“Bispo, Prisioneiro e Mártir do comunismo”, biografia de Dom Teófilo Matulionis

Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

“Stat crux dum volvitur orbis”

A vida de Dom Teófilo Matulionis:

exemplo de autêntico Pastor

 

 

 

 

Novembro de 1991

 

Prefácio à obra “Bispo, Prisioneiro e Mártir do comunismo”, biografia de Dom Teófilo Matulionis, de autoria do Padre Pranas Gaida

 

Quando recebi em mãos a empolgante biografia do bispo lituano Mons. Matulionis, em boa hora vertida para o português por zelosa iniciativa do meu amigo Pe. Francisco Gavenas, percorri-a de modo diverso do que faço habitualmente, quando tomo contacto com um livro novo.

Com efeito, sempre me pareceu algum tanto desordenado – salvas circunstâncias muito especiais – ver antes as fotos que ilustram uma obra, e só depois lhe ler o texto. Entretanto foi precisamente o que fiz, logo que tive em mãos El hombre de Dios, de autoria do Pe. Pranas Gaida, postulador da causa de beatificação de Mons. Matulionis. Pois deitei os olhos sobre a capa e me deparei com uma fotografia do grande bispo lituano. E, de imediato, sua fisionomia me causou tão profunda impressão, que passei a folhear o livro à procura de outras fotografias dele. Como as encontrei copiosas, e cada qual mais expressiva que a outra, as fui analisando uma a uma. O que vale afirmar que fui recolhendo sucessivas impressões de respeito e, ouso dizer, de profunda simpatia, até ter visto detidamente a última.

Realmente, no decurso de toda a minha existência, poucas foram as fisionomias que encontrei tão profundas e tão lúcidas, e ao mesmo tempo tão impregnadas de bondade, quanto a do falecido bispo de Kaisiadorys, na Lituânia. Passei, então, com avidez, à leitura do texto conciso, denso e atraente da narração de sua vida.

No início de tal leitura, dois sentimentos me dividiam. Um era o desejo de conhecer pelo menos os principais lances da história de Mons. Matulionis, ao longo dos quais lhe fora dado formar sua nobre e resoluta personalidade. O outro, que se explica em homem tão vivido quanto eu, era o receio de encontrar no livro algo que, de leve embora, deslustrasse, por pouco que fosse, sua insigne personalidade. Porém, antes de chegar ao termo da narração de sua dura e heróica existência, já não temi eu encontrar qualquer decepção. Pois não tardei em me certificar de que a alma do grande bispo e mártir era feita de uma só peça. E que, assim, ou se mantinha de pé em meio ao fragor de todas as lutas, ou, se cambaleasse e viesse a perder o equilíbrio, cairia inteira ao chão. E se me tornara a cada passo mais provável que Mons. Matulionis conservara sua alma íntegra e pura, até o glorioso dia em que, atendendo ao chamado de Deus, se evolou desta terra para o Céu.

O bispo-mártir me faz lembrar o célebre dístico que glorifica a santa Cruz na qual o Filho de Deus, com o seu sacrifício redentor, abriu para os homens as portas do Céu: “Stat crux dum volvitur orbis”: enquanto a terra gira sem cessar, a cruz se ergue imóvel.

Esse dístico lembra a vida de verdadeiro Pastor, de Mons. Matulionis. E enquanto, em torno dele e de sua atuação, de sua diocese e de sua pátria queridas, nos acontecimentos do cenário político internacional, o nazismo e o comunismo dançavam incessantemente sua farândola criminosa e macabra, Mons. Matulionis se mantinha altaneiro, e sempre fiel à Igreja de Cristo, cuja Santa Cruz sua destra empunhou e levantou bem alto, desde os primeiros passos da vida até os últimos. Como seminarista, depois pároco e por fim bispo, quer sob o regime czarista, quer, depois, sob a férula cruel do regime comunista, que o perseguiu sem tréguas nem compaixão, e o arrastou mais de uma vez ao cárcere, quer nos esplendores dos templos e da liturgia católica, quer enfim na magnificência dos Paços apostólicos do Vaticano, nos quais visitou o Papa Pio XI, então reinante, Mons. Matulionis foi sempre o mesmo. Como o mesmo continua nos páramos celestes em que, aos pés da Santíssima Virgem e do seu Divino Filho, estará rezando sempre pelos compatriotas existentes na Lituânia ou esparsos pelo mundo.

Ao concluir a leitura dessa biografia tão marcante, fica-me sobretudo impressa no coração a cena comovedora de seu encontro com Pio XI, o Papa das duas grandes Encíclicas, Divini Redemptoris, contra o comunismo, e Mit brennender Sorge, contra o nazismo. Ao aproximar-se do Vigário de Cristo, Dom Matulionis ajoelhou-se. O Santo Padre o levantou, ajoelhou-se ele mesmo, e disse: “Sois um mártir, vós é que deveis abençoar-me em primeiro lugar”.

Por certo, os admiradores de Mons. Matulionis deplorarão não encontrar nesta sua biografia a narração bem circunstanciada dos múltiplos atos de heroísmo praticados por ele face ao comunismo, os quais lhe valeram do Vigário de Cristo uma homenagem que poucas vezes um Papa terá prestado a um simples mortal. Todos gostaríamos de conhecer, com riqueza de pormenores, não só algumas, mas todas as sucessivas confrontações que teve com os “juízes” e os torcionários comunistas. Quereríamos edificar-nos vendo-o dia-a-dia incomovível sob o látego dos verdugos e as humilhações dos carcereiros. Precisamente como análogos fatos se conhecem da vida do grande Cardeal Mindszenty, Arcebispo-Príncipe de Esztergom, na Hungria, ou do imortal Cardeal Stepinac, Arcebispo de Zagreb, na Iugoslávia.

Mas a explicação desta limitação que se impôs o autor parece fácil. Quando a obra do Pe. Pranas Gaida foi escrita, nem a cortina de ferro caíra, nem na Rússia soviética começara a soprar a ligeira aragem de liberdade que ali se respira, nem as posteriores transformações da assim chamada URSS haviam desfechado numa solta confederação de Estados quase independentes, nem – sobretudo – a Lituânia conquistara ainda sua gloriosa independência, hoje reconhecida por perto de 60 Estados.

É de supor que o autor da obra (editada pela primeira vez em Roma, em 1981) receasse que, se nela inserida a narração minuciosa dos fatos aqui aludidos, daí depreendesse a inexorável KGB que o intenso sentimento anticomunista que já soprava nos meios lituanos de Roma haveria de redobrar de força de impacto, agravando ainda mais as tensões entre a Santa Sé e Moscou. Isto criaria obstáculos à sorrateira Ostpolitik que o Kremlin queria a todo custo ver instaurada em relação ao Vaticano. Terá o autor, pois, suposto ser preferível omitir a narração de tudo quanto a censura comunista não houvesse de tolerar: duro preço a pagar para que esta biografia, apesar de assim reduzida, pudesse circular de mão em mão na opressa população lituana, levando-lhe o alento espiritual do perfume de ao menos alguns dos grandes aspectos da vida do bispo ante quem Pio XI dobrou os joelhos.

De qualquer forma, aqui fica a expressão de nosso vivo desejo de que a próxima edição da presente obra apareça enriquecida de tudo aquilo que a tirania comunista tenha forçado a passar sob silêncio.

O presente texto foi escrito poucos dias após o Brasil ter reconhecido a independência gloriosamente conquistada pela nação lituana. Depois de haver enviado uma carta em que, na qualidade de Presidente da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade – TFP, e no meu próprio, felicito o Presidente Vytautas Landsbergis pela vitória inteira e definitiva da nação lituana sobre o sinistro moloch soviético, cabe-me registrar aqui minha satisfação pelo fato de as quinze TFPs coirmãs e autônomas existentes nos cinco continentes, bem como os cinco Bureaux-TFP encarregados da difusão do pensamento dessas entidades em outros tantos países, haverem prestado sua entusiasmada colaboração em favor da independência da Lituânia, Terra Mariae, num momento em que a causa dessa valorosa nação se encontrava abandonada por todas as chancelarias do Ocidente, e vista com frieza pelo imenso e poderoso conjunto de meios de publicidade, que constituem a mídia do mundo livre.

Para quebrar esse gelo moral, e levar expressivo reconforto ao povo lituano, a vasta rede das TFPs organizou uma campanha internacional de abaixo-assinado – um dos maiores da História – que alcançou o total de 5.212.580 assinaturas. Os microfilmes deste abaixo-assinado foram levados a Vilnius por uma Comissão inter-TFPs, constituída de onze membros e presidida pelo diretor do Bureau-TFP de Paris, o meu dileto amigo, Dr. Caio Vidigal Xavier da Silveira. O ato de entrega ao Presidente Landsbergis foi efetuado em seu gabinete, localizado no Palácio do Parlamento [foto acima].

Em seguida, atendendo a desejo manifestado por destacadas personalidades lituanas, a Comissão inter-TFPs percorreu o trajeto de Vilnius a Kelme, em peregrinação no dia 8 de dezembro de 1990, que incluiu a capela de Nossa Senhora Porta da Aurora e o santuário de Siluva, tendo visitado de passagem o impressionante Monte das Cruzes, junto ao Rio Kulpe. A Comissão foi recebida festivamente pelos párocos e grande número de manifestantes católicos em todas as localidades do trajeto. Particularmente digna de memória foi a audiência com que S. E. o Cardeal-Arcebispo de Kaunas e Primaz da Lituânia, Mons. Vincentas Sladkevicius, acolheu a Comissão inter-TFPs, cujos membros foram por ele declarados “cidadãos da Lituânia”.

Seja dito, ao fim, que a caminho de Vilnius, a Comissão inter-TFPs tivera de passar por Moscou, onde fora amavelmente hospedada na Embaixada da Lituânia, graças ao gentil convite do deputado Antanas Racas, membro da Comissão de Relações Exteriores do Parlamento lituano e acompanhante oficial da delegação durante toda a estadia. De Moscou a Vilnius, a Comissão teve a honrosa e simpática companhia de Mons. Juozas Zemaitis, Bispo de Mariampole, que não poupou elogios à atuação das TFPs em prol da Lituânia.

Tanto o Presidente Landsbergis quanto membros do Parlamento lituano insistiram para que a Comissão entregasse a Gorbachev uma carta expondo os resultados da campanha da TFP, o que efetivamente ocorreu nos próprios escritórios do presidente soviético, quando de uma segunda viagem da Comissão a Moscou. Como desejado pelo Chefe de Estado e parlamentares lituanos, a carta continha uma nota de enérgico protesto contra a atitude injusta e cruel do Kremlin em face da Lituânia. Como era de esperar, a Comissão não foi recebida. Mas a corajosa nota de protesto foi deixada, devidamente protocolada, em mãos de uma funcionária.

Em estadia anterior em Moscou, os membros da Comissão, num gesto de especial destemor, se haviam postado no centro da Praça Vermelha, onde desfraldaram o heráldico estandarte de nossa entidade, lançando nos ares gélidos da Rússia o brado tantas vezes levantado pelas TFPs em todos os continentes: “Por Maria: Tradição, Família, Propriedade!” Ao mesmo tempo, dos corações de todos se erguiam preces à Santíssima Virgem pela pronta libertação da Lituânia, da Rússia, e de todas as nações ainda cativas.

Pouco depois do regresso da Comissão inter-TFPs, tive a satisfação de, na qualidade de Presidente do Conselho Nacional da TFP brasileira, e devidamente credenciado pelos Srs. Presidentes das TFPs coirmãs, dirigir ofícios a todos os Chefes de Estado do mundo livre, pedindo-lhes que reconhecessem quanto antes a independência da Lituânia.

* * *

É-me grato recordar esses fatos em que corações de católicos dos cinco continentes pulsaram em uníssono com os corações dos lituanos residentes em sua valente pátria, como em tantas terras de exílio, nas quais se haviam fixado com resignação cristã, nelas trabalhando com afinco e êxito, e às quais se ligaram afetivamente, a ponto de fazerem de cada uma sua segunda pátria.

Escrevendo, penso de modo especial na querida colônia lituana difundida pelas vastidões de nosso território-continente, e aqui instalada numa convivência ininterruptamente fraterna, desde há já cinqüenta anos. Penso especialmente na simpática colônia lituana de Vila Zelina, em São Paulo, em torno de sua piedosa e recolhida Matriz. Penso nas famílias lituanas, tão operosas e dignas, que ali residem. E penso com respeito e especial simpatia no clero dessa paróquia, e notadamente em meu distinto amigo Pe. Gavenas.

Unamo-nos todos em uma prece à Santíssima Virgem, para que, na independência reconquistada, a Lituânia continue a ser – e cada vez mais – Terra Mariae. E que naquelas frígidas e formosas vastidões em que a colocou a Providência, ela continue a erguer, com santa ufania e apostólico ardor, o lábaro de sua fé católica, de sorte a atrair para a Santa Igreja Católica os povos protestantes e greco-cismáticos que a rodeiam.

Nota: Os negritos foram postos por este site.

 

 

Contato