Santo do Dia, 28 de fevereiro de 1981 – Sábado
A D V E R T Ê N C I A
Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.
Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
[Continuação do “Santo do Dia” do sábado anterior (Nada melhor para conhecer o indivíduo do que se conhecer bem as nações) em que foram analisadas diversas nações da Europa, mas havia ficado faltando a Alemanha]
Já que falamos com tanta amizade ao longo dessas reuniões de sábado à noite, deixai-me dizer-vos que uma das coisas que em minha vida, já longa, mais me custou adaptar foi exatamente o modo de ser… dos meus caros “enjolras” [geração mais nova, à época, dos que tinham entre 16 a 30 anos aproximadamente, n.d.c.]. Eu tinha assim um pouco a sensação de uma pessoa – para usar de uma comparação pernambucana – que montou uma loja para vender garapa, caldo de cana, e depois os fregueses passam e querem chupar a cana e não a garapa. De maneira que ele fica com a moenda inútil, fornecendo pedacinhos de cana! Assim, as memórias servem para a gente elaborar um pensamento e pensamento a gente dá na conferência. É garapa. A recordação passa pela moenda e produz um caldo. Esse caldo é o pensamento.
Eu tenho muitos diletos consumidores da cana, antes da garapa, quer dizer, as memórias antes da reflexão. Mas eu já compreendi, e na reunião de ontem eu externei isso, que um modo de interessar na garapa é começar chupando cana. Depois se acaba bebendo garapa…
Então, eu, de bom grado, me adapto ao sistema de exposição que os senhores pediram e tanto quanto possível arranjo um meio de introduzir dentro disso as ideias gerais que é interessante, é oportuno que eu coloque ao vosso alcance a propósito do assunto que os senhores pediram. Então, vamos para as memórias.
* Motivo pelo qual a Mãe de Dr. Plinio, Da. Lucilia, contratou Fräulein Mathilde Heldmann: “Num ponto não farei economia: é na educação de meus filhos”
Eu já disse aos senhores que a Fräulein Mathilde entrou em minha casa, porque sendo minha mãe muito doente, sobretudo nas primeiras décadas de minha existência, ela não tinha meios, energias etc., para educar à minha irmã e a mim. E a Fräulein foi contratada em Paris e para esse efeito trazida da Alemanha para cá, para esse efeito também.
Minha mãe, sempre com recursos pecuniários moderados, dizia isso: “Eu num ponto não farei economia: é na educação de meus filhos. Eles terão o que for preciso!” E ela tomou uma Fräulein de primeira ordem em Paris para trazer para nós. Realmente, eu não posso quase imaginar uma Fräulein, portanto, algo que corresponda ao curso primário e algum tanto do curso secundário para um homem e alguma coisa do tipo curso primário e secundário inteiro para meninas – eu não posso imaginar pessoa mais competente, mais inteligente e mais capaz de influenciar os seus alunos do que foi a Fräulein Mathilde. Ela foi excelente!
* Como era o método educacional da Fräulein Mathilde e as famílias que ela já havia servido
Ela tinha, como todas as pessoas – não sei bem se isso é uma característica dos austríacos, mas é certamente uma característica dos alemães –, ela tinha muito gosto em aconselhar. O tempo inteiro ela estava pensando, elucubrando e dando conselhos: “Faça isso, faça aquilo, faça aquilo outro.” E com um senso de adaptação ponderável, ela que educava em casa três crianças – minha irmã, a mim e a uma primazinha que morava em casa – ela adaptava isso ao modo brasileiro e aprendeu – e os senhores verão uma revanche no que vou dizer agora -, ela parece ter aprendido instintivamente que para firmar a influência dela era preciso ela contar histórias.
Então, para justificar os conselhos dela e a orientação que ela tinha o empenho – financeiramente desinteressado – em nos dar… Para ela, o que dava nós acertarmos nisso ou naquilo, pouco incomodava, contanto que ela ganhasse o ordenado dela, estava liquidado [o negócio]. Mas tinha empenho em nos formar de um determinado modo. Ela compreendeu que era preciso contar histórias. Então contava histórias dela, da casa dela, do lar dela, da familiazinha bávara. Eu, naturalmente, sempre bom garfo, perguntava das comedorias. Ela explicava como eram as comedorias etc., etc.
Ela era de uma cidade, não era de Munique, que é a mais importante das cidades da Baviera, mas era uma cidade próxima que teve importância histórica, realizaram-se ali Dietas etc., era uma cidade do ponto de vista artístico muito recomendável. Não tanto quanto Munique que é uma metrópole artística, mas muito recomendável: Regensburg. Regen quer dizer, chuva; burg, cidade. Regensburg, cidade das chuvas. Tem um famoso relógio com aquelas figurinhas que toca, aquela coisa e tal.
Minha irmã quando esteve na Europa, mais de uma vez, já morta a Fräulein Mathilde, esteve em Regensburg para conferir as descrições da Fräulein Mathilde e visitou a família da Fräulein Mathilde que ainda tem uma irmã viva com quem minha irmã se corresponde regularmente. E que manda notícias dela.
Os senhores veem como pegou essa educação a fundo.
Bem, ela contava histórias, histórias, histórias. Depois, ela contava também histórias do tempo em que ela foi governante em outras casas. Então, duram casas durante algum tempo no Uruguai, de uns ingleses muito ricos que tinham negócios no Uruguai, e ela era governante desses ingleses. Depois, da família de duas meninas da aristocracia inglesa chamadas Glads e Monona. Se eu conversar um pouco com minha irmã, eu ainda me lembro uma pilha de casos da Glads e da Monona.
Depois, uma família da nobreza francesa chamada Deauvigné. E a Fräulein insistia muito: “Não é d’Aubigny, é d’Aubigné. Um dia vocês entenderão por que é. Agora vocês são muito crianças para saber.” E eu pegava aquilo e pensava: “É d’Aubigné e não d’Aubigny! Mais tarde eu saberei por quê.” Depois eu soube por quê. Bem mais tarde. A Fräulein já se tinha perdido nos nimbos da história.
D’Aubigné é a família da marquesa de Maintenon, segunda esposa de Luís XIV. D’Aubigny é uma família da mediana nobreza. E as meninas dela eram D’Aubigné. Depois tinha umas meninas polonesas. É toda uma história! Ela correu o mundo!
Então ela contava história de tudo isso. Agora, por feitio, por temperamento, por inclinação etc., eu sempre, desde que eu me lembro de mim mesmo, enormemente propenso a prestar atenção nas psicologias e ambientes. De maneira que ela me contava aquilo tudo e eu prestava uma atenção enorme em como eram as pessoas e depois que ambiente aquilo constituía, e no que é que aqueles vários ambientes eram parecidos ou diferentes do ambiente em que eu vivia. E, assim, desde pequeno, pelas diferenças de ambientes sobre os quais ela falava – ambientes, costumes, civilizações –, eu ia pré-elaborando remotamente, mas ia pré-elaborando.
* O modo de ser da Fräulein e os contrastes Brasil-Alemanha
E nisto não tardou – naturalmente a carga mais forte que ela trazia era alemã, ela não falava muito da Áustria. Eu tive minha atenção chamada para a Áustria depois. Ela falava muito mais do mundo germânico nascido com Bismarck, quer dizer, Prússia, a Alemanha, Wurtemberg, Saxen, Baden e a Renânia, era o essencial. A Áustria ficava meio lateral.
E, polo: Prússia. Ela não dizia, mas a gente via que o polo era a Prússia. E eu ia notando todo o modo de ser dela, o jeitão etc., e vendo o contraste com jeitos brasileiros e formou-se no meu espírito o contraste Brasil-Alemanha do qual resultou uma coisa, a meu ver, curiosa. Os senhores dirão: “Por que é que eu estou falando tanto de mim?” Os senhores pediram!
Uma coisa curiosa é a seguinte: de dentro dos meus olhos brasileiros, eu fiz uma análise própria da Alemanha que desde o tempo de menino até hoje não foi desmentida. Foi sendo ampliada, completada, ajeitada etc. Não foi sendo desmentida. Mas a partir dos prismas alemães que a Fräulein punha, fui fazendo uma análise do Brasil. E as coisas foram se encontrando. De maneira que se não fosse em função de determinados – eu sei que há aqui há muitos descendentes de alemão, não me queiram mal, a coisa é assim: se não fosse em função de certos defeitos dos alemães, eu nunca teria descoberto certas qualidades do Brasil, que nós mesmos aqui não prezamos tanto quanto devemos. Mas se não fosse em função de certos defeitos do Brasil, eu nunca teria visto tão bem certas qualidades da Alemanha! Quer dizer, isso se entrecruzou e eu poderia ainda desdobrar esses entrecruzamentos se não fosse dar à matéria um vulto, um tamanho que ela não merece.
Formaram-se assim dois pontos de comparação, acima dos quais, intacta, estava a admiração pela França, que eu apenas de soslaio comparava um pouco com a Alemanha, comparava um pouco com o Brasil, mas era como um astro. Na terra se pode discutir, pode lutar, a estrela assiste de cima!
* O permissivismo – um dos defeitos do brasileiro – teve por origem a bondade entendida de modo errado
Para termos bem em vista isso e, portanto, a análise da Alemanha e mais tarde a do Brasil, que vós me pedistes há pouco, é preciso tomar em consideração o seguinte: nós chamamos na nossa linguagem corrente de “permissivismo” a atitude de temperamento, a atitude de espírito e a convicção moral – portanto, filosófica, porque a moral é uma parte da filosofia – de que se deve deixar as pessoas fazerem tudo. Não se deve traçar à pessoa regra nenhuma. A pessoa faz aquilo de que ela gosta. No campo médico o permissivismo tem um nome: freudismo. No campo moral ela tem outro nome: liberalismo, ou, se quiserem, anarquismo. E já passamos do campo moral para o campo político, mas a ausência de toda lei, de toda regra, é a característica do permissivismo que os senhores veem que campeia por aí como os senhores sabem.
Mas, uma pergunta que me poderia ser feita – eu volto à Alemanha e à Fräulein daqui a pouco, mas eu, de passagem, preciso introduzir doutrina – uma pergunta que me poderia ser feita é se o permissivismo pulou de dentro da caixa, de dentro da realidade como um boneco de mola pode pular de dentro de uma caixa, ou se ele mesmo foi gerado, se ele mesmo foi preparado anteriormente. E aqui os senhores têm dois polos.
A Alemanha é um país que está entregue ao permissivismo. O Brasil vai, em matéria de permissivismo, como os senhores veem. Qual foi a origem do permissivismo na Alemanha e qual foi a origem do permissivismo no Brasil? Para chegarem ao mesmo ponto, como é que chegaram? Por que vias?
O permissivismo no Brasil teve por origem, o pai, ou se quiserem – uma vez que o substantivo é feminino – por mãe, a bondade! Eu sei que a afirmação choca, mas é assim. “Coitado! É preciso ter bondade, misericórdia! Ah, deixa, afinal deixa passar! Não senhor, não incomode etc., isto é o espírito cristão…” A expressão que eu não sei se passou para a geração dos senhores, alguns mais antigos aqui terão alcançado ainda: “deixa correr o marfim”. Deixa tudo correr para onde quiser etc., em nome do “bom coração”.
O homem de bom coração era o homem que permitia tudo, não em nome do princípio de que tudo deve ser permitido. Esse é o princípio novo. Naquele tempo não se achava, mas dizia-se que nada deve ser punido. A gente deve dizer: tal princípio vigora. Não se deve, por exemplo, roubar. Ou não se deve, por exemplo, comer com os dedos. Esse é o princípio. Mas se um roubou… Pobre coitado! Sabe-se lá que necessidade ele teve para roubar? Deixa passar! Se outro comeu com a mão, a gente dirá: “ele é um pouco extravagante, mas é tão evidente que ele andou mal que daqui a pouco ele se arrepende e vai comer direito com faca e garfo!” Bondade, bondade, bondade!
E, em nome dessa bondade, eu via nos ambientes tradicionais que eram os meus, muito frequentemente as regras mais fundamentais, mais vincadas, mais marcadas, irem não sendo negadas em tese – alguns as negavam, mas eram os extravagantes – a média das pessoas não negava, mas não afirmava as regras. Elas ficavam assim meio pairando no ar. E tolerando toda espécie de violação da regra em nome da bondade: “não, sejamos bons, tenhamos compaixão, nunca falar mal de ninguém, tenha alguém feito o mal que fez, não se fala mal porque é falta de caridade. A caridade consiste em ver só as qualidades dos outros, não ver os defeitos dos outros etc.”
Então, a moral, a educação, até a gramática, o português, o modo de pronunciar as palavras, o modo de conversar, tudo se erodindo, se esvaindo, os vocabulários se empobrecendo, os erros de português invadindo o vocabulário como erva daninha, as más maneiras substituindo as boas maneiras antigamente, mais ou menos como a joia falsa pode inundar o mercado e roubar clientes das joias verdadeiras. Continuamente assim. No fundo o raciocínio era o seguinte: cumprir uma regra pode ser desagradável; alguém fazer algo desagradável é sofrer; fazer alguém sofrer é maldade; logo, ninguém reclama o cumprimento de nenhuma regra e está acabado. Isso era a “bondade”!
Daí veio depois o permissivismo que diz: não há regra. Primeiro a regra é impune e depois a gente declara: não há regra e está acabado!
Agora, esta atitude perante a bondade, ou este modo evidentemente errado de entender a bondade – não vou aqui refutar isso que foi mil vezes refutado aos senhores [vide, por exemplo, Uma deformação romântica da caridade: “o bom coração”]– esse modo errado de considerar a verdade, encontra uma tal ou qual consonância com o temperamento brasileiro. O brasileiro é afetivo, é desinteressado, é acolhedor, é afável, gosta de querer e de ser querido. E normalmente, salvas situações excepcionais, tem horror à briga. Quando o brasileiro é briguento, ainda é menos briguento do que um estrangeiro do mesmo tipo, do mesmo gênero. De maneira que é a nação da não-briga. Nós gostamos da vida calma em que todo o mundo se entende sem bagunça, onde tudo dá num acordo. Nós gostamos disso.
* O ambiente criado pela Fräulein era o contrário do permissivismo brasileiro
E eu via no ambiente da Fräulein o contrário disso! A regra saliente, a regra protuberante. Já o modo de chamar atenção, se por exemplo eu fazia alguma coisa errada, não era “Plinio”, mas “Pliniô!!!”
Eu já tocava todos os alertas… já sabia… Já sabia que qualquer coisa não estava direito! Depois:
– Você fez tal coisa assim?
– Sim, senhora, fiz.
– Está bom. Então tal castigo assim.
Castigo físico, nunca! Mas era privar de certa coisa para comer, ao que eu era sensibilíssimo. Outras punições do gênero. E os casos que ela contava, giravam em torno de uma constante – tudo que ela contava girava em torno de uma constante: havia um dever a cumprir e a pessoa que ia cumprir o dever foi mole. Resultado: como foi mole porque não era gostoso cumprir o dever, então deu mal resultado, a pessoa levou na cabeça! [Isso] na vida terrena. Ela não era de falar do Céu, da vida eterna, isso eu aprendi com mamãe e no colégio São Luís, nas aulas de Catecismo na igreja de Santa Cecília.
Com ela, não. Ela se dizia católica, mas era xoxa e pifiamente católica. Mas ela era portadora de uma tradição que em muitos aspectos mil anos de civilização católica tinham formado. De maneira que andava nos trilhos bons aquilo.
E sempre acontecia que era depois um comentário depreciativo para com a pessoa mole que não teve a lógica, não soube prever, dispor dos meios e arrancar de si a força para pam! tocar para a frente.
Os casos corriam em torno disso. Era isso de um jeito, de outro, de outro, era isso. Era a coerência e a força de vontade que exigiam do homem – eu empreguei a palavra na Reunião de Recortes hoje à tarde – uma “leistung” [energia, performance]. É intraduzível para o português. Exigia uma “leistung” em que o homem se deitasse inteiro. Esse era um homem! O resto era um mole, um desprezível, um tipo que fracassará e cumulado de todo o nojo do universo! Onde é que se viu um mole!
* Vendo o contraste moleza-energia e como os moles eram os armazéns de pancada da vida, a opção pelo esforço, pela energia e pela lógica
Eu ouvia aquelas narrações e, naturalmente, filosofava. O primeiro obstáculo era que eu era mole. Muito, muito mole! Eu fui uma criança ultra mole. Não, não se iludam. Eu dizia: “O que essa mulher aqui está exigindo é uma vida dura como tudo, porque como é que eu vou pegar essa moleza toda e pôr isso em movimento como ela está indicando?” Mas, de outro lado, eu não deixava de perceber que ela tinha razão a respeito dos fracassos da moleza. E se em vários pontos o meu modo de ser originário, nativo, me desservia, num ponto servia: é que o que eu achava desejável, dentro de toda a minha preguiça de obter, eu queria mesmo; e o que eu achava indesejável eu não queria!
E eu não tardei a me colocar diante dos olhos a ideia seguinte: em última, última análise, ou eu vou ter uma vida lutando continuamente contra a vida para acabar tendo o que eu quero, ou eu vou ser um armazém de pancada da vida, e levo a vida que eu não quero. Aqui, num prato da balança está a moleza, no prato da balança estão a lógica e a energia. No plano terreno – o plano sobrenatural entrou um pouco depois –, no plano terreno qual é a pior vida? Do esforçado que toca seu barco para onde quer, ou do moleirão que se deita, mas o barco vai parar não se sabe onde? Eu dizia: “Não, no fundo, ainda é melhor ser esforçado. A Fräulein tem razão. Mas então …
… prestar muita atenção em todo modo de ser alemão, nas menores coisas, porque me vem lições que sem eu pretender o ridículo de bancar o alemão ou de ser um alemão – o que é ridículo. Absolutamente! Depois, não há razão para isso. Quando se é alemão não há nenhuma razão para esconder; mas não há nenhuma razão para alguém fingir que é alemão. Eu sou brasileiro, acabou-se! Mas há coisas dessas que se podem adaptar e incrustar na mentalidade brasileira.
Vamos avante porque isso é que é preciso fazer!
* O agreste da língua alemã e as mil suavidades da língua francesa
Algumas pequenas impressões, por exemplo, a respeito da língua alemã. Eu falava alemão correntemente. Como falo português hoje, eu falava alemão. Depois deixei de falar por falta de interlocução. Minha irmã fala ainda alemão correntemente. Ela fez ensinar alemão à filha, fala com a filha etc., ela domina inteiramente o alemão, mas eu não domino.
Eu falava alemão e via as palavras alemãs, e via os meus compatriotas acharem o alemão feio, e diziam palavras duras, ásperas, cheias de consoantes, com poucas vogais, dá a impressão de agressivas. A gente tem a impressão do exército alemão marchando em passo de ganso por cima da pobre França e esmagando papoulas, [brues?] e trigais no caminho, assim é a língua alemã nos ouvidos brasileiros.
O brasileiro gosta da língua flexível, sonora… E eu estou dizendo soonoooraaa exatamente como nós gostamos, com muitas vogais, com as vogais bem abertas, ninguém diria “abêrtas”, mas “abértas”, e daí para fora. Das línguas do Ocidente, eu creio que poucas terão as vogais tão abertas quanto no português e eu noto que eu abro muito minhas vogais. Eu nunca fiz um propósito disso, mas abro muito as minhas vogais. Elas são escancaradas! Para essa língua, que aprecia – sobretudo os escritores mais recentes – a frase breve, ordem direta, o pensamento claro, fácil de pegar, a palavra alemã e a frase alemã são de um modo completamente diferente. Porque a ordem é muito frequentemente inversa e as palavras são muitas vezes compostas. De maneira que com duas ou três palavras que querem dizer um, dois, três, eles compõem uma outra coisa que quer dizer uma outra história.
Eu me lembro de dois exemplos que eu tenho ideia de já ter dado aqui aos senhores. Mas enfim, lá vai, porque no momento é do que me lembro. Schnurrbart. Schnurr, com dois “erres” se não me corrigir o meu Andreas, quer dizer barbante. [Bart] é barba. Com os conceitos de barbante e de barba eles compuseram o conceito de bigode. Então, bigode é “Schnurbart” com um “erre” só. Uma das vogais caiu. Mas “Schnurr” é barbante, e “Bart” é barba. Então, se nós tivéssemos que dizer uma barba de barbante, diríamos uma barba de barbante. Eles dizem “uma de barbante barba”. Então, para dizer “um bigode”, o pensamento deles é: “um de barbante barba”.
Os senhores estão vendo que é outro mundo! É outro mundo que eu aprecio …
… para nós soa como uma acrobacia. Agora, os senhores tomem uma palavra que uma vez eu vi escrita num anúncio e nunca mais me saiu da cabeça: “Dampfschiffahrtsgesellschaft”.
Se houvesse um quadro negro, eu pediria para o Andreas escrever isso. Forma uma palavra só. Em português isso se decompõe em várias palavras: “Companhia de navegação a vapor”. Mas com isso eles compõem uma palavra só. Mas que começa pela ordem inversa, porque Dampf é vapor, Schiff é navio, Fahrt é navegação, Gesellschaft é sociedade. Então, uma companhia de navegação a vapor é: uma a vapor de navegação sociedade… os senhores estão vendo…
As frases são muito frequentemente compostas em ordem inversa também. De maneira que em vez de vir sujeito, verbo, objeto direto ou indireto e advérbios, a coisa é de outra maneira. Vem um advérbio, depois vem o verbo, depois etc., e no fim está o sujeito.
Por exemplo, em português se diz: “Você não quer fazer isto?” É o normal. Resposta: Willst Du es nicht machen? Quer você isto não fazer?” A coisa gira noutra direção. E eu poderia dar cem exemplos do gênero. E o modo de manusear a língua, de utilizar a língua é como o latim: tem nominativo, genitivo, dativo, acusativo, vocativo e ablativo. De maneira que pela declinação da palavra, que está no final da palavra, se compõe a frase. Não sei se os srs. estudaram o latim, as várias declinações, rosa, rosae, … aquilo.
E eu entendi que isto que eu sentia em torno de mim atacado como feio, tinha uma bonita força, ou melhor, uma forte beleza. É preciso dizer – não me queiram mal meus alemães –, um tanto rude, um tanto agreste. Não é flor de jardim, mas é pinheiro do mato, da floresta. Espetado, verde, alto e combativo! Mas que era a beleza de um povo entusiasta da regra, entusiasta da lógica, entusiasta da força de vontade, e por causa disso, jogando com as palavras, compondo, fazendo de cada palavra uma definição de sentido, invertendo a ordem das frases para elas darem mais caldo, mais suco e serem mais fortes. Tudo força, tudo energia, ênfase e resolução.
E eu entendi que esse mundo – eu não pronuncio Dantzchiffwartengeselft bem. E, se meu Andreas que é o único alemão de falar alemão que eu estou vendo aqui no auditório, não me quiser mal, eu acho que na Áustria os austríacos que eu tenho visto, não pronunciam essas coisas à maneira que a Fräulein Mathilde pronunciava. Com o gosto de bater em cada consoante e falar não Dampf, mas Dampft – pft! Dampft. Logo depois do dampft, schiff, fahrt, Gesellfshafft. Sentirem os dois “elles”.
A beleza agreste disto me encantava e me entusiasmava. Não impedia que depois eu não me derretesse com as mil suavidades – bem inteligentes e finas como lâminas de cristal – da língua francesa. É outra questão! É uma outra questão.
* Ao invés de tomar partido na briga entre França e Alemanha, Plinio procurava assimilar o que de bom havia nestes dois povos
Mas vejam bem: no ponto de observação das duas línguas, e das duas culturas e dos dois modos de ser e da secular briga entre os dois povos, estava um, alheio a esses dois povos de origem exclusivamente brasileira. Sem outríssima coisa senão isso. E, portanto, de fora da briga. Fazendo o que está no nosso temperamento brasileiro. Tomando de cá, de lá, isto é bom, aquilo não é. Incorpora o que gosta, afasta o que não gosta e não opta, aplaude ambos os lados bons. Então, eu pensava com os meus botões: um espírito onde coubesse admiração por ambas as coisas e que soubesse tirar o suco de ambas as coisas, este espírito estaria acima delas duas.
Eu não me dava conta, foi só depois que eu percebi que esse espírito pode ser o espírito de todos os brasileiros, que o brasileiro tem espírito assim. Não é só brasileiro. É todo hispano-americano. Com modalidades diferentes, com modos de ser diversos, a América Ibérica é apta a isso.
Mas eu estou falando da Alemanha. Eu ouvia comentários de alguns brasileiros intoxicados pela propaganda contra alemã da I Guerra Mundial e que diziam – às vezes ela falava conosco, eu ouvia comentários: “Olha que língua rude, isto aqui parece uma língua de bárbaro.” Eu prestava atenção naquele e dizia… Nem precisa dizer a resposta! Entrava no fundo o gosto da palavra sonooooraaaaa, agradável, melódica, eu sei bem, mas entrava também a preguiça daquele esforço varonil, sem o qual nenhuma nação chega ao teto de si mesma. Então, aqui precisa corrigir, vamos lá! Toca para frente!
Isso me levou a prestar atenção nas várias coisas que ela apontava, mas também eu comecei a prestar atenção em narrações históricas alemãs – eu lia o alemão correntemente – e algumas coisas francesas não anti-alemãs. Mas também algumas caçoadas que os franceses faziam da Alemanha e que no fundo eram às vezes caçoadas de defeitos, mas às vezes eram caçoadas de qualidades. Eu prestava atenção: “Está vendo?! Aqui é a francesada que está atacando neles uma coisa que é uma qualidade. Até lá não vou, nessa crítica não embarco. Toco para frente.”
* A Prússia
Acabei percebendo que o foco dessas qualidades que eu admirava estavam na parte da Alemanha que eu não admirava: era a Prússia! A Baviera, muito simpática, muito encantadora, artística ao último ponto, “Gemutlichkeit” [aconchegada] o quanto pode ser, terra das comedorias excelentes! Mas não a terra do heroísmo, não a terra da força de vontade até arrebentar.
E eu dizia: “Não, o foco desse espírito enérgico, batalhador etc., etc., é a Prússia. É algo da ambientação da Prússia que marca na Alemanha essas qualidades que eu aprecio tanto.”
Entretanto, não se pode negar, gosto duvidoso, diplomacia nula… Nula! Diplomacia, para usar uma frase francesa não contra eles, mas em tese – é um verso de Molière, um daqueles grandes fabulosos franceses: “Ôte-toi de là pour que je m´y mette – Tire-se daí para que eu me ponha!” É a diplomacia. “Eu quero esse lugar, você saia daqui, e eu vou ficar aqui. Se você não quiser, pancada! Por isso eu tenho tais fábricas, tais isso etc., e te esmago!” Isso como diplomacia não funciona… Isso é bom para um lado. Não é para outro. Vamos devagar… As coisas não são essas. Depois, há uma coisa chamada energia, mas há outra coisa chamada inteligência. E na inteligência há uma coisa chamada sutileza. Pulchro, admirável. O que eles fazem disso?
Pinheiro. É muito bonito o pinheiro, mas se o mundo todo só tivesse pinheiros, que desolação! Está bem, isto é para lá, muito belo etc., mas…
Depois, sobretudo, e é a acusação. Então com “A” maiúsculo, quase que por hipertrofia e para marcar ainda mais esse “A” maiúsculo eu poria um “ha”, “hacusação”! Máxima, os senhores estão vendo bem. É o foco do protestantismo na Alemanha! Portanto, a primeira heresia, pecado com o qual não se transige, levantaram-se contra Roma, negaram o papado, instituíram um livre exame que é o caos, que é marmelada, afundaram-se nisso, expandiram isso pela Europa inteira. Portanto, deste lado censuráveis o quanto se pode ser.
E uma outra objeção: na Alemanha que eu conheci, a Alemanha de que eu ouvia falar, de que eu lia era a Alemanha fabulosa dos cavaleiros da Ordem Teutônica, que saíam a cavalo para converter o mundo báltico.
Bem, e no meu tempo, mania de pensamento laico e meramente científico, de ciências positivas e naturais. Por causa disso “quadrados” [espírito geométrico”, n.d.c.] e só reconhecendo como verdade o que é evidente.
Por causa disso também, quando se metiam em filosofia – porque eles só reconhecem o que é evidente – os filósofos deles só admitem como verdadeiro aquilo que eles percebem que pensaram, porque para cada um é evidente que ele pensou tal coisa. Se, por exemplo, agora eu pensei: “eu tanto poderia ser quanto não ser, é evidente para mim que eu pensei isto”. Então, lá vem a filosofia deles: sem cogitar se eu poderia ser ou não ser, para mim tem uma evidência: “É que eu pensei que eu poderia ser ou não ser! E a partir disso…” Não! Tenha paciência!…
Então, passa do “laborrrratórrrio” … com quinhentos “Rs”… É o caos mental! Eu tenho… não é “minhas reservas, todas as reservas, todas as distâncias e todas as objeções.
Mas, de outro lado, como gostei quando soube que uns dez por cento da Prússia se conservou católica e que desses dez por cento que se conservaram católicos, foram os católicos mais contra-revolucionários da Alemanha no século passado! Apreciável! Ali tem um filão!
Não sei se os senhores percebem aí o “balancé” [equilíbrio].
* A organização germânica quase inocente do dia a dia
Uma outra coisa que me agradava muito, no ambiente europeu em geral, mas no ambiente alemão de um modo particular, era o seguinte: o ambiente do alemão pequeno burguês ou médio burguês, do tempo que eu conheci a Alemanha – do alemão da Fräulein Mathilde que era uma pequeno-burguesa – era completamente diferente. E, ao lado das imoralidades que os senhores podem imaginar, uma organização quase inocente da vida de todos os dias. Uma casa pequena que tem cortininhas muito bem arranjadinhas, presas dos dois lados, de pano barato, comum, mas com cores alegres, com seu vidrinho bem limpo, do lado de fora um pote de gerânios que sorri ao verão que está iluminando. Ou se é o inverno, amanhece, em dia de neve o gelo formando certas figuras geométricas ou certas flores no vidro. Venezianazinha verde conservada sempre bem pintadinha, cuja fechadura não range, mas abre e fecha bem direitinho.
Dentro, uma lareira com aquela madeira bem serrada, direitinha. Numa gaiola um passarinho. Mas quando chega a hora do passarinho dormir e as pessoas ainda não foram dormir, há uma espécie de pano para colocar em cima e o passarinho entra na noite antes das pessoas. Mas é um pano é bonito, a coisa é organizada, lava-se, renova-se, a gaiola do passarinho é limpíssima, tem alpiste de primeira qualidade, e o dono da casa ou a dona assobia e o passarinho responde, tem um certo diálogo com o passarinho. No canto está um instrumento que o filho toca. É um violininho, uma coisa qualquer e a Gretchen, irmã dele, também canta qualquer coisa assim e os pais ficam derretidos, se olham etc.
De dentro entra um bom odor. Está sendo preparado um pão. É a terra dos pães! E eu que faço regime e estou morrendo de fome tenho transportes… pensando nos deliciosos pães de todos os gêneros que fazem lá. A Fräulein Matilde elogiava: Milchbrötchen “de leite pãezinhos!” — que parece que Regensburg tinha em quantidade.
Todo esse interior que os mil pequenos prazeres da vida, o dono da casa que chega já tem uns chinelões, meio chinelo, meio sapato que ele calça, a mulher leva para dentro os sapatos dele. Uma poltrona que é só dele, um cachimbo que ele fuma, então vem o jornal dele, ele lê aquilo, comenta um pouco com a senhora que durante o dia se preparou -– porque é a terra das preparações, não tem improvisação –, ela se preparou para a conversa dele. Aconteceu qualquer coisa, ela conversou com as amigas para estar à altura da conversa dele e levar uma contribuição. E ele fica contente quando a mulher dá uma ideia que não tinha passado pela cabeça dele. Olha lá!…
É um ambiente tão único, em que os prazeres inocentes da vida de tal maneira perfumam que eu nem saberia bem dizer aos senhores…
Eu gosto dos outros países europeus: Portugal, Espanha, Itália, Inglaterra, o que quiserem. Assim, essa vidinha cintilante do pequeno burguês eu não notei em nenhum lugar. É uma maravilha da velha Alemanha. E foi ali que pegou o Stille Nacht, Heilig Nacht. É o Natal desta gente. Se tornou o Natal do mundo! O Natal tem presepinho, sobre a lareira ali pode haver uma imagem de Nossa Senhora impressa em papel ou, conforme o lugar, esculpida em madeira, qualquer coisa assim. Uma beleza, essa vidinha!
Estou falando isso, os senhores percebem que eu descrevo isso com um encanto! Se os senhores querem o ápice da França é, por exemplo, Chenonceaux, do qual se poderia dizer o que se disse de Fontainebleau: “qui porte sur son nom la beauté des eaux – que traz no seu nome a beleza das águas”. Não tem dúvida. É a França dos castelos.
Na Alemanha cada classe social tem o ar de si própria. Desde o junker, e há um tipo de Junker -– Junker é o gentilhomem prussiano – tão agreste que eles chamam Kräuterjunker – um Junker da erva. Mas é daqueles!
Bismarck era mais ou menos um [Kelkerjunker?]. Cervejão, sanduíches, camadas de manteiga fresca da qual não se tem ideia aqui, e dentro várias coisas, em andar. Morde aquilo!… Conversando com o interlocutor muito seriamente sobre política, filosofia, ou então os dois cantando. Podem ser dois velhos, cantam e lá vai! É um veio.
Então, desde o Junker ou desde o Kaiser até o último pequeno funcionário público, que tem seu lugar num alveolozinho com cortininha, com tudo… de um esplendor. O conjunto disso é o píncaro da Alemanha!
* A Alemanha do dia a dia quase inocente ia morrendo e surgia a Alemanha modernizada
Mas havia a Alemanha modernizada ao lado. A Alemanha das fábricas, a Alemanha das máquinas, a Alemanha da organização no corre-corre que já postulava a Alemanha dos arranha-céus, a Alemanha dos fichários, a Alemanha do anonimato; a Alemanha do Hitler já estava se remexendo para entrar dentro disso. A velha Alemanha morria e a nova Alemanha nascia.
Uma mania de limpeza levada ao ridículo. Limpeza, está muito bom. Mas nem tudo deve estar tão limpo que é como se tivesse sido limpo na hora.
Eu li nas memórias de uma Infanta Espanhola. Ela conta a viagem dela à Alemanha. Ela foi convidada pelo Kaiser. O Kaiser convidou-a para ver Berlim bem cedinho, antes de começar o [dia] -– aliás, eminentemente berlinense -– limpavam toda a cidade. Então ainda não havia essas lixeiras horríveis de hoje, eram umas escovas enormes giratórias. Limpavam toda a cidade. Um pouco depois de limpa toda a cidade começava o horário para todo mundo ir para o trabalho, de maneira que entrava na cidade limpa. E o Kaiser convidou a infanta Eulália para irem num carro puxado a cavalos, portanto — numa velocidade pensativa e não numa velocidade imbecil e irrefletida — para verem Berlim antes de entrar gente. Bem, ela conta que ele tinha uma tal mania de Berlim limpa, que aconteceu umas duas ou três vezes dele descer do carro e ele mesmo apanhar no chão, jornal que tinha sido zupado na rua.
O nosso Francisco José [imperador da Áustria, n.d.c.] não faria isso, nem passava pela cabeça! Mas era a Alemanha da limpeza mecânica, da coisa já levada ao delírio, ao exagero; como não deve ser. A coisa como não deve ser! Era a Alemanha do Hitler que começava.
* “Seu modo de escrever o português reflete uma influência alemã”
No total, uma imensidade de coisas para aprender e algumas para assimilar. Quando eu era homem feito, já tinha feito uma parte de minha carreira, um falsa direita aproximou-se de mim e disse o seguinte: “Me diga uma coisa: você estudou alemão?” Ele me perguntou como se fosse a coisa mais confidencial, como se pergunta a alguém se toma tóxicos ou coisa assim! Eu, com bonomia: “Sim, estudei”. “Ah! então descobrimos” – quem são os outros não sei. Eu disse: “O quê?” Ele disse: “Seu modo de escrever o português reflete uma influência alemã, porque você aprecia muito a ordem inversa.” Aí é que eu fui ler algumas coisas que eu escrevi e vi que era verdade. Ainda estava no fundo o gosto pela língua alemã. Tão fundo entrou.
* Nas viagens à Europa da década de 50, a conscientização do valor que há em ser brasileiro
O que eu aprendi de apreciar o Brasil? Eu só conscientizei isso quando fui à Europa, em 50, 52, 59 – foram três viagens que eu fiz à Europa – em que eu viajei pela Alemanha e conheci o tric-trac das coisas. Aí é que eu compreendi o que é que é o voo de espírito brasileiro, a rapidez de pegar, a elasticidade, a facilidade da conjugação dos pensamentos, o “dégagé” [desembaraço, agilidade] – numa palavra -, e a possibilidade de assimilar para formar um todo. E aí que eu compreendi e pensei com os meus botões: “No todo, é uma grande coisa ser eles. Mas se nós soubermos continuar a ser nós corrigindo-nos e assimilando o que os outros países têm de bom, ainda é melhor ser brasileiro”. Ou seja, sul-americano. Acrescento brasileiramente…
Por quê? Porque esse voo, esse “dégagé”, no fundo, está entrando a era histórica dos povos sul-americanos. É o momento em que a gente se volta para tudo quanto o passado deixou, valoriza o quanto pode e se prepara para o futuro. E foi viajando que eu compreendi todo o valor que há em descender de uma nação 1) que nunca teve protestantismo; 2) se deixou intoxicar pela Revolução Francesa, mas não gerou a Revolução Francesa; e 3) uma nação que tem o gênio latino na sua fosforescência, na sua cintilação, incessante! E realmente é muito bom.
Meus caros, vamos para frente!
[Nota: Um teuto-brasileiro forneceu a grafia correta das palavras em alemão, bem como os seguintes esclarecimentos: na realidade “Schnurr”, com dois rr, não é barbante. Significa “ronronar”, como o faz o gato quando dorme, e vem do verbo “schnurren”. Barbante seria Schnur, com um r só. O termo (depreciativo) usado para o Junker é Krautjunker. Kraut significa repolho e era para dizer que é um pequeno nobre do campo, que só tinha para cuidar a horta. Kraut também é usado para designar o chucrute. O plural Kräuter designa, aí sim, ervas, por exemplo chá de ervas é Kräutertee.]