Sede de Jasna Gora, Reunião de Recortes, 9 de abril de 1983, Sábado
A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de exposição verbal do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, e não passou por revisão do autor.
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo“, em abril de 1959.
[…] nós devemos tratar de algum tema mais teórico, mais elevado, envolvendo diretamente teoria, no sentido mais profundo da palavra. Ou aquilo que se chama teoria “secundum quid” – é teoria no fundo – a teoria da ação. Teoria de um nível mais baixo, mas é teoria ainda, que é a teoria da ação.
E, me pareceu que um ponto interessante, que diz muito respeito a nós, que diz respeito também à compreensão que a TFP deve desejar ter por parte daqueles que querem conhecê-la de um modo imparcial e com boa vontade; um tema que para nosso espírito latino de intuitivos e, sobretudo, sul-americano, e sobretudo brasileiro de intuitivos, é ao mesmo tempo muito claro, mas por ser tão claro nunca foi tratado calmamente em nível doutrinário etc., etc. é: qual é a posição da TFP entre Igreja e Estado?
Não se poderá negar atualidade ao tema. E, uma vez que o tema é um tema atual, ele cabe bem nessa reunião que é uma reunião de atualidade.
Eu tenho a alegria de falar aqui na presença de cinco sacerdotes. Poderão ajudar-nos como censores eclesiásticos e como pessoas que, além do mais, nos podem dar sugestões positivas… – eu não gosto muito da palavra “positiva” aí porque dá a ideia de que a censura não é positiva. A censura é uma coisa altamente positiva. De maneira que, poderão dar outras modalidades tão positivas de colaboração quanto é a censura, sobre essa matéria que apresenta, de fato, campo, tem apresentado de fato campo para numerosos equívocos em torno de nós.
Eu queria dizer aos Srs. preliminarmente que, pela falta de tempo, dada a vastidão da matéria eu não quis fazer propriamente uma dissertação sobre a totalidade do tema. O tema é enorme. Mas eu quis fazer uma dissertação sobre aspectos do tema. E se eu devesse dar a essa exposição um título, não seria o seguinte: Igreja e Estado: posição da TFP. Mas seria outro: “Reflexões ou algumas reflexões da TFP sobre a posição da TFP ante a Igreja e o Estado.”
Eu achei melhor escrever o esquema para que os Srs. possam acompanhá-lo mais facilmente, mas eu vejo que a letra parece um pouco miúda. Se alguém quiser mudar de lugar, trocar para ver melhor, é só me avisar. Eu pergunto, sobretudo se para os 3 [5] sacerdotes, se está clara a letra.
Eu tenho a impressão de que o tema poderia se desenvolver… Eu vou deixar agir à maneira brasileira. Eu sei como é. Pela curiosidade, precisam ler o quadro negro inteiro antes, para depois fazer a conferência… Leiam um pouquinho enquanto eu respiro.
Para pavor dos Srs. eu devo dizer que há mais dois quadros negros que devem entrar. Mas eu vou procurar ser o mais rápido possível na exposição, de maneira que os Srs. não se aterrorizem com o que vai entrar.
[Perguntam se podem tomar nota]
Pode, pode. É matéria doutrinária. Qualquer um anota, leva o que quiser, não tem absolutamente nada.
Bem, então a primeira ideia seria a seguinte, o fundo da ideia é: uma vez que a TFP toma a posição que toma perante a Igreja, a tal ponto que ela, por alguns lados, poderia ser vista, tem traços de uma congregação, de uma entidade religiosa, mas de outro lado como ela trata de matéria sobretudo temporal — mas por outro lado ainda, como ela trata esta matéria temporal à luz da doutrina da Igreja e com intuito de servir a Igreja, o fundo de quadro para se saber qual é a posição da TFP é perguntar qual é o papel da sociedade temporal nos planos da Providência. Esclarecido este ponto, deu-se uma contribuição para se compreender melhor a posição da TFP.
Então é preciso afastar alguns assuntos que eu dou por sabidos e que não vão ser analisados aqui. Por exemplo, eu não vou refutar, aqui, a tese dos maus que imaginam que nos planos da Providência não existe nenhum papel para a sociedade temporal. Isso são, primeiro, os ateus de toda a ordem que negam a existência de Deus, e, portanto, negam a existência da Providência. E acham que a sociedade temporal é uma coisa que não tem nada que ver com Deus.
Nós poderíamos apontar, no extremo oposto, uma certa tendência – não uma posição definida e cristalizada – mas uma certa tendência ao extremo oposto, que é o seguinte: Deus constituiu Sua Igreja de tal maneira como uma sociedade perfeita – que Ela é mesmo! – que Ela não precisa da sociedade temporal em nada e a vida da sociedade enquanto sociedade, não lhe interessa em nada para a realização de sua própria missão. E, portanto, o assunto não vem à baila.
São duas posições quase correlatas e ambas erradas, não se pode aceitar nenhuma das duas. Mas eu não vou refutar essas duas coisas que são evidentes, o erro que há aí é evidente. Não vou perder tempo com isso.
Depois também não vou afirmar, não vou reafirmar aqui e demonstrar aquilo que todos os bons sabem, que é o seguinte: que a sociedade temporal tem uma finalidade logística para a sociedade espiritual. Quer dizer, ela faz da terra um alojamento na qual podem viver a Igreja e os filhos dEla, portanto. E Ela não faz outra coisa para a sociedade espiritual do que faz o dono de hotel para seus hóspedes. O dono de hotel não se imiscui na vida dos hóspedes, não quer saber nada dos hóspedes. Ele, simplesmente o que faz é fornecer cama, casa, comida, roupa lavada e engomada para os que estão no hotel. O resto, cada hóspede leva a vida que quer.
Então a sociedade temporal prepararia isto, faria com que o mundo tivesse um mínimo de ordem, de fartura e de condições de existência temporal para que as almas, não pensando mais na existência temporal, cuidassem de salvar-se. Essa é uma posição evidentemente errada. A sociedade temporal não é um hotel da Igreja. Ela é mais do que um hotel da Igreja. Mas isso é tão evidente que eu não vou tratar disso.
Também não vou expor a matéria, a tese verdadeira, bem conhecida, da matéria mista. Quer dizer, é a tese clássica: a Igreja é uma sociedade perfeita. Por perfeita se entende uma sociedade inteira, que é soberana e tem até a disposição suprema de si mesma. A Igreja é uma sociedade perfeita.
A sociedade temporal também é uma sociedade perfeita nesse sentido da palavra. Agora, elas têm relações, devem colaborar para o mesmo fim. E há entre elas uma matéria chamada “matéria mista”, que são as atividades da sociedade temporal enquanto analisadas do ponto de vista moral. Desde que elas não contenham nada de pecado, elas estão completamente sob o domínio da sociedade temporal, a Igreja não intervêm. A partir do momento em que ali se manifesta algo que interessa à observância dos Mandamentos, aí a Igreja tem uma palavra a dizer. É a matéria mista.
Isso todo mundo conhece, nós todos sabemos, não vamos perder tempo desenvolvendo isso aqui.
Essas são, portanto, noções que eu pressuponho adquiridas e claras, ou rejeitadas ou aceitas, conforme as duas primeiras – rejeitadas – e a segunda aceita. Nós nos limitamos a dizer o seguinte: é verdade que a salvação eterna dos homens está à cargo da Igreja. E também certo que, por desejo de Deus, a sociedade temporal é também a organizadora de uma hospedaria para a Igreja. Torna a terra habitável pelos homens e, por causa disso, capazes de levarem a sua vida e de praticarem os mandamentos, de frequentarem a Igreja, darem adesão à Igreja, se salvarem. E que existe a matéria mista, essas são coisas que são inteiramente sabidas.
* * *
Qual é a tese para a qual eu quero chamar a atenção desde já?
A tese é a seguinte: a sociedade temporal – segundo esse conceito que eu acabo de dar aqui – se a sociedade temporal fosse uma mera “hotelaria” da Igreja, se fosse uma mera ordem de coisas que não deve pecar e acabou-se, com isso ela esgotou a sua finalidade; se fosse isto, nós não teríamos dado, não teríamos reconhecido à Igreja tudo aquilo à que a Igreja tem direito. Porque a sociedade temporal, embora uma sociedade perfeita no seu âmbito, ela existe para o serviço de Deus, e, portanto, para o serviço da Igreja. E ela tem, subordinada à Igreja, quer dizer, sujeita ao poder que a Igreja tem de ensinar, de governar e de santificar na esfera espiritual, a sociedade temporal tem uma missão, que essa missão concorre de um modo positivo e eficiente, sob a direção da Igreja, para a salvação das almas.
Não é, portanto, apenas não pecar, não é, portanto, apenas não violar os Mandamentos, mas a sociedade temporal tem uma função apostólica, uma função de serviço da Igreja. E essa função é uma alta função dela, muito mais do que a função logística. E é para entender bem essa função, quem entende bem essa função tem mais facilidade em entender a TFP. De maneira que então eu gostaria de explanar alguma coisa a respeito disso.
Para desenvolver essa tese, eu começo por lembrar, muito rapidamente, algumas coisas: primeiro, que a sociedade temporal é a obra-prima da criação visível. Não considero aqui a Igreja. Eu digo: quando Deus criou a ordem natural dentro da ordem natural, a obra-prima de Deus é a sociedade temporal. A sociedade temporal é, portanto, uma criatura excelente.
Donde é que vem o fato da sociedade temporal ser assim uma obra-prima de Deus?
Vem antes de tudo da nobreza do homem. O homem é o rei da criação. Sendo o rei da criação, ele evidentemente… a sociedade temporal que se compõe desses reis é mais excelente do que cada rei individualmente falando.
Se Deus, considerando o Universo, viu que cada coisa era boa e o conjunto era ainda melhor; considerando cada homem, cada homem tem a excelência de sua natureza, dados os descontos do pecado original, evidentemente. Mas, o conjunto dos homens, que vem a ser a sociedade temporal, é mais excelente do que cada homem individualmente. E se o homem é o que há de melhor na criação, dentro da ordem humana o que há de melhor é a sociedade temporal, considerada enquanto suprema. Ou seja, os países, cada país que constitui, neste sentido, uma coisa excelente, suprema, como conjunto de homens.
Ora, não é, seria surpreendente que uma criatura tão excelente quanto é a ordem temporal não tenha uma relação com o mais alto fim da criação que é a salvação das almas. Seria uma coisa de espantar que logo ela não tivesse uma alta função para a salvação das almas. O natural, o normal é que ela tenha um papel, uma colaboração a prestar a isso que é a razão de ser da criação, que vem a ser a salvação das almas para a glória de Deus.
Então, não se trata aqui nessa finalidade de algo de logístico, mas algo de “removens prohibens” antes de tudo. Quer dizer, a sociedade temporal tem meios de impedir que certos obstáculos tolham o livre exercício da missão da Igreja. Esses meios são específicos dela, são próprios dela. Ela tem obrigação de remover ou proibir aquilo que serve de obstáculo ao desenvolvimento da ação da Igreja.
Assim, por exemplo, os reis dos vários reinos em que se dividia a Espanha no tempo da Reconquista. Destes reis, o mais característico foi São Fernando de Castela. Eles lutaram, enquanto reis, e esses reinos lutaram enquanto reinos, para a libertação da Espanha do jugo mouro. Nós vemos aí monarquias que, dentro de sua esfera temporal, se julgavam obrigadas a prestar à Igreja esse serviço. Não era apenas um serviço patriótico, nem eles viam isso assim. A ideia de pátria, naquele período da Idade Média era bem diferente da ideia de pátria hoje. Não havia propriamente uma pátria hispânica. A Espanha acabou de se unificar com Fernando e Isabel de Castela, já no fim da Idade Média, na orla dos tempos modernos. Antes disso eram vários reinos.
E, um rei de Múrcia ou um rei de Castela, ou de Leão ou de Aragão se julgavam tão estrangeiros um para o outro quanto qualquer um deles se julgava estrangeiro para o rei de Navarra, para o rei da França ou para o rei de Portugal. Eram reinos completamente compartimentados.
Por que um rei de Leão queria a ajudar a expulsar os mouros de Castela? Ou melhor ainda, um rei de Castela expulsar os mouros de Leão ou de Aragão?
Queria, não era porque era uma só Espanha. É porque é uma só Igreja. E incumbia a ele, rei do país A, prestar socorro ao seu irmão, rei do país B, na comum tarefa de expulsar os mouros que prejudicavam a salvação das almas.
Isto foi praticado, foi aceito pela Igreja largamente, com aplausos, com indulgências, com bênçãos. Eram as Cruzadas, desenvolvidas na Espanha, contra hereges, contra os mouros, que eram mais do que hereges, era uma espécie de gentilidade.
Notem que aí há uma certa diferença, para os efeitos que nos ocupam, há uma certa diferença histórica em relação às Cruzadas. Nas Cruzadas, a 1a. Cruzada foi pregada por Urbano II e foram convidados todos os católicos para ela. Nesse fluxo geral de católicos, também reis aderiram. E os reis então levaram os seus respectivos cavaleiros, os seus respectivos estados.
Na Espanha, não. É muito característico. Os estados, enquanto tais, independentes de bula de convocação de Cruzadas que depois vieram, puseram-se na defensiva, e defensiva de sua própria sobrevivência, mas reconquista! Sua própria sobrevivência, era direito natural, estava na missão deles. Reconquista dos reinos vizinhos e de todo território espanhol. Mais ainda: planos de penetrar na África e de dominar a África, e de expulsar os mouros da África para chegar até o Santo Sepulcro, como missão apostólica do Estado.
Pio XII, num documento posterior à Segunda Guerra Mundial – ele, aliás, quase todo o pontificado dele é posterior à Segunda Guerra e post-guerra – ele declarou que, se quisesse, poderia convocar uma Cruzada para derrubada do comunismo, que ele não faria porque não queria. Bem, isso, ele poderia convocar apenas indivíduos que quisesse convidar! Ele poderia, ao meu ver, convocar Estados: tal Estado venha, tal Estado venha. Ele não faria porque são estados laicos ou quase completamente laicos e que não atenderiam à convocação. Ele não iria, portanto, lançar um ato inoperante na ordem concreta das coisas. Mas, o direito ele tinha. E isso constitui um serviço que o Estado, na ordem temporal, deve prestar à ordem espiritual, que é a Igreja.
Num terreno muito menor, mas em que isso se pode ver também: a liberdade de culto. Os Srs. sabem que, pela doutrina católica, as religiões não católicas não tem direito a existir. Elas podem ser toleradas em vista de algum mal maior, para evitar algum mal maior. Mas elas não tem direito de existir.
A Constituição do Império – para não alegar outros exemplos históricos mais insignes, mas já que estamos no Brasil, demos um exemplo da História do Brasil – a Constituição do Império – no Brasil a Igreja era unida ao Estado no tempo do Império – proibia que as igrejas, os edifícios de culto das religiões não católicas tivessem a forma exterior de templo. Podiam ter a forma exterior de uma casa de moradia, de uma barraca, do que for. De templo, só da Igreja Católica. Para exprimir aos olhos do povo, com o consenso prestigioso do Estado e fazer entrar para a sensibilidade o que a fé ensina: que a única religião verdadeira é a religião católica, que as outras são coisas espúrias, erradas, que por uma razão de prudência – eu receio muito que muitas vezes tenha sido por uma razão de moleza… – se deixava existir por tolerância. Mas uma coisa é o direito de viver; outra coisa é arrastar ingloriamente uma existência apenas tolerada. Tolerada e suspeitada, e com os olhos da polícia em cima.
Uma instituição, cujo nome eu declino com amor e com veneração, traduzia bem isso. Era a Sagrada Inquisição contra a perfídia dos hereges. Era o nome dela.
A Igreja verificava se o indivíduo era ou não herege, quais eram suas doutrinas. Uma vez que a Igreja se pronunciasse como perito sobre o fato de que a doutrina espalhada por ele era herética, ele era pela Igreja entregue ao que se chamava “braço temporal” – a Igreja é o “braço espiritual” – era entregue ao braço temporal. O braço temporal é o Estado. Para que o Estado executasse a lei pela qual é crime difundir uma doutrina que seja contrária à da Igreja católica. Está acabado.
Quer dizer, é um serviço “removens prohibens”, que o Estado, a ordem temporal, portanto, presta à ordem espiritual.
Aqui está o “removens”, está o “prohibens”.
Mas também ela age de modo positivo na salvação… deve estar escrito errado ali, porque eu tenho uma caligrafia muito ruim e escrevi à mão e foi copiado errado à máquina. No item 5, item II, a expressão é: “… e de maneira positiva age” (e não auge) “na salvação para estímulo à virtude” (e não à vista). Inclusive ao amor de Deus que é o primeiro dos Mandamentos.
Então, se o Sr. quiser fazer uma alteração, o sentido da frase é esse.
Meus caros ibero-americanos, leiam à vontade. Depois nós continuamos.
Eu estou numa cadeira não rotativa e me fica muito difícil estar acompanhado aqui e ali. Os Srs. sigam à peripécia de ir…
* * *
Bom, se os Srs. compararem o item II com o item III, os Srs. veem que o item II é uma reflexão partida da ordem natural. Em certo momento ela introduz considerações de ordem sobrenatural: a Igreja é verdadeira, os direitos da Igreja etc. Mas ela procede da ordem natural.
O item III é uma reflexão que tem como ponto de partida a ordem sobrenatural. Quer dizer, uma vez que Nosso Senhor Jesus Cristo fundou a Igreja, a sociedade natural que tem um fim dado pela Providência – que nós já vimos – o fim natural se encaminha para a Igreja. A Igreja é um fato sobrenatural, criado por Nosso Senhor, não está na ordem natural. Mas, uma vez que existe a Igreja, a finalidade de servir a Deus, que a sociedade temporal tem por ordem natural, tem como polo de atração a Igreja que é o Corpo Místico de Cristo. Então, daí vêm a ideia do serviço da Igreja.
Agora, eu vou tratar de um aspecto da sociedade temporal que importa muito, que é o seguinte: a sociedade temporal, ela forma – e esse é o ponto delicado da questão – ela não serve apenas a Igreja “removens, prohibens”, nem dando verbas orçamentárias para facilitar as obras da Igreja. Quando ela faz isso faz uma coisa boa, é um dever dela, eu aprovo, está perfeitamente bem. Nem prestando à Igreja quaisquer outros serviços que nós possamos excogitar, na ordem positiva.
Ela tem, na própria formação das almas, um papel que nós temos que considerar. E esse papel é que vamos analisar. E esse que é o ponto sensível, porque a formação das almas é, por excelência o papel da Igreja. E eu acho que em vez de nós procurarmos esquivar a questão, nós devemos considerá-la de frente.
A questão é a seguinte: a sociedade temporal, como tudo que existe, tem sua finalidade própria, mas tem um significado simbólico aos olhos dos homens. Tudo o que existe tem um significado simbólico aos olhos dos homens.
Por exemplo, os exercícios de transcendência se baseiam nesse pressuposto: se eu imagino um homem fumando e, do seu cigarro se desata uma espiral, essa espiral às vezes toma movimentos, ou se desenvolve segundo uma linha que lembra certas atitudes do espírito humano. E essas atitudes do espírito humano, por sua vez, enquanto existindo no espírito humano, lembram a Deus. E, nesse sentido, uma simples fumaça de cigarro, pode lembrar algo de Deus, pode simbolizar algo de Deus.
Pode simbolizar algo de Deus, no seguinte sentido da palavra símbolo: é que a coisa tem uma aparência sensível, a fumaça; essa aparência sensível, num bicho que não é dotado de inteligência, não significa nada. Mas as aparências sensíveis, quando bem estudadas, todas elas dão alguma analogia com o mundo do espírito, com algo da inteligência humana, com algum estado de espírito do homem, com algo que diz respeito à alma do homem. Enquanto tal esta analogia, indiretamente, conduz a alma até Deus.
Eu me lembro que vi… bom, vou falar antes da fumaça. Eu não sei por que, comecei falar da fumaça, me deixem ir por aí.
Eu me lembro que no domingo passado – domingo, é! – para fazer minhas orações, tomei uma estrada nos arredores de São Paulo e tem-se que atravessar o cinturão de fábricas. Infelizmente havia uma fábrica funcionando no domingo com uma chaminezona e uma fumaça grossa que saía de dentro.
Essa fumaça se expandia por uma determinada parte do horizonte – o horizonte estava nublado – mas se expandia muito densa e carregava uma determinada parte do horizonte. O dia estava muito sem vento, a atmosfera muito parada, de maneira que a fumaça ficava ali e não se movia e carregava aquela zona. E constituía uma espécie de atmosfera carregada, parada, feia, suja, pairando sobre umas casinholas de “banlieue”, de arredores, engraçadinhas, com uma hortazinha, umas alfaces, uma coisinha assim, e a gente diria: a vidinha de todos os dias, inocente, de dois ou três agricultores, já longe da grande cidade, mas sob os quais paira a ameaça!…
Bom, são certas situações da vida humana. Podiam significar perfeitamente uma ameaça do mal, uma ameaça do demônio, uma ameaça de um infortúnio ruim, desencadeado pelo demônio ou pelo pecado, pelas circunstâncias más do pecado sobre pessoas que vão ser provadas para a maior glória de Deus… aquele contraste entre a fumaça, as casinholas e a hortazinha bonitinha, arranjadinha ali etc.
Neste sentido a fumaça simbolizava algo do demônio, mas simbolizava algo do pecado. Simbolizando algo do demônio, algo do pecado, à contragolpe faz lembrar da cólera de Deus, na punição, na luta entre o bem e o mal, a verdade e o erro, na luta dos Anjos no Céu etc., etc., mas de um modo sensível. Não é apenas uma evocação intelectiva que caberia perfeitamente e que eu respeito muito, mas é uma evocação sensível.
Neste sentido, a sociedade temporal bem ordenada é um símbolo de Deus e da ordem posta por Deus no Universo. E, como tal, ela concorre para tornar as almas mais receptivas à virtude, mais inclinadas à virtude, modeladas pela virtude. Ela presta, portanto, um serviço que é útil à Igreja, é útil à salvação das almas, é um serviço que, enquanto tal, eu poderia de algum modo chamar de apostólico, neste sentido que ela faz o bem, promove o bem ajudando a Igreja.
Isso pode causar surpresa: mas como uma coisa temporal como é a sociedade, a ela se pode atribuir uma função dessas?
Nós temos exemplos na Revelação que escachoam. Por exemplo, a família é uma sociedade temporal. É verdade que a família católica só está legitimamente constituída mediante o sacramento do matrimônio. Mas houve o matrimônio antes de ser instituído sacramento por Nosso Senhor, houve família antes de ser instituído o sacramento do matrimônio. Ela é uma entidade natural.
Quantas e quantas vezes Deus, no Antigo e no Novo Testamento, para fazer entender aos homens o Seu afeto, Ele se intitula Pai? O Pater Noster começa assim. Oração ensinada por Nosso Senhor: “Pai Nosso que estais nos Céus”.
Mais ainda: não precisa ser a sociedade temporal. Esse valor simbólico das coisas criadas por Deus vai tão alto que até mesmo coisas animais simbolizam a Deus.
Nosso Senhor, falando de si mesmo, quando Ele chorou sobre Jerusalém, Ele disse: “Quantas vezes Eu quis te reunir junto a mim como a galinha reúne os pintainhos“, indicando claramente que a galinha com os seus pintainhos é um símbolo do amor de Deus para com os homens. O amor dEle é o amor de Deus para com os homens.
Agora, se uma galinha que reúne em torno de si os seus pintainhos simboliza Deus, um rei que na ordem da virtude reúne em torno de si os seus súditos não simboliza Deus? Eu teria muita dificuldade em admitir isso. Só se me provassem que a Igreja ensina que isso não é assim que eu me submeteria, porque isso me parece evidente que é assim.
Carlos Magno! Se uma galinha simboliza Nosso Senhor Jesus Cristo, Carlos Magno reunindo aqueles povos todos, por que não? Por que não? Eu não compreendo! Positivamente não posso compreender.
Quer dizer, é um símbolo. E, neste sentido, a ordem temporal bem estabelecida segundo o espírito de Deus, segundo o espírito da Igreja, segundo os Mandamentos de Deus e os Mandamentos da Igreja, esta ordem temporal constitui algo que é o próprio símbolo de Deus, o próprio símbolo das coisas espirituais, muito mais do que outros símbolos, que são tão, tão gabados pela poesia corrente. E gabam bem. Aliás, a própria Escritura também elogia isso. “Céus e Terras, bendizei ao Senhor”, e vem todo o elenco de criaturas que devem glorificar a Deus. Glorificar a Deus é manifestar sua condição de imagem ou de semelhança de Deus, é o efeito que volta à sua Causa, é aquele que é criado que obedece ao Criador e faz o que o Criador ordena. Essa é a ideia da glória de Deus.
Mas, um homem só, a menor das almas humanas que se possa imaginar, a menor das almas não está bem. Santo Tomás nos ensina que todas as almas são iguais, mas que elas se diferenciam enquanto corpos, quer dizer, pela ação do corpo. Mas, o menor dos homens que se possa imaginar vale incomparavelmente mais do que todos os astros do firmamento. Nosso Senhor não teria sofrido o que sofreu na Cruz para evitar que se apagasse uma estrela material no céu. Nunca! Mas, Ele teria feito isso só pelo último dos homúnculos, tanto vale um homem.
Eu dizia: se é verdade que o céu com suas estrelas, seus astros etc., etc., dá uma tal glória a Deus; ou então as águas, isso, aquilo, aquilo outro, quanto mais deve dar glória a Deus o conjunto ordenado dos homens! E são símbolo de Deus como o céu é símbolo de Deus.
E eu olho para o céu e o vejo no nosso firmamento brasileiro não urbano – porque no firmamento das grandes cidades tem poluição e fumaça até de noite, o tempo inteiro, não se vê quase estrelas, mas, enfim, no interior brasileiro – eu vejo o céu…
Um pensamento que eu gosto de ter é esse: como seria mais belo, para dar glória a Deus, seria mais conforme a Deus ainda do que essa maravilha que eu estou vendo, um Sacro Império Romano Alemão que abrangesse todas as nações da Cristandade! Eu não consigo conceber as coisas de outra maneira. Volto a dizer: se não for esse o ensinamento da Igreja, sofregamente eu aceito o contrário, de bom grado, mas eu não vejo meio de não ser.
Agora, nós podemos nos lembrar, para este efeito, de uma sociedade que se constituísse segundo São Tomás de Aquino lembra que é a forma de governo ideal é a forma de governo monárquica, mas temperada – temperada não quer dizer, na linguagem dele o nosso temperado, quer dizer, alguma coisa da qual se tirou o sabor, ou da qual se puseram sabores alienígenas, não – enriquecida de sabor por um traço aristocrático e um traço democrático. Bem, ele considera isto a forma de governo perfeita. Ele pressagia assim os ensinamentos de Leão XIII mais tarde. Mas, para me reportar a São Tomás, é o que ele ensina. Está bem.
Nesta forma de governo assim, quem não vê, por exemplo, que esta ordem que é uma ordem natural, que faz com que as relações humanas se estabeleçam naturalmente como devem ser, que nesta ordem as almas são capazes, recebem um incentivo para compreender e amar melhor a organização da própria Igreja, monárquica na pessoa suprema do Sumo Pontífice? Depois, aristocrática no que ela tem de elementos de instituição divina e de instituição eclesiástica, constituindo um todo harmônico, Sacro Colégio dos Cardeais, Episcopados, os clérigos etc., e depois abaixo a plebe fiel que são os simples católicos, que somos nós?
Quer dizer, não forma bem aquela sociedade de desiguais, uns instituídos para ensinarem, para governarem, para santificarem, que é a Hierarquia. Depois outros feitos para serem ensinados, serem governados, serem santificados que são os fiéis? É bem o que ensina São Pio X.
Mas esta organização perfeita da sociedade que tem a Igreja, a organização perfeita da sociedade temporal prepararia para compreender e para amar. Mas, notem bem: como a Igreja é obra de Nosso Senhor Jesus Cristo, e através da obra se compreende melhor o espírito do artífice, amando a forma de governo que Deus deu à Igreja, para a Igreja, ama-se e compreende-se melhor o próprio espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Os Srs. têm bem presente aí como, a partir de uma obra temporal bem constituída, se desdobra uma ação, uma concatenação de efeitos preciosíssima para que a Igreja atraia para si as almas e para que Ela desenvolva sua missão sobre as almas. Isso é um exemplo que eu dou do que eu chamava a finalidade ministerial do Estado, nas mãos da Igreja.
“Minister” no sentido de que é servidor. Não é no sentido contemporâneo de Ministro de Estado. É servidor, é aquele que serve. O Estado tem um serviço a prestar à Igreja, a ordem temporal tem um serviço a prestar à Igreja.
* * *
Os Srs. encontram um reflexo disso na doutrina da RCR [abreviatura para o livro “Revolução e Contra-Revolução”, n.d.c.] sobre a Revolução tendencial e a Revolução sofística.
A Revolução tendencial e a Revolução sofística podem perfeitamente nascer da sociedade temporal (…) que estão preparados para perceber a beleza, o verum-bonum-pulchrum, o divinum dEla. No primeiro olhar já correm para Ela!
É uma coisa, portanto, um serviço eminente, uma verdadeira obra de apostolado, se eu tenho como intenção, se eu faço isso por amor de Deus e por amor à Igreja. Mas é uma obra de apostolado de leigos.
Por quê? Porque não é normal que os reis dos povos sejam sacerdotes. Nosso Senhor fez distinção entre a Igreja e o Estado. Um sacerdote pode, “per accidens”, ser rei. D. Henrique, rei de Portugal, era cardeal, era bispo. A casa de Avis ia extinguir-se nele como último herdeiro da coroa portuguesa em varonia, caso ele não tivesse filhos. Para evitar isso, a Santa Sé chegou a levantar o voto de castidade dele e autorizou que ele fosse ser rei de Portugal.
Um bispo, um cardeal pode ser rei, mas não é a ordem normal das coisas. Nós não podemos imaginar todas as terras de todos os países do mundo governados por cardeais. Uma demência. Por bispos, é uma demência. E seria, de fato aí, isso feito por princípio, seria baralhar a distinção entre a Igreja e o Estado que Nosso Senhor Jesus Cristo estabeleceu.
Então, a tarefa de conduzir a sociedade temporal, embora sob a inspiração da Igreja, é do Estado, é da sociedade temporal. E para fazer esta eminente obra de apostolado, o homem deve ser leigo com a intenção de fazer essa obra.
Não sei se isto está bastante claro. Os que leram o esquema não me queiram mal, o Sr. que não é brasileiro não me queira mal, eu talvez esteja saindo fora do esquema. Mas é que os auditórios… eu vou falar francês que eles entendem: les auditoires brésiliens sont très mouvants. Je dirais même qui’ils sont très glissants. Et si on ne les accompagne pas dans leur glissement, on perd le contact.
Voyez comme ils acclament !
Et donc on fait un schéma, mais on sait qu’on doit faire des deviements [déviation] au cours du schéma. Le schéma ne peut pas marcher comme une armée en ordre de bataille. Non ! Le schéma est un peu dansant, un peu branlant pour l’esprit brésilien.
Et je me rencontre que je suis peut-être en train de faire cela maintenant. Mais, c’est comme ça. “Sunt lacrimae rerum”. Bien !
Para frente! Cessado o burburinho brasileiro… Para a frente agora então nós.
Eu vou – porque fica mais rápido eu descer diretamente ao meu tema – nós não devemos, entretanto, um pouquinho por simplificação, é verdade. Só. Eu não notei mau espírito nisso, mas um pouquinho os bons tratadistas de direito natural, do século passado – eu me lembro especialmente do Taparelli, menos do [Viktor] Cathrein – mas caíram nesse erro. Quando eles falavam da sociedade temporal, eles falavam do Estado. E falando do Estado, eles se esqueciam que a sociedade temporal tem, realmente, como cúpula o Estado, mas que ela não é só Estado. A ordem temporal é uma sociedade da qual o Estado é o ordenamento supremo. Mas, a sociedade temporal tem algo – Pio XII tem ensinamentos muito bons a esse respeito, por exemplo, o princípio de subsidiariedade etc. – ela é algo que, em alguma medida se distingue do Estado.
Então, todos os corpos constituídos dentro de um Estado: diretores de colégio, diretores, reitores de faculdades, pais de família, presidentes de Academias de Letra, homens que dirigem sindicatos, que dirigem bolsas… bolsas de câmbio é mais difícil… Não estou mencionando bancos! Mas que dirigem todas as atividades comuns, temporais, constituem a sociedade. E, se cada um deles organizar seu ramo, os seus subordinados na linha da boa organização natural e conforme a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo, se ele fizer isto, ele presta também este serviço simbólico a Deus, porque, cada sociedade assim – vamos dizer, uma repartição pública, vamos dizer um escritório de datilografia, ou de fotografia, ou de xerografia, ou do que quiserem – bem organizado, exprimindo a ordem natural, segundo a verdadeira moral que é a moral católica, a moral cristã, ele tem uma perfeição e uma excelência onde a rutilação da alma humana se apresenta inteira. E, pela alma humana, a gente sobe até Deus.
Então, qualquer um que, com esse intuito, seja diretor ou seja subordinado numa ordem dessas, este presta, do ponto de vista simbólico, um ato de colaboração à Igreja na ordem do amor de Deus, insigne. Ele faz uma ação de apostolado.
Por exemplo, o exemplo é banal, de tão característico ele é banal, um fazendeiro com seus colonos e com sua família, com administrador, os funcionários administrativos da fazenda, seus colonos. Ele pode formar uma como que aldeiazinha que seja tão, tão, tão católica que seja miniatura do Reino de Maria. É uma minúscula sociedadezinha temporal, encaixada na sociedade muito maior, é uma célula viva da sociedade temporal. Mas ele pode fazer ali uma coisa minúscula que seja uma miniatura do Reino de Maria. Por mil razões. Mas, estou acentuando neste título, o título simbólico que, por alguns lados, leva especialmente ao amor de Deus.
Eu sei que esse não é o único modo de levar ao amor de Deus, mas eu estou insistindo nisso por razões que, se me lembrarem, eu direi daqui há pouco.
Bom, então acontece que, sendo o 1º. Mandamento a vida dos outros mandamentos, o título de mérito do cumprimento dos outros mandamentos é o homem amar a Deus sobre todas as coisas – Nosso Senhor disse isso, São Paulo disse isso: “quem tem alguma virtude, alguma qualidade que não tenha relação com o amor de Deus, não tem amor de Deus, essa qualidade não vale nada”, então é diretamente para a “qualité maîtresse”, fundamental que vem orientada essa ação simbólica. Eu apresento no que ela tem, portanto, a ação do apostolado da ordem temporal, num ângulo que não é muito tratado – ao menos eu não conheço – e é um ângulo que é, a meu ver, a seu modo, capital.
Nestas condições… Eu sinto bem que estou inteiramente fora do esquema, mas a matéria é essa. Eu me lembro daquele trecho famoso de Santo Agostinho: “Se num Estado o rei e os súditos fossem católicos, o esposo e a esposa, os pais e os filhos, os patrões… ele dizia servo, não havia muito trabalho livre, havia mais escravos propriamente – os senhores e os servos fossem católicos, o que comanda as milícias e os que obedecem, etc., se fossem todos católicos, nós teríamos, diz ele, uma sociedade ideal.”
Não há quem leia aquele trecho e não tenha uma pulsação de coração mais ardente. É impossível! Por quê? Porque ele evoca, com aquele talento agostiniano no qual há, evidentemente, cintilações da graça também, não é só um grande gênio – aquilo não é talento, é gênio. Mas no meio do gênio, cintilações da graça – e que cintilações! – há qualquer coisa que coloca a gente diante de uma figura de uma sociedade católica, idealmente católica, e a pessoa se extasia. Por quê? Porque é um símbolo de Deus!
Bem, eu sei que há na sociedade temporal outros apostolados a fazer. Há, a propósito dela outras reflexões que também conduzem a Deus e há outros apostolados a fazer. Eu sei bem. Eu não posso tratar de tudo nessa reunião. Se eu fosse tratar disso, seria, não sei, teria que fazer um simpósio. Seria impossível, não tenho tempo para isso.
Mas, o essencial era dizer isso: que essa sociedade assim posta é uma sociedade que vista por seu ângulo, é toda ativada por leigos, colocados – homens, portanto, na sua imensíssima maioria casados, que é o estado normal, natural, habitual do leigo. Portanto, casados, com filhos etc., e que, se eles todos fossem devidamente católicos, com intuito apostólico acionassem essa sociedade temporal, cientes de que não era só para ganhar dinheiro para seus filhos, para sua mulher, para eles terem um status digno, de acordo com sua educação, com a tradição de seu nome, sei lá do que – também são fins secundários legítimos, necessários até – mas é também e principalmente para que o amor de Deus se espalhe pela terra.
Esta seria uma sociedade em status habitualmente apostólico, na sua condição temporal.
Alguém me diria: “Mas Dr. Plínio…” Não! Eu queria dizer antes uma coisa que está aqui no esquema, senão sou capaz de me esquecer.
É o seguinte: por exemplo, outro serviço que o leigo presta.
Uma igreja matriz considerada na sua paróquia – para usar uma imagem banal de tão verdadeira ela é banal – pode comparar-se a um coração com o corpo. A pulsação e toda a irrigação vem da matriz. É o pulsar da matriz que dá a vida espiritual à toda a paróquia. Se quiser, em outro sentido, ela é a alma da paróquia. Façam a metáfora que quiserem, os senhores sabem o que é uma matriz. Bem, a pessoa dirá:
“O Sr. concebe um sentido tão carregado ao apostolado leigo que não se entende bem qual é o papel da matriz. O que é o papel do padre então aí?”
Eu tenho vontade de dar risada… Eu tenho vontade de dizer: Ele faz o leigo! Ele batiza, ele ensina, ele forma, ele dá os princípios, ele confessa, ele comunga, ele organiza, ou pode organizar – se quiser – associações que ajudem o leigo a fazer isto, ele é a alma disso. Se tirarem o padre, os leigos morrem por inanição! Deixam de existir! É a mesma coisa do que alguém que descrevesse longamente o corpo humano a um cardiologista, cioso das preeminências do coração dissesse: “E o que faz o coração se tal é o papel – não sei – dos braços?” Eu posso dizer que um homem sem braços morre de fome. Se ninguém o ajuda, ele acaba morrendo de fome. Ele só come as frutas que lhe caem dentro da boca. Então dirá um cardiologista ciumento: “E o que faz o coração?” O coração é a vida do homem! Tira o coração e o homem está morto! É tudo.
Eu vou tomar o quadro de Santo Agostinho. Tome um rei e súbditos católicos etc., etc., aquele, aquele, aquele católicos, como é ideal a sociedade! Quem é que torna católico o rei? Quem é que torna católico o súbdito? Quem é que o batizou? Quem é que lhe deu os Sacramentos? Quem é que lhe dá os Sacramentos? Quem é que lhe ensina, santifica e governa sua alma ao longo de toda a vida se não é o clero?
Quer dizer, não se pode nem pôr a pergunta, de tal maneira a pergunta me parece tendenciosa, capciosa, sem sentido, não se pode nem pôr a pergunta. É tudo.
Na descrição… é tão grandiosa a descrição de uma sociedade temporal assim que uma pessoa poderia dizer: “Eu não vejo o papel do clero”. Eu diria: é mais ou menos como a gente ver uma linda hera – no [Eremo de] São Bento – que cobre toda a casa, a gente não vê a raiz. Corte a raiz. O que fica daquela hera?…
Mas, acontece o seguinte: o vigário, o pároco é o coração da matriz; a matriz e o vigário são o coração da paróquia. Está muito bem. Mas, o leigo que não seja das almas felizes, mais fervorosas, que frequentam associações religiosas, que pertencem à paróquia, um congregado mariano, uma filha de Maria, apostolado de oração, vicentinos, sei lá que outras associações, um que não pertença a esse escol, ele vai receber os Sacramentos, ele vai ao domingo, ouve a prática do Evangelho. Vamos dizer que ele comungue diariamente, que ele reze seu rosário etc., etc., 80% de sua vida, pelo menos, se passa dentro da sociedade temporal. É uma questão de relógio, é marcar no relógio, a vida de qualquer um deles é isso.
Bem, e as dificuldades que ele vai encontrar na batalha para preservar o que o padre lhe deu, para utilizar o que o padre lhe deu, para tornar fecundo o que o padre lhe deu, são dificuldades nascidas na sociedade temporal. O perigo para ele está na sociedade temporal.
Nessa sociedade temporal aonde o padre, por desígnio da Igreja, não deve viver muito misturado. É do espírito da Igreja que os padres tenham contato com a sociedade temporal, mas que eles vivam “plutôt” entre eles. O padre mundano, tipo cardeal às vésperas da Revolução Francesa que ia assistir baile e dançava minueto, não é uma coisa aprovada pela Igreja, é uma coisa censurada. Uma coisa é a vida civil, até com seus legítimos aspectos sociais etc., outra coisa é a vida eclesiástica.
Bem, quem vai ajudar as almas que ali periclitam na hora do perigo? A serviço do pároco, por que vai ajudar o homem a fazer o que o pároco mandou? A serviço dos Sacramentos, por que vai ajudar o homem a ser fiel aos Sacramentos que ele recebeu? Na hora do perigo é quem está ali no perigo. Quem é? É o amigo leigo dele, é o parente leigo dele, que está ali presente, que luta contra as mesmas dificuldades e que o ajuda.
Pio XI, quando falou a respeito da Ação Católica – ele tem documentos muito bons a respeito de Ação Católica – Pio XI, quando escreveu sobre a Ação Católica, teve muito em vista este último ponto.
Eu li com muito cuidado os documentos dele sobre a Ação Católica. Pio XII tem alguma coisa, por algum lado, melhor até do que Pio XI, a meu ver, mas também li com cuidado. Não encontrei nenhum traço disso: é este valor simbólico e apostólico, enquanto simbólico, da sociedade temporal, das sociedades que integram a sociedade temporal, da vida temporal, com ordem ao primeiro Mandamento, e devendo ser atuada por todos os leigos, com uma intenção apostólica. Isso eu não encontrei. Mas, eu acho que é uma coisa eminente e que existe mesmo.
* * *
O que vem a ser, então, a TFP?
Se esse é o ponto de encontro entre as duas sociedades… ou por outra, não é bem assim. Se este é o teor das relações entre as duas sociedades, o que vem a ser a TFP?
Tomando em consideração a importância do apostolado dos leigos e tomando em consideração o apostolado dos leigos na ordem normal das coisas, e a fortiori, numa ordem anormal das coisas como é a de hoje.
Quer dizer, mesmo no Reino de Maria, um apostolado de leigos, no mundo leigo, seria indispensável — eu vou explicar daqui a pouco o sentido da palavra indispensável — mas ainda mais na sociedade profundamente corrompida de hoje em dia ela é necessária; tomado este sentido que deu Pio XII do homem que entra na sociedade dos leigos para ali dentro ajudar os leigos, começou, junto com uma pulsação universal das almas, sobretudo no tempo de Pio XI – algo começou no tempo de São Pio X, mas no tempo de Pio XI continuou, se acentuou, etc., etc. acontece que começaram a aparecer ordens, congregações religiosas constituídas de leigos, obedecendo a esta ideia: que eles não sendo clérigos, eles podiam acumular as duas circunstâncias: privadamente, levar a vida de um religioso; mas pelas suas ocupações estarem misturados a fundo na vida leiga, e pertencerem à vida leiga. E ali servirem de estímulo aos leigos, não religiosos, que como chefes de família, nas várias ocasiões, devem cumprir o seu apostolado.
Eu dou um exemplo concreto para não ficar nas nuvens.
Há um departamento jurídico de uma grande empresa. Nesse departamento jurídico trabalham, vamos dizer, 50 advogados. Cinquenta advogados dos quais um é membro de uma congregação religiosa de leigos. Ele não é um frade agostiniano, dominicano, ou jesuíta. Não. Ele é membro de uma congregação religiosa de leigos. Sendo leigo, ele está no seu papel de advogado, ele estudou direito, ele conhece, ele advoga. Mas, estando ali dentro ele pode observar quais são os bons, e pode desenvolver um apostolado especialmente ardoroso junto aos bons, para que esses bons ali façam desse departamento jurídico o que ele deve ser.
Ele é uma longa manus da Hierarquia ali dentro, é uma extensão dos desígnios da Igreja ali dentro. É uma coisa que começou a se multiplicar largamente. É a necessidade de uma presilha, de um “agrafe” entre uma coisa e outra, para que melhor a influência da sociedade espiritual pudesse perpetuar-se, prolongar-se dentro de sociedade temporal.
Daí uma congregação religiosa – não sei bem se é Ordem ou Congregação hoje em dia – mas que tem essa característica: exatamente muitos leigos – tem também sacerdotes, mas os sacerdotes são mais bem capelães desses leigos do que são a matéria prima da ordem. Como, aliás, nas ordens de Cavalaria, os capelães eram integrantes da Ordem, mas eram os capelães da Ordem, é a mesma situação. Então, o leigo faz de tudo.
É para os Srs. verem até que ponto está nas tendências uma interpenetração — não uma confusão, mas uma ligação para o mais perfeito nexo entre uma coisa e outra.
Como isso é diferente, por exemplo, da concepção que havia no tempo dos meus avós a respeito da relação entre clero e laicato! Mas, naquele tempo a sociedade tinha sido – ao menos no Brasil – muito menos devastada pela Revolução. Ela era, na sua substância, carregada de tradições católicas recebidas de Portugal. Ela era, ela mesma, um instrumento de salvação. Não era necessário, ou ao menos não era indispensável ali essa modalidade. Na sociedade de hoje essa modalidade se torna indispensável.
Eu sei que alguém poderia me dizer: “Indispensável, não. Indispensável é só aquilo que Jesus Cristo instituiu.” Não vamos brincar com as palavras… A palavra “indispensável” tem suas aplicações. Por exemplo, alguém poderia me dizer: “Os Apóstolos conquistaram o mundo sem essas organizaçõezinhas em que você está pensando.”
Eu respondo: Os Apóstolos também conquistaram o mundo sem universidades católicas. São Paulo não era reitor de universidade católica nenhuma…
Nós não vamos dizer, por causa disso, que nas condições de hoje, entendida a palavra indispensável num certo sentido da palavra, não seja indispensável haver uma universidade católica — diametralmente diferente das que temos, é uma coisa indispensável.
Quer dizer, não vamos fazer, não vamos brincar com as palavras. Nós estamos fazendo um esforço sério. Isso é sofisma farisaico, é chicana farisaica. Não quero tomar o tempo dos Srs. com coisas dessas.
Agora, se há uma tendência a estabelecer pontes dessas ou “agrafes” dessas, que espécie de “agrafe” é a TFP? E o que a TFP pretende ser?
Eu já disse aos Srs. que nós conhecemos uma política: é a política da verdade! É verdade que a política da verdade, à qual nós gostaremos que esteja sempre unida, pelo favor de Nossa Senhora, a inocência da pomba — não esteja separada a astúcia da serpente! Saudamos como uma virtude evangélica. Mas a verdade é essa: qual é o papel próprio, específico da TFP?
O papel próprio da TFP é o seguinte: a TFP tem — está no feitio de nossos espíritos, está na inclinação de nossas almas, está na curiosidade de nossas inteligências, está em todos os movimentos dentro de nós a seguinte tendência, a seguinte propensão: a sociedade temporal tomada como um todo, ela resulta do equilíbrio de duas influências: uma é a influência dos homens, de cada homem sobre o todo. A sociedade temporal é feita de homens que não são robôs. Cada homem é ele mesmo um pequeno mundo, um pequeno universo e tem uma certa forma de autonomia, de ‘privacy’, de ‘privatum’ próprio que é inesgotável e insondável.
Bem, é da projeção desses mil fachos de luzes individuais que se forma essa luz conjunta que nós diríamos que é a mentalidade da sociedade temporal.
Agora, de outro lado é verdade que o homem não pode ser comparado com um facho de luz, a não ser com muito cuidado. Porque se é verdade que o olho humano às vezes brilha tanto que ele pode ser comparado a um facho de luz, um facho de luz não vê, e o olho humano quanto mais brilha, às vezes é porque mais ele está vendo.
Quer dizer, existe no homem algo que não é apenas o por onde ele influencia, mas por onde ele vê as coisas e as coisas influenciam a ele. E essa luz somada da projeção dos mil fachos individuais, os mil fachos individuais a veem, e ela repercute sobre eles. E há assim um “comercium”.
Não sei se querem que eu explique melhor ou se está claro. Meus “enjolras”, está claro isso ou deveria explicar melhor?
Essa circulação faz com que a sociedade temporal, tomada no seu conjunto, impressione profundamente o homem. E que um dos melhores meios de atuar sobre o homem para que ele ame a Deus e seja propenso, proclive à Igreja, um dos melhores meios é de agir sobre a opinião pública, ou seja, o conjunto desses fachos de luz procedentes de baixo, para que projetem sobre esses fachos de luz uma imagem orientadora.
Se desejarem, eu posso me explicar melhor. A gente, às vezes, querendo encurtar, às vezes alonga. Eu estou querendo encurtar e por isso estou usando de metáforas uma em cima da outra. Mas, se quiserem posso me alongar, me estender mais um pontinho. Está claro?
(Todos pedem que o Sr. alongue um pouco a questão.)
Alongue? Alongar, para fazer excursão dentro do tema, não. Fica para outro dia. Se não estiver claro, sim. Passear no tema, é outra questão.
(Aparte: Mais algumas metáforas, mais exemplos.)
Metáfora é passeio, puro gosto de brasileiro… mas enfim. Eu me exprimo um pouco melhor.
Eu me exprimo um pouco melhor. Eu imagino isto que eu vi, eu senti. Eu senti e percebi. Muitos dos Srs. terão talvez sentido e percebido. Alguns terão talvez sentido e não terão percebido. Ninguém deixou de sentir.
A gente vai andando por uma grande cidade moderna. Estou farto delas! Bem, a mais não poder de farto! Bem, a gente vai andando por uma grande cidade moderna, de repente encontra assim, num ângulo, onde há um pouco de visão, um prédio muito alto. Em cima, uma coisa que acende e apaga. E diz por exemplo, “dentifrício tal”! Uma luz azul néon, depois uma luz vermelha néon, depois uma luz verde, depois roda, uma roda com azul, vermelho e verde, e sai de dentro uma outra coisa que diz: dentifrício tal.
Quando eu vejo isso, eu fico com minha alma partida. Pôr uma coisa tão alto naquela evidência é conferir-lhe uma certa glória. Conferir essa glória a um dentifrício é colocar os homens de quatro como se fossem animais! E depois é isso mesmo. Porque não é o que está dito ali, para quem analisa com um mínimum de subtileza – nem é subtileza – para quem não tem uma carapaça tremenda diante dos olhos, o que percebe é uma outra coisa. O que está dito ali é o seguinte: dinheiro, dinheiro, dinheiro! — olha a forma de glória que obtêm as coisas que o dinheiro quer tocar para a frente! É isso.
O que está dito ali de outro modo é: saúde, saúde, saúde! — gaste dinheiro com sua saúde, porque sua saúde é um bem supremo! Bios e Mamon! Os dois ídolos do homem moderno!
A gente vê passar ao pé disso – eu vi isto assim, eu vi assim: na Rua XV de Novembro, quando eu tinha escritório lá, e quando o centro velho bom era lá, na Rua XV de Novembro quando eu saía, era habitualmente 8 horas, 8 e pouco, eu descia de automóvel… e eu percebia, eu cheguei uma vez ficar na janela para ver melhor a cena.
A rua muito – os paulistas sabem disso – muito movimentada por automóveis, a essa hora todo mundo vai jantar etc., rua muito movimentada. Hoje parece que não têm automóveis, tem calçadão lá. Os automóveis não descem por lá. Naquele tempo os automóveis passavam por lá. Eu via uma velhinha, com cabelo grisalho, pouco abundante, que formava assim uma pobre trancinha aqui atrás da cabeça. Ela, à distância, me dava a impressão de bem lavadinha. Pobrezinha, que atravessava a rua andando numa cadeira – coitada! – que não era uma cadeira de rodas, mas era uma cadeirazinha dessas de palha que ela ia movendo uma perna, outra, outra, ela atravessava a rua e sumia numa rua pequena que tinha ali perto (…) até um lugar onde tinha para ela alguma comidinha. E que depois ela voltava e encontrava, talvez, no elevador de um e de outro prédio, uma alma piedosa que parava o elevador no lugar para ela descer – quando muito!
Bem, quanto poderia caber de resignação, de ânimo conduzir a vida dentro de uma coisa dessas, de obediência à vontade de Deus. Que obediência conduzir a vida num estado de isolamento e de zero desse!
Passavam ali perto automóveis reluzentes, passava gente de um lado para outro, de todas as classes sociais, dos mais ricos aos mais pobres, ninguém ajudou a velha… Uma vez eu vi uma reportagem sobre essa velha no jornal, a reportagem não indicava o endereço da velha para ela ser ajudada. Dava até a fotografia dela atravessando a rua.
Agora, coisa dura: é legítimo que da alma dos Srs. brade uma exclamação: “E o senhor por que não ajudou? Por que o senhor não desceu de elevador e não foi ajudar a essa velha?”
Precisamente quando dei conta disso, eu estava num período de campanha tal contra a Reforma Agrária, que o Brasil podia ficar comunista ou não ficar, conforme o êxito dessa campanha. E eu estava dando de tal maneira todas as minhas forças que nem para uma outra velha que eu tinha em casa [referindo-se à Dona Lucília, n.d.c.] e que eu venerava indizivelmente eu não tinha tempo de fazer outra coisa do que um agradinho distraído. Para o bem comum, aí sim, tive que sacrificar o bem individual dela.
Quando a campanha passou, eu a procurei. Eu julguei que ela tivesse morrido porque não passou mais. Eu não sabia donde ela vinha, nem para onde ela ia. Eu soube que ela não tinha morrido porque me caiu, “per acidens”, um jornal que não dizia o endereço dela. Se eu soubesse, eu teria ido procurar ela.
Bem, mas então, era o caso ali, eu tinha diante de mim isto: no ângulo, uma casa de comércio – não era muito alta – oferecendo chocolates – aliás são chocolates muito gostosos, chocolates… dinheiro! Dinheiro! Dinheiro! Embaixo aquela velhinha se arrastando daquele jeito!…
Não há uma inversão de valores? Não há uma coisa que uiva e que não deveria ser assim? Evidentemente que é isso, entra pelos olhos que é isso. Eu não tenho nada que dizer a esse respeito. Mas, é o que? É a má ordenação das coisas temporais que, tomada como natural, embrutece as pessoas e elas não se incomodam mais com Deus. É isso.
Mas é o que? É o papel embrutecedor – aqui estou focalizando especialmente – do anúncio luminoso em contraste com outros aspectos da vida: o gozo, aquela coisa assim. E se não é o gozo é o lucro, é o comércio, a fama…
Para deputado federal! Como se explica uma coisa dessas? Propaganda. Ele vai no rádio, faz aquelas porcarias dele, acham graça, pronto, acabou, propaganda. Dos ídolos que uma sociedade levanta e que tornam difícil adorar a Deus. Aí os Srs. têm um exemplo.
* * *
Agora, o que deve fazer a TFP?
Ela deve conhecer, ela deve formar nos seus a subtileza necessária para perceber essas coisas e montar o conjunto das ações nefastas que se exercem sobre uma sociedade.
E, por meio – é a Revolução tendencial, à qual ela deve opor a Contra-Revolução tendencial. Ela deve favorecer o quanto ela possa, e promover o quanto ela possa, a Contra-Revolução “B”, sofística. Ela, se puder, deve colocar homens em cargos públicos, em situações públicas onde eles possam colaborar para a direção do Estado, numa determinada orientação que sirva a esses ideais. Esse é a trabalho da TFP, esse é o objetivo da TFP.
Mas, com um ponto especial. É que tudo isso é dirigido difusamente contra toda espécie de erro e de mal. Mas, especificamente é dirigido contra uma forma, uma quintessência de mal e de erro que é a Revolução. A qual, eu estou certo disso, continuará até no Reino de Maria. Quer dizer, células revolucionárias continuarão a existir e piores ainda do que as de hoje. Parece impossível, mas será. Porque a rejeição das graças do Reino de Maria fará homens serem piores do que se é hoje. E será preciso que desde o primeiro momento em que o Reino de Maria esteja restaurado, nós abramos os olhos e comecemos procurar: Quem é? Quem é? Quem é?
Se procurar, encontrarão! Para que, para prender logo? Ó bobagem, ó bobagem! Deitem o olho em cima para ver o que fazem. E se empenhem em destruir o que eles estão fazendo pela potência de sua própria ação porque, do contrário, vocês são como corpos moles que só vivem de antibiótico, não têm saúde suficiente para resistir contra a toxina.
* * *
Agora vai a última pergunta.
Está bom, mas a TFP se dá bem conta que uma tarefa dessas é uma tarefa de direção do mundo? E o que fazem aí a Igreja e o Estado? É uma pergunta diante da qual eu não fujo. Essa pergunta pode causar um certo mal-estar. Mas nada é pior para o bem estar do que as perguntas não respondidas. É melhor a gente responder as perguntas. É a política da verdade.
A TFP pode aceitar, eventualmente, de colocar numa ou noutra situação um homem, numa ou noutra situação temporal eminente, um homem a ela pertencente. Não está na índole da TFP ocupar a generalidade ou a maior parte dos cargos, nem na esfera temporal, nem na esfera espiritual.
Por quê? Os Srs. vão ver a razão: se ela é uma formadora de opinião e ela precisa de lei, decreto e regulamento para formar opinião, ela perdeu a razão de ser. Lei, decreto, regulamento é de quem tem autoridade. Nós o que podemos fazer é aconselhar os que tem autoridade. Se eles quiserem ouvir o nosso conselho. Nós não temos o direito de impor que nos ouçam, nem na ordem espiritual, nem na ordem temporal. Mas, consultados, devemos de bom grado oferecer os nossos conselhos resultantes de uma atenção contínua, de um desejo contínuo de servir, de uma fidelidade contínua. Se não quiserem aceitar, a responsabilidade perante Deus é deles. Nós não cuidamos disso.
Nós temos nossos próprios meios de fazer uma coisa que só pode ser grata à toda autoridade legítima: é ordenar as almas por estas formas e deste meio a praticarem a lei de Deus e a lei da Igreja, amarem a Deus sobre todas as coisas. Está acabado.
É o que eu teria a dizer, numa reunião que se estendeu bastante. Mas, enfim, o tema não se poderia desenvolver com menos tempo. Há uns restos de coisas por aqui que eu já coloquei em outras prateleiras que já estão tratadas.
Eu compreendo muito bem, antes de tudo, que os “mestres em Israel” [referindo-se aos sacerdotes presentes] me corrigissem em algo que não estivesse certo, ou me dessem alguma precisão em algo que esteja confuso.
Compreendo bem que meus amigos, meus irmãos – a outros eu quase diria meus filhos – fizessem objeções, fizessem ponderações, pedissem explicações, etc., etc.
É fantástico que nunca se tenha feito tão metodicamente – não foi muito metodicamente, foi a la… bem – mas tão metodicamente a exposição desse tema. Eu não julgo ter dito aos senhores nada de novo. A ordenação acrescenta algo e é extremamente útil.
Com isto estaria dito o que eu tinha a lhes dizer, se não houver alguma pergunta. Se houver, eu estou à disposição.
(Pergunta: A ordem temporal, como encantaria o próprio Deus?)
É verdade. Isso eu me esqueci. É uma divagação. Essa divagação, a gente deve pôr – falando para latino-americanos, sobretudo para brasileiros – é pôr pelo meio umas divagações. Eles gostam enormemente. Eu também gosto.
Para nós termos ideia de como a sociedade temporal – lembram-se quando eu falei da sociedade temporal como um todo em certo sentido dá mais glória a Deus do que as almas individualmente. Em certo sentido. Como todas as coisas, o conjunto é melhor do que cada coisa. etc.
Então eu diria isso: que quando, afinal de contas, eu puder realizar meu velho desejo de fugir para uma gruta, levando uma coleção do Cornélio A Lapide para ler tranquilo, eu queria tirar a limpo bem… eu quereria tirar os materiais para essa divagação.
Qual é a divagação?
Vamos admitir que Adão e Eva não tivessem pecado. Eles teriam crescido e multiplicado e sua progênie teria enchido a Terra. E teria havido sociedades. Nós não podemos imaginar Adão e Eva um pouco uma edição paradisíaca do “bon sauvage” de Rousseau. É o que muita gente imagina, é completamente errado, não tem propósito. Eles tendiam a fazer uma civilização, a ter arte, enfim.
Como é que seria essa sociedade deles? Imaginado o Paraíso com os homens inocentes ali vivendo e amando a Deus, qual seria o teor de relações de Deus com eles? E como seria a sociedade deles?
Como tudo indica que o plano dEle era que em determinado momento o Verbo se encarnasse, tudo leva a crer que o Verbo Encarnado seria o Rei visível dessa sociedade. E que à espera desse Rei, tudo fosse sendo construído numa ordem magnífica à espera dEle. E que, vindo Ele, essa ordem, já pela simples presença dEle culminasse em aspectos, nem sei como, mas que Ele, pela sabedoria dEle, pela onipotência etc., galardoasse esta ordem ainda de maneiras inimagináveis.
A Encarnação teria sido o fim do mundo? Quer dizer, teria encerrado a História ou – sempre estou raciocinando sem o pecado original – ou a História teria continuado depois? E, quando é que teria cessado o mundo? Como seria o nascimento, dentro desse Paraíso, da Virgem da qual o Filho de Deus nasceria?
Seriam coisas muito belas para a gente imaginar numa ordem que seria diretamente teocrática. Porque, se Deus queria conservar – resta saber se queria, não estudei o tema – se Deus queria conservar com os homens as relações que Ele tinha com Adão, Ele descia do Céu e conversava com Adão na brisa. Então, como era isto? Ele faria com os homens também? Então teríamos uma teocracia magnífica e direta? Como seria verdadeiramente esta ordem?
Alguém dirá: “Cogitação vã, tola.”
Eu digo: Não! Cogitação que, tendo a prudência de não transformar hipótese em tese, de não transformar fantasia artística ou literária em hipótese; procedendo com os necessários cuidados nos daria, no fundo, algo de que todo homem perceba ou não perceba, é sedento. Cada ser tem uma tendência para sua própria perfeição. Ele, em algo, geme por não ter a sua verdadeira perfeição. E lhe era muito útil imaginar algo de como poderia ser a vida dos homens se não tivessem o pecado original, porque mataria nele – mataria não – poria um foco de alegria num ponto de tristeza que nós sentimos, que nós vivemos sob o peso do pecado, exilados e que nunca somos o que poderíamos ter sido.
Aqui está uma divagação feita assim a esmo, meu caro Coronel.
Bem, meus caros, “fugit irreparabile tempus”. Vamos andando.