “quid est veritas?” com que quis confundir a Nosso Senhor.
O romano civilizado, cujos sentidos já se haviam maravilhado em todos os deleites de uma sociedade que vivia para o prazer, o romano instruído, cuja inteligência inquieta havia percorrido ansiosamente todos os sistemas filosóficos que cientistas medíocres expunham no mercado literário de Roma, tal qual os modistas quando expunham os últimos tecidos exóticos chegados do Oriente, o homem vencido pelo prazer, incapaz de se desvencilhar de sua sensualidade, cuja personalidade soçobrava num mare-magno de doutrinas confusas e imperfeitas, no relaxamento de seus sentidos insatisfeitos, o pobre romano, triste vítima da pestilência de uma época prestes a morrer, exala através do “quid est veritas?” todo o azedume de quem sente ao redor de si somente as ruínas nascidas dos próprios desvarios de sua razão e de seus sentidos.
E o humilde Nazareno, que passara uma vida de privações e de abnegação, e que, jovem, belo e formoso, iria morrer pelos seus algozes, sustentando uma verdade de que se dizia a encarnação, representa exatamente o pólo oposto.
É o contraste magnífico entre o abismo cheio de umidade, de trevas e de frio, e o cume elevadíssimo de uma montanha cheia de luz, de harmonia e de beleza.
Não venceu o pretor orgulhoso. O sibarita cético que, entre ansioso e indiferente, parecia ter procurado a verdade infrutiferamente, foi estrondosamente vencido pela vítima humilde, que regou com sangue suas próprias doutrinas, e substituiu o sistema de dúvida e negação de Pilatos por um sistema de afirmação e construção que, durante tantos séculos, a humanidade civilizada admirou!
E o dito do pretor cético foi relembrado pela Igreja, durante séculos inteiros, aos povos prosternados nas góticas catedrais, por ocasião da Semana Santa, como o brado de insensatez e desespero de uma civilização prestes a naufragar. O “quid est veritas?” de Pilatos, pronunciado na agonia da civilização romana, equivale ao “vicisti tandem, Galilaeu, vicisti”, que Juliano, o Apóstata, legou ao mundo ao morrer, como último desabafo de um coração revoltado.
São ambos gritos de revolta e de desespero, diante da vitória da Verdade, que vai surgir.
* * *
Mas o grito de Pilatos não foi proferido sem eco.
Hoje, novamente, repercute em nossa sociedade repaganizada, em nosso mundo restituído aos horrores de um cientismo desbragado, quase exclusivamente formado por doutrinas fracassadas e explorações científicas.
Quando observamos o atual estado da ciência, tal qual a pode considerar um cético, lembramo-nos insensivelmente de nossas florestas virgens. A vegetação é por tal forma luxuriante, são tantos os parasitas, os cipós, as plantas de toda a sorte, é tal o emaranhamento louco das redes verdes formadas pelas trepadeiras que, à primeira vista, em certos trechos, custa descobrir árvores formosas que, em uma reta impecável, ergam bem alto suas copas frondosas.
Assim, também, o mundo científico moderno. Tal é o embate das doutrinas, tal a confusão dos sistemas, tais as contradições entre as descobertas de hoje e as leis ainda ontem tidas por verdadeiras, que a árvore reta e frondosa da Verdade, o magnífico jequitibá dos conhecimentos eternos, que resistem a todo o exame e são superiores a todos os parasitas científicos, custa para ser descoberto.
Mas, por que existe em nossa época a vegetação perniciosa que procura encobrir a verdade? Por que há tantos derrotados, tantos indivíduos que consideram a verdade como uma bolha de sabão que, mal se tem na mão para examinar, desaparece?
Por causa da repaganização do homem. Por causa da revolta da própria razão contra a revelação, que no entanto a lógica nos obriga a aceitar. Por causa, principalmente, do orgulho e desregramento dos sentidos, rebeldes a todo o freio, a toda a lei.
Ainda agora tivemos uma manifestação patente do que acabamos de afirmar. Um cientista ilustre, o Dr. Franco da Rocha, ao publicar um livro sobre a psicanálise, repete e endossa a exclamação de Pilatos.
Mas o que mais espanta é que um notável jornalista, o Dr. Plinio Barreto, comentando o livro do citado escritor, não só aprova, como reforça, com as autoridades, indiscutíveis, aliás, no assunto, de Anatole e de Loy, o brado multissecular de Pôncio Pilatos.
Então, estudar, esforçar-se por granjear conhecimentos vários e notáveis, para chegar à falência integral da inteligência humana diante dos problemas os mais imediatos da vida! É isto sadio em matéria de lógica?
Depois, se a inteligência é incapaz de perceber qualquer verdade, força é confessar que, ainda mesmo para afirmar a relatividade de todo o conhecimento, ela é suspeita.
Nada há de menos lógico, ainda mesmo para os que querem declarar a falência do espírito na procura da verdade, do que a imagem de Anatole, de um disco com cores diversas, representando as diversas verdades, e que, girando, produzisse o fenômeno da superposição das cores, dando em uma “verdade branca”, superposição de todas as verdades. Dizer que a verdade pode ser a superposição de uns tantos conceitos contraditórios é um insulto ao bom senso. Assim, duas pessoas que afirmassem, uma estar, e outra não estar uma jóia em um quarto, poderiam obter a verdade real… “superpondo” ambos os conceitos!!!
Não menos absurda é a alegoria do Dr. Loy. Segundo este, a verdade é um sol diante do qual se tivesse colocado um prisma. A decomposição dos raios solares no prisma faria com que, em cada região do globo, a verdade aparecesse com uma cor.
Segundo o referido Sr., a aritmética é uma na Índia, outra na Groenlândia, uma no Japão, outra na Hungria. A nós, não nos consta esse fato, aliás deveras singular.
Devemos concluir com melancolia nossas despretensiosas ponderações. Vemos que o neopaganismo de nossa época infiltrou-se na ciência por tal forma que o bom senso é conspurcado, e que os próprios conhecimentos os mais elementares são altivamente negados por pessoas de incontestável renome e valor intelectual.
E não poderia deixar de ser assim! Negaram os filósofos do século XVIII a Fé católica em nome da razão, cujo culto a Revolução Francesa quis estabelecer. A evolução do mesmo movimento revolucionário fez com que se acabasse negando a própria razão, para ficarem… escombros, que é o que vemos por quase todos os lados.