“Cartas sobre a Inquisição Espanhola” de Joseph de Maistre

“Cartas sobre a Inquisição Espanhola” de Joseph de Maistre, publicada pela revista “Leituras Católicas”, Ano LIX, Setembro de 1949, n° 712

Nota biográfica sobre o Sr. José Gustavo de Souza Queiroz [*]

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José Gustavo de Souza Queiroz

Muito se tem falado contra a moderna tendência de subestimar a pessoa humana. Os efeitos desta tendência se fazem sentir em todos os campos: na filosofia, na política, na economia, na arte. Uma de suas manifestações mais características está no modo porque muitos de nossos contemporâneos julgam os homens de relevo. Só tributam admiração ao êxito e não compreendem nem a grandeza, a nobreza, a glória de uma derrota ilustre: a dos troianos, por exemplo. Só lhes prende a atenção o vencedor. Mas a própria pessoa do vencedor não é o pólo de atração de seu interesse e de sua admiração. Não lhes importa tanto saber quem ele é, qual sua formação, qual sua mentalidade, a que qualidades morais deveu o sucesso, que dificuldades interiores teve de vencer para formar sua personalidade, em que lances e peripécias essa personalidade foi posta à prova. Todos estes pontos, em que se esmeram os biógrafos de fibra, passam hoje para o segundo plano. O essencial é conhecer a importância da obra realizada, o vulto do adversário abatido, ou, em termos mais precisos, o valor do espólio de guerra. E como isto se aquilata mais facilmente pelos aspectos materiais, em última análise, no julgamento de um grande acontecimento histórico, o vencido sempre menos do que o vencedor, o vencedor vale menos do que a vitória, e a vitória vale menos do que as vantagens materiais que ela produz. Nesta escala de valores a pessoa humana é colocada no mais baixo nível, e, em uma palavra, o espírito é desprezado em benefício da matéria.

Quem tenha a mentalidade assim formada, não compreenderá que se considere digno de recordação um jovem que, aos 31 anos, deixou esta vida sem ter concluído, das muitas obras com que sonhava e cuja realização resolutamente iniciara, senão este trabalho que hoje, sai a lume.

Até neste ponto, José Gustavo de Souza Queiroz foi para seus contemporâneos uma antítese e um exemplo. Não é possível compreendê-lo, e menos ainda admirá-lo, sem fazer tábula rasa da escala de valores que cada vez mais se vai tornando corrente e habitual. Este jovem, que “realizou” pouco – ao menos no sentido pragmatista desta expressão – este jovem valeu muito, e levou a termo uma obra considerável. Como sua obra foi essencialmente interior, espiritual e ideológica, é possível que não a apreciem nem a compreendam as mentalidades “positivas” ou “realistas”. Mas ainda são numerosos, graças a Deus, aqueles para quem as coisas do espírito figuram na primeira plana. Eles terão, sem dúvida, interesse em conhecer a obra prima que José Gustavo deixou realizada: a sua personalidade complexa e harmoniosa, delicada e nítida.

Esta personalidade, tão original e tão cheia de contrastes aparentes, se marcou vivamente nos muitos e vastos ambientes em que José Gustavo viveu: as numerosas famílias com que era aparentado, ou cuja casa freqüentava como amigo, os colegas dos bancos ginasiais ou universitários, os amigos de clube e de sociedade, os irmãos de luta nas fileiras das Congregações Marianas, da Juventude Universitária Católica, da Juventude Operária Católica, os aviadores, homens de negócios de São Paulo, na Noroeste e em São Sebastião, intelectuais, militantes monarquistas, humildes operários, os colonos de fazenda, enfim as mil pessoas de todas as idades, classes e profissões com que José Gustavo teve oportunidade de tratar, lerão por certo, com emoção e prazer, algumas linhas em que, embora de modo perfuntório e sem atavios, se lembra sua figura esguia, nobre, simples e pura.

José Gustavo – convém lembrá-lo – foi, sob muitos aspectos, um batalhador que teve que sustentar choques rudes, e incompreensões obstinadas, em muitos dos ambientes em que viveu. Praza a Deus, que estas páginas de recordação, pondo em evidência os princípios profundos a que toda a sua vida obedecia, facilitem a compreensão do grande exemplo que sua vida foi para nós, e concorram para atrair os espíritos para os ideais transcendentes, para os quais José Gustavo viveu, e pelos quais, como se verá, ele morreu.

Uma rápida evocação de um passado ainda muito próximo, nos facilitará a análise da mentalidade de José Gustavo, e da atitude que tomou perante os problemas e os homens do nosso tempo.

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Na vida de José Gustavo, temos duas fases a distinguir: uma, que não sem alguma impropriedade se poderá chamar a escolha do rumos ideológicos, foi até os 17 ou 18 anos; a outra se estendeu até sua morte, e constitui a aplicação, na prática, dos princípios que adotara.

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A primeira fase de sua história interior começou cedo. José Gustavo abriu muito precocemente os olhos para a análise da vida, movido por um espontâneo pendor para a meditação, pendor que sua situação de filho único naturalmente acentuava. Assim, nesta primeira fase ainda alcançou ele o quadro pitoresco e complexo da sociedade paulista de antes de 1932. Esta sociedade de agricultores e bacharéis, era composta quase toda ela de “famílias de quatrocentos anos” nas quais as outras camadas reconheciam tacitamente uma genuína preeminência conferida pela tradição gloriosa das Bandeiras, pelas reminiscências nobiliárquicas do Império, pela linha de elegância modelada no contacto assíduo com as modas, as maneiras e o bom gosto de Paris, pela estabilidade financeira, tida por inabalável, da rubiácea por tanto tempo em alta firme e declarada nos melhores mercados do mundo. Esta “gentry” culta e agradável sofreu um profundo abalo em 1930, mas só recebeu de fato o seu golpe mais rude em 1932, quando a derrota de nossa aristocracia rural cafeeira reeditou em São Paulo muitos dos episódios da derrota trágica da aristocracia dos Estados do Sul, ao cabo da Guerra de Secessão. Assim pois – pelo menos em suas linhas muito genéricas – o quadro que José Gustavo teve diante dos olhos desde menino se conservou o mesmo até 1932, quando completou os seus 18 anos. Foi, à vista deste quadro, vivendo e sofrendo em si mesmo os problemas que em grau maior ou menor se faziam sentir em todos os de seu ambiente e de sua geração, que José Gustavo fixou os rumos de sua evolução interior.

Não faltavam à nossa classe, na geração que nos precedeu, homens de alta e lúcida inteligência, espíritos de requintada finura, que possuíam sólida instrução e, muito mais do que isto, verdadeira cultura.

É preciso reconhecer, no entanto, que quase todos eram genuínos “diletanti” isto é, que havia neles uma cisão absoluta entre a vida pessoal, doméstica ou política, e os grandes problemas humanos sobre os quais discorriam os livros que liam com tanto interesse. O destino eterno do homem, os fundamentos da moral, a procedência ou improcedência das doutrinas em que se fundam a propriedade, a família, a liberdade, o Estado, todas estas questões os interessavam, nenhuma os atormentava. Numa zona especial e como que olímpica de seu espírito, desposavam eles as opiniões mais diversas e até mais audaciosas, como o evolucionismo materialista e determinista, com seus corolários políticos e sociais. Mas estas doutrinas ficavam congeladas nos cimos de suas cogitações de “diletanti”. Na vida prática, eram proprietários zelosos de seus direitos, membros devotíssimos de uma grei política nitidamente conservadora, chefes de família ciosíssimos de que se observassem em suas casas os princípios rígidos da moral tradicional em que haviam sido criados. Esta cisão, entre a vida das idéias e a dos fatos, não os molestava. Os problemas ficavam para os livros e para os gabinetes de estudos. Na vida quotidiana, tudo se guiava por uma tradição secular, que continuava a ser, indiscutivelmente, a norma essencial.

Esta contradição, que era sobretudo nítida nos letrados de nossa “gentry”, também se notava no modo de pensar, sentir e viver, dos que se preocupavam menos com os problemas da cultura. Uma série de pequenas contradições pintará perfeitamente esta situação.

Em tese, a imensa maioria de seus componentes se dizia e imaginava realmente ser republicana e democrática. Como tal, professava um igualitarismo ideológico absoluto.

Isto não obstante, um espírito de seleção muito discreto mas ativo, continuava a manter a “gentry” paulista como uma das classes mais fechadas do país. Nesta classe, as maneiras aristocráticas de estilo francês eram ainda o modelo geralmente aceito como genuíno, as preocupações nobiliárquicas e genealógicas não deixavam de se manifestar de quando em vez, embora sem espalhafato nem charlatanice, e, ao mesmo tempo que em geral se mostrava com prazer uma galeria de quadros de ancestrais afidalgados, as relações jamais interrompidas com a Família Imperial deixavam filtrar aqui e ali uma nostalgia, ora consciente, ora subconsciente, do regime monárquico.

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No terreno religioso, o mesmo se dava. Uma senhora sem Religião, quase não se encontrava. Impunha-se para a mulher a mais rigorosa observância da moral cristã. Já para o homem reputava-se muito mais apropriado que não tivesse Fé. O bom gosto consistia em dizer-se “espírito forte”. Admitia-se porém que um homem fosse deísta ou até mesmo cristão. Tolerava-se o católico. Tolerava-se menos bem que o católico fosse praticante. E se ele praticasse integralmente a moral ensinada pela Igreja, ele corria risco de ser um verdadeiro “excomungado”: mariola, maricas, carola, efeminado, era apontado com o dedo, perseguido por todas as chacotas, ridicularizado e flagelado de modo tão generalizado, com toda a sorte de sarcasmos e invectivas, que ficava na alternativa de ceder, ou de ser um perpétuo alvo de contradição em todos os ambientes que freqüentasse. Isto não obstante, a educação dos filhos era sempre confiada a Colégios de Sacerdotes, onde se ensinava nas cátedras essa moral tão degregada na prática.

Tal era a fisionomia a um tempo respeitável e cheia de lamentáveis contradições de uma sociedade brilhante, forte na aparência, mas fadada a sofrer uma crise profunda, que dia a dia se tornava mais inevitável.

Diante desta sociedade, com os problemas de cultura e de consciência que ela formulava, José Gustavo de Souza Queiroz tomou uma atitude de eqüidade e sobranceria admirável. Ele a contrariou de frente no que lhe pareceu que o devia fazer. Mas ninguém compreendeu melhor no que ela tinha de verdadeiramente grande, ninguém previu com mais dor o futuro difícil que a esperava, nem procurou prolongar por mais tempo sua influência, do que ele.

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Quem tiver lido “Confiteor” de Paulo Setúbal, compreenderá sem dificuldade o que aqui ficou dito. Muito mais velho do que José Gustavo, Paulo Setúbal conheceu entretanto os mesmos problemas que ele, pois que José Gustavo alcançou os últimos anos de uma era de nossa história político-social, que Paulo Setúbal viveu no seu apogeu. Dizendo isto, pensamos especialmente na descrição do ambiente colegial, que Paulo Setúbal conheceu no Ginásio do Carmo, mas que em linhas gerais era o mesmo em todos os estabelecimentos de ensino daquele tempo.

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A família de José Gustavo conserva dele um retrato de seu tempo de colegial. É o protótipo do menino meigo, inocente e reto. Esse retrato espelha bem sua alma, como ela foi durante toda a vida, e como se apresentou ao julgamento do Criador. Não se pense, porém, que tais qualidades, fruto de disposições naturais excelentes, de um ambiente doméstico excepcionalmente bom, de uma educação a um tempo varonil e esmerada, nada tenham custado a José Gustavo. É possível, e até muito provável, que ele as tenha adquirido sem grande dificuldade. Mas não foi sem os maiores sacrifícios que ele as conservou.

Os primeiros passos que com responsabilidade pessoal e própria damos em nossa trajetória, longe das asas tutelares da família, são os da vida escolar. Logo nesses primeiros passos, tão despreocupados e alegres para a maior parte dos meninos, José Gustavo sentiu o embate rude dos problemas que haveriam de encher sua existência. Posso dizê-lo por ter recebido dele várias confidências e também pelo que a seu respeito me contaram contemporâneos e colegas.

Todo o colégio é um microcosmo em que se refletem, quase sempre com exagero e por vezes de forma até tempestuosa, as preocupações, as idéias, as tendências do ambiente doméstico e social de cada aluno. Ao tempo em que José Gustavo era menino, ainda sopravam as rajadas do “após-guerra”. O término da Primeira Guerra Mundial trouxe uma verdadeira revolução, que derrubou na Europa vários tronos e democratizou no mundo inteiro os costumes. As maneiras ditas “americanas” dominavam absolutamente a geração nova. E por “maneiras americanas” se entendiam entre meninos os modos desabusados e brutos, a sensualidade precoce e desbragada, o espírito de revolta contra toda lei e toda autoridade, em que eram exímios os “cow-boys” que então faziam furor. Longe das vistas de mestres e vigilantes, até nos melhores colégios, as maneiras, as opiniões, os assuntos eram inteiramente dominados por esse gênero de “americanismo”. Ora, José Gustavo trazia para essa atmosfera elementos psicológicos inteiramente diversos: maneiras delicadas, gosto decidido por assuntos intelectuais, horror a qualquer forma de brutalidade e de imoralidade, amor ao passado, indiferença pelas “novidades americanas”. Todo o ambiente, ainda que de meninos, procura sujeitar os elementos heterogêneos, ou expulsá-los. José Gustavo, que sentiu desde logo a imensidade da distância psicológica que o separava dos colegas, nem podia desertar do ambiente a que o prendiam as obrigações escolares, nem queria deixar-se dominar por ele. Daí um estado de luta declarada, que muito o fez sofrer. Está na natureza do homem temer por vezes mais o ridículo do que a morte. E tanto é isto real, que muitos homens afrontam a morte só para não parecer ridículos. José Gustavo, incompreendido por grande número de colegas, alvejado incessantemente pelo sarcasmo e pelo ridículo, mostrou nessa emergência uma independência de espírito que muitos homens adultos lhe poderiam invejar. Sempre afável e acolhedor, sempre disposto a perdoar e a esquecer, José Gustavo não queria porém transigir. Nisto, aquele menino franzino e delicado até o excesso, se mostrou inflexível e invencível. Mesmo fora da vida escolar, nos clubes que freqüentava, nas relações sociais que mantinha, a mesma situação se definiu. Sei que José Gustavo sofreu cruelmente com isto. E, ao mesmo tempo em que a luta e o sofrimento temperavam seu espírito ainda juvenil, iam tomando vulto e amadurecendo em seu espírito as impressões e as tendências que haveriam de dar sentido a toda a sua vida.

Quando chegou aos 16 anos, José Gustavo, que já tinha enriquecido o espírito por estudos seguidos, e por viagens pela Europa, continuava a sentir toda a pressão que o ambiente exercia sobre ele. Parece, mesmo, que no pórtico da mocidade chegou a ficar às vezes em um estado de alma vizinho do desalento. Mas Deus tem seus caminhos. Ele não abandonaria esse jovem que poderia ter, por seu nome e sua fortuna, uma situação despreocupada, e que para se manter fiel a seus princípios só vivia como em uma arena de luta, num ambiente que para toda a “jeunesse dorée” era um campo de prazer. Na situação moral crítica em que se achava, bateu ele às portas da Congregação Mariana da Paróquia de Santa Cecília. O movimento de moços católicos era então uma grande e confortadora novidade. Por toda a parte, as Congregações Marianas se fundavam, rivalizando cada qual com as demais, em zelo, valor cristão e afoiteza apostólica. José Gustavo encontrou aí o ambiente ideológico, a atmosfera de compreensão e solidariedade propícia à definitiva formação e à vigorosa expansão de sua personalidade. Em contato com a força viva do movimento mariano, o espírito religioso de José Gustavo tomou um grande incremento. Ele, que aliás sempre fora religioso, tornou-se muito mais sólido e profundo em suas convicções, mais metódico e assíduo na sua piedade, mais firme em suas excelentes disposições. No convívio com a Igreja, sua doutrina, seus Sacramentos, suas instituições e atividades, os horizontes ideológicos de José Gustavo se ampliaram muito. E tudo quanto nele havia de bom evoluiu de forma a constituir um corpo de doutrinas e opiniões que eram o próprio fundo da mentalidade de José Gustavo.

A visceral contradição de idéias e tendências na qual vivia plácida e euforicamente a sociedade de então se delineou aos olhos de José Gustavo como um estado de coisas eminentemente censurável e precário, já que nada é mais essencial e irremediavelmente precário, mais incontestavelmente censurável do que a contradição.

José Gustavo discerniu muito bem, no estado de espírito então dominante, duas influências que “hurlent de se trouver ensemble” [urram de se encontrarem juntas], a saber, a tendência tradicional católica, hierárquica, contra-revolucionária; e a tendência moderna ímpia, racionalista, socializante, niveladora. Nessa quadra ideologicamente heterogênea, dia a dia a influência tradicional e cristã ia sendo devorada pela influência “avançada” e anticristã. Dia mais, dia menos, os valores fundamentais de que ainda vive a civilização – isto é, a Fé, a moral cristã, o respeito às tradições – desaparecerão tragados pelos “valores” novos: o gosto de viver, a sensualidade, a aversão a todas as barreiras, restrições e freios. José Gustavo via muito bem que, diante de seus olhos, um mundo agonizava, e outro nascia. O mundo que parecia agonizar estava marcado com o sinal de Cristo. O mundo que nascia estava marcado com o sinal do anti-Cristo.

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Assim considerada, a situação só comportaria duas soluções: ou o Catolicismo em sua acepção mais genuína, mais pura, mais ortodoxa, mais coerente, ou o comunismo. Em suma, ou a Fé até suas últimas conseqüências, ou a impiedade, também até suas últimas conseqüências.

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É interessante notar a esta altura um traço comum entre José Gustavo e seus companheiros de geração que chegaram até o extremo oposto. Nascidos uns e outros em uma atmosfera que vivia sob o signo da contradição, perceberam o insustentável da situação, e procuraram resolvê-la. E, assim, uma geração essencialmente “moyen-terme”, como a dos fins do século XIX, teve frutos essencialmente extremados. A mocidade católica de um lado; de outro lado, a mocidade comunista anticatólica e inimiga da civilização cristã são o fenômeno característico do período “pós-32”. José Gustavo estava, pois, na linha vanguardeira de sua geração.

Todos estes problemas e preocupações não podiam deixar de levar José Gustavo aos estudos de História, de filosofia social e de sociologia a que se dedicou com fervor. Naturalmente, conheceu a Encíclica “Parvenu à la Vingt-cinquieme Année” de Leão XIII, que aceitou sem reservas: a História é, a partir do Protestantismo, uma série de revoluções em que se foi decompondo e desarticulando sucessivamente o corpo harmônico e orgânico da Cristandade Medieval. O Protestantismo foi a revolta niveladora e anti-sacral na Religião. A Revolução Francesa foi a mesma revolta na política. O Comunismo é ainda a mesma revolta na economia e na organização social. Três catástrofes, três degraus ao fim dos quais nos espera a dissolução da civilização, se o mundo se obstinar em não ouvir o chamado do Bom Pastor.

Assim, pois, a grande tarefa de todas as forças vivas da sociedade consiste em cortar o passo à Revolução, em reavivar todas as tradições, suscitar todas as tendências, todas as energias novas e velhas que se lhe possam opor.

Filho de tradicionais famílias paulistanas, ligadas por grandes reminiscências e por hábitos ainda vivos ao espírito do patriarcado rural dos antigos paulistas e ao Império, José Gustavo – fazendo uso da liberdade que a todos os católicos assiste de optar, dentre aquelas que a doutrina da Igreja admite como legítimas, pela melhor forma de governo para seu país – era monarquista, favorável ao regime ao mesmo tempo aristocrático e corporativo que caracterizou a sociedade medieval. De Maistre, Veuillot, o carlismo espanhol resumiam e representavam bem os seus ideais religiosos e político-sociais.

Enquanto assim se fixavam as idéias de José Gustavo, não só em conseqüência de leituras e estudos, mas pela assídua freqüentação de ambientes intelectuais, sua personalidade se ia gradualmente completando, de forma a assumir o feitio definitivo.

Ao mesmo tempo que isto se passava, o triunfo incontestável do movimento de moços católicos desmoralizou o anticlericalismo vulgar que até então imperava, e fez cair aos pés de José Gustavo muitas barreiras e oposições. Um ambiente de maior compreensão se abriu diante dele nas esferas sociais ou estudantis. E, passando de uma atitude meramente defensiva a uma ação de apostolado e conquista, ele se atirou nitidamente a uma atividade de proselitismo a que se dedicou até os últimos dias com todo o vigor.

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A personalidade de José Gustavo, suas maneiras, seus gestos, sua apresentação, tudo enfim sofreu nesta fase o reflexo de idéias tão altas, tão coerentes, tão consentâneas com suas tendências profundas. Estas modificações foram naturais, porém não irrefletidas. Aproveitando com critério suas disposições, melhorando-as, podando-as e limando-as impiedosamente em muitos pontos, José Gustavo cultivou com esmero sua personalidade. Para isto, teve de levar a termo uma obra difícil. Suas idéias lhe impunham o dever de encarnar em si o tipo de jovem que sabe ser puro e varonil, reacionário sem anacronismos, amigo da hierarquia sem ser tolo nem pretensioso, amigo dos pobres sem ser demagogo nem vulgar. Como realizar este programa de construção interior? Prudente mas resolutamente, José Gustavo se atirou à obra. Esta obra foi sua grande realização e ele a executou com um discernimento, um bom senso, uma noção das proporções que dia a dia se tornavam mais seguros.

Pude observar pessoalmente o curso desta evolução espiritual. Conheci José Gustavo quando ele tinha 16 anos, eu 22. Lembro-me ainda dele como se fosse hoje. Magro, e, mais do que magro, longilíneo, bastante alto, braços estirados que se moviam muito, com gestos ainda algum tanto infantis, míope em extremo, e não usando ainda óculos, de sorte que era obrigado a deter muito o olhar sobre as coisas, o que lhe dava uma expressão peculiar, cabeleira fina, muito abundante, com um topete farto posto ao vento, dentes perfeitos, riso franco, aberto e bonito, muito alegre à primeira vista, mas com um fundo de seriedade e até de melancolia que um observador perspicaz poderia facilmente notar, José Gustavo ainda era um menino. Aos 30 anos, continuando sempre muito igual ao que tivera sempre de essencial, José Gustavo entretanto se modificara em muitos pontos… para se tornar mais ele mesmo. Habitualmente ele se distinguia aos trinta anos por um fundo de seriedade e até de gravidade, um porte nobre e afidalgado que, precisamente por ser afidalgado, não excluía uma simplicidade absoluta. Seus gestos se tornaram menos abundantes, e mais comedidos. Movia muito, mas compassadamente as mãos, belas mãos, longas e finas, nas quais se notava sempre um anel com brasão. Seu trato era agradabilíssimo, sua igualdade de gênio perfeita. Mantinha uma naturalidade absoluta com pessoas de todas as idades e condições. Ninguém sabia, melhor do que ele, conversar com senhoras. Era, em suma, um homem de sociedade. Culto, familiarizado com o francês, o alemão, o inglês, o italiano e o castelhano, lendo latim, conhecendo bem história, filosofia, literatura, arte, tocando bem piano, declamando de maneira agradável, José Gustavo tinha todos os predicados da excelente companhia. Sabia nivelar-se a todos os ambientes, sem nunca descer. Se apreciava muito as conversações substanciosas e elevadas, gostava igualmente de conversas joviais e espirituosas, nas quais se manifestava excelente, dando mostras de um temperamento alegre que lhe vinha em boa parte da inalterável pureza de alma e de corpo que durante toda a vida conservou.

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Reacionário, no mais alto e nobre sentido deste belo vocábulo, cristão entretanto por índole, convicção e feitio, José Gustavo estava longe de ser um adversário das outras classes sociais. Pelo contrário, foi um dedicado amigo dos pobres. Como presidente da JOC, José Gustavo, durante muito tempo foi a bairros distantes, fazer reuniões de operários, no que parecia encontrar uma verdadeira satisfação. Para os colonos de sua fazenda, era um genuíno protetor. A muitos, ligou-se por amizade pessoal. José Gustavo passava longas horas em prosa com eles. Vi um deles que, no dia de seu enterro, chorava. Este jovem tão energicamente antidemagógico e contra-revolucionário era, como bom católico, um lutador entusiástico em favor da classe operária. Se tinha muitos amigos pobres, em compensação nunca o vi tributar ao dinheiro e aos que o possuem a idolatria tão freqüente em nossos dias. Pelo contrário, notei sempre e admirei a consideração especial que ele timbrava em dispensar a parentes empobrecidos, que ele tratava com requintes de simpatia e atenção, hoje raramente dispensados aos que perderam os favores da fortuna.

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Ultramontano frontalmente hostil ao espírito dominante de nosso tempo, José Gustavo era entretanto exímio no se utilizar do que nosso século tem de profícuo e lícito. Assim, era um excelente automobilista e um aviador experimentado, que estava em vésperas de obter o “brevet” quando a enfermidade o colheu de surpresa.

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Detestando o espírito de materialismo que tão desabridamente domina muitos ambientes esportivos, inimigo declarado de esportes como o box, em que este espírito se manifesta de modo tangível, José Gustavo era entretanto assíduo e destro na prática dos exercícios físicos, lícitos e consentâneos com sua mentalidade: nadava e remava bem, montava com desembaraço e agilidade, e, se não me engano, por algum tempo também se dedicou à esgrima.

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José Gustavo, de corpo e alma, se votara ao serviço da Igreja e ao apostolado. Essa era a essência de sua vida. Comungava diariamente, diariamente fazia sua meia hora de meditação e rezava o Rosário de Nossa Senhora. Seus companheiros de Congregação Mariana e de Ação Católica eram seus melhores e mais constantes amigos. Ao lado de sua família, que amou extremosamente, José Gustavo tinha uma segunda família nos redatores do hebdomadário católico “Legionário”.

Em 1935, desejando incrementar a imprensa católica, a Autoridade Eclesiástica voltou suas vistas para o quinzenário das Congregações Marianas de Santa Cecília, “Legionário”, que se publicava há já vários anos com geral agrado. Deliberou a Autoridade Eclesiástica, nessa ocasião, atrair para a redação do jornal todos os acadêmicos e intelectuais da Congregação, e transformar o “Legionário” em hebdomadário.

Entre os novos redatores da folha, começou a figurar então José Gustavo.

Nessa nova etapa de sua existência, o “Legionário” continuou inteiramente a serviço da causa católica, tendo como característica toda especial uma intensa devoção a Nossa Senhora e ao Papa.

Os temas marianos constituíram matéria predileta do jornal, que nada poupou para defender e inculcar a devoção a Maria Santíssima, sua Padroeira.

Outrossim, o “Legionário” empenhou os melhores esforços para estimular em seus leitores a devoção ao Romano Pontífice, pelo conhecimento das Encíclicas e sua aplicação aos problemas de nossos tempos. Não uma aplicação frouxa em assuntos de menor monta; mas uma aplicação efetiva e profunda nos assuntos mais transcendentais de nosso tempo.

Essa orientação despertou aplausos entusiásticos, e a influência do “Legionário” se estendeu gradualmente, ultrapassando as fronteiras de São Paulo, e estendendo-se até os últimos confins do Brasil.

O verdadeiro apostolado cria uma profunda amizade entre os apóstolos. Os mesmos ideais de santidade e conquista para Cristo Nosso Senhor, os mesmos combates, os mesmos sofrimentos, inseparáveis de qualquer iniciativa do bem, acabam por amalgamar as almas, identificando-as entre si, porque sempre mais identificados com o Modelo divino, Jesus Cristo. O dogma da Comunhão dos Santos, do Corpo Místico de Cristo, é muito mais profunda e salutarmente vivido por aqueles que se consagram totalmente à edificação do mesmo Corpo Místico, dilatando o reino de Cristo entre os homens.

Foi o que sucedeu aos rapazes que receberam da Autoridade Eclesiástica o honroso, mas também pesado encargo de manter o semanário católico da Arquidiocese paulista. Vieram a formar uma segunda família, na qual José Gustavo tanto e tão completamente se fundiu, cujas idéias fez tão profundamente suas, cuja atividade era de tal maneira o próprio centro de sua existência que, como veremos, ele ofereceu sua vida pelo apostolado de seus amigos.

Fazendo a ligação entre este grupo de leigos e a Hierarquia na qualidade de Assistentes Eclesiásticos, e por isto mesmo exercendo uma ação decisiva na formação e orientação dos redatores, estavam dois Sacerdotes de excepcional inteligência, sólida cultura, ortodoxia sem mácula, apego verdadeiramente irrestrito e dedicação total ao Sumo Pontífice: Dom Antônio de Castro Mayer, então Assistente Geral da Ação Católica, mais tarde Vigário-Geral da Arquidiocese, e hoje Bispo Coadjutor de Campos, e Dom Geraldo de Proença Sigaud, membro da ínclita Sociedade do Verbo Divino, professor e vice-reitor do Seminário do Espírito Santo em Santo Amaro, hoje Bispo Diocesano de Jacarezinho.

As refregas do apostolado provaram de mil modos estes amigos que sempre mais se uniam para colaborar, quanto lhes fosse possível, com a Sagrada Hierarquia, na difusão da vida católica, sem nenhuma transação com os inimigos da Igreja nem tergiversação diante dos perigos e dificuldades.

Aquele punhado de amigos, verdadeiro “pusillus grex” de que fala o Evangelho, veio a constituir assim uma falange aguerrida que, do púlpito uns, outros da cátedra universitária, da tribuna ou da imprensa, exerceram desde 1935 funda influência em todo o Brasil católico.

Não é fácil enumerar as opiniões comuns, ao serviço das quais se puseram estes rapazes. Em espiritualidade, o melhor de seu entusiasmo vai para Santo Inácio de Loyola e São Luiz Maria Grignion de Montfort; em matéria filosófica para São Tomás de Aquino; em matéria político-social para De Maistre e Veillot, em todos os assuntos sua preocupação dominante consiste em pensar com o Papa, sentir com o Papa, lutar pelo Papa e servir o Papado de todos os modos e em todos os terrenos.

A vida de José Gustavo, a partir do dia em que se identificou com este grupo, não foi senão um longo e variado serviço de Deus, que lhe tomava todas as horas, da manhã à noite. Círculos de estudo para os operários da JOC ou os estudantes da JEC, feitos por vezes em bairros muito distantes e em horas difíceis; reuniões da Congregação de Santa Cecília ou dos redatores do “Legionário”, ação pessoal de apostolado junto a amigos que ele queria trazer à Igreja, estudos que alimentassem todo este trabalho; orações que fecundassem os estudos e as lutas, nisto ia a maior parte do tempo de José Gustavo.

Assim descrito o emprego de suas horas, José Gustavo nos aparece como um idealista fogoso e ativo, com pouco ou nenhum gosto pelas questões econômicas, das quais sua situação pessoal lhe permitia aliás despreocupar-se inteiramente. Porém, assim não era.

José Gustavo acompanhava com interesse e participava efetivamente da direção da fazenda de café de seus pais, em Lins. Além disto, voltou sua atenção para o litoral, e projetou estabelecer em São Sebastião uma fábrica de óleo de peixe, para o que chegou a comprar máquinas. Como base de seu empreendimento adquiriu uma fazenda em Ilha Bela e vários prédios e terrenos em São Sebastião. Era convicção sua que o litoral norte haveria de prosperar forçosamente e que os capitais aí empatados frutificariam cedo ou tarde grandes lucros. E nestas transações, levadas a cabo pessoalmente depois de muitos esforços e numerosas viagens, nele se delineou outra faceta que só não se firmou com a nitidez das outras porque a morte o colheu: a do homem de negócios, empreendedor, prático e, como em tudo, de pontos de vista pessoais muito marcados.

Ao par de tantas atividades, José Gustavo levava modelar vida de família, interessando-se por tudo quanto diz respeito ao lar, e procedendo sempre como filho extremoso. Nem nos piores momentos de sua moléstia surpreendi nele uma lágrima sequer. Porém eu o vi chorar quando, durante grave enfermidade de seu pai, sua mãe foi vítima de uma crise cardíaca que parecia justificar apreensões. Tanta serenidade nos seus próprios males, e tal sensibilidade para os dos seus, mostra bem o que foi José Gustavo como filho.

Reunidos todos estes traços psicológicos em uma visão de conjunto, vemos que José Gustavo realizou com raro senso de equilíbrio e adaptação, com uma integridade de princípios e de lógica muito mais rara ainda, uma personalidade contra cuja definição e expansão o ambiente lutava com todo o dinamismo de mil influências e idéias opostas. Num mundo de transição de Cristo para o anti-Cristo, José Gustavo ficou com Cristo. Numa sociedade cada vez mais influenciada pelos costumes “livres”, José Gustavo foi um paladino destemido da pureza. Num século inimigo das tradições, José Gustavo fez reviver em si mesmo as melhores qualidades da fidalguia e integridade de sua terra e sua estirpe. Numa era inimiga de hierarquia e escravizada pelo demagogismo, José Gustavo foi um contra-revolucionário ultramontano da mais pura água.

Mas por suas palavras e seu exemplo soube provar que a fidelidade a Jesus Cristo e o amor às tradições cristãs não significam estagnação ou inércia; que o apreço pela cultura e pela arte não impede um desenvolvimento físico feito com elevação de alma; que o amor à hierarquia não exclui o amor dos pobres; que o gosto pelas questões transcendentais não acarreta por força o desinteresse pelos problemas práticos da vida financeira.

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Ainda aqui porém, há um esclarecimento que consignar: José Gustavo não era dos católicos frouxos e acovardados que, sem coragem de reagir “contra” o ambiente, procuram fazer com que este lhe “perdoe” o catolicismo adotando, por uma justaposição falsa e artificial, mil atitudes ao sabor do espírito contemporâneo. Ele odiava literalmente esta mentalidade. Não foi com o intuito de atenuar oposições ou granjear simpatias que ele aceitou de nosso tempo os progressos materiais honestos; nem foi para “confraternizar” com as tendências proletarizantes de nossos dias que ele tão largamente praticou as obras de misericórdia espirituais ou temporais. José Gustavo agiu assim porque assim devia agir segundo a lógica dos princípios ultramontanos que abraçara. E sua “ultramontaneidade” fundamental jamais lhe consentiu transformar o gosto pelo progresso honesto ou o amor aos pobres – amor operoso, eficaz e não apenas literário e platônico, como sucede aos demagogos – em um pretexto para fazer concessões a uma mentalidade que não só não era a sua, mas era o extremo oposto da sua. Este admirador da monarquia de São Luiz podia e devia ter a caridade de São Luiz. Este “pourfendeur d’hérésies” apaixonado pela luta contra os adversários da Igreja, como o era São Vicente de Paulo pela luta contra os jansenistas e muçulmanos – São Vicente quis até reunir uma cruzada contra Túnis – podia praticar a caridade de São Vicente para com os que erram, os que sofrem, os abandonados. E eis tudo.

Assim explicado o espírito e a vida de José Gustavo de Souza Queiroz, pouco resta que dizer.

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Gradualmente, a compreensão se foi fazendo em torno dele. As oposições foram emudecendo. A estima floresceu no círculo de suas relações, que eram vastas, brilhantes e animadas, quando a moléstia o obrigou a mudar de vida. Tanta elevação de alma e de conduta acabou por se impor. Nos últimos anos de sua existência José Gustavo não era só estimado mas querido, nem era só querido mas verdadeiramente considerado por todos aqueles com quem mantinha relações. Coisa curiosa, ao fim de sua vida ele só notava – e deplorava – a indiferença de relações de infância, das quais uma diversidade de espírito que permanecia total e irredutível, o mantinha a distância.

A realização harmoniosa e clara de sua própria personalidade, e o prestígio que essa personalidade assim definida alcançou em um meio abertamente hostil, eis a grande obra de José Gustavo, obra que podem apreciar os que são capazes de admirar a alma humana nas suas mais belas manifestações.

E convém por aqui um remate. Esse triunfo pessoal, do qual José Gustavo teve consciência, ele o estimava apenas enquanto significava a sua fidelidade aos princípios que professava, e uma vitória destes princípios no ambiente em que vivia. Para ele, no alto da hierarquia de valores estava a Santa Igreja Católica, a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Negócios, estudo, música, tudo era mero meio ao serviço deste ideal supremo.

A prova disto, ele a deu austera, grave, até sublime. Quando tudo lhe sorria, e, vencidos os obstáculos iniciais, parecia que a hora da colheita chegara, uma enfermidade insidiosa atacou a José Gustavo. Ele a recebeu com uma serenidade impressionante. Restabelecido, voltou a São Paulo, retomando, até certo ponto, a vida normal. Nessa ocasião, tive com José Gustavo uma longa palestra em que o pus ao corrente de dificuldades gravíssimas em nosso apostolado. José Gustavo passou a noite em claro.

Continuou sempre ao nosso lado, com uma fidelidade sem jaça nem vacilação.

Sua saúde se firmava e, aos poucos, as preocupações de sua família e de seus amigos a este respeito se desanuviavam. Subitamente, o mal de Pfeiffer, tão inócuo em geral, o levou ao leito. Mas em José Gustavo esta infecção se agravou com novas complicações, e, um ano depois, ele veio a falecer.

Durante este tempo, mantivemos com José Gustavo um contato constante, que ele aproveitava para indagar de nosso apostolado, nossos problemas e nossas lutas, com todos os pormenores de que seu zelo o tornava ávido.

Na última ou penúltima conversa que tivemos a sós, José Gustavo me fitou muito seriamente, e me disse com a máxima simplicidade e a máxima convicção: “Sabe, Plinio, eu resolvi pedir a Deus que me tire deste mundo caso o sacrifício de minha vida possa ser útil a nosso apostolado”. Comovi-me, mas nada disse. Que direito tinha eu de interferir neste gesto talvez ditado pelo Espírito Santo, talvez, ao contrário, fruto de uma impressão fugidia? De mais a mais, José Gustavo se confessava freqüentemente, e a outrem mais autorizado caberia pronunciar-se a este respeito. Tanto mais quanto não é raro que doentes piedosos ofereçam a Deus sacrifícios como este.

No dia 8 de março de 1946, José Gustavo morreu inesperadamente.

Os mistérios das relações de cada alma com Deus não podem ser desvendados por olhar humano. Mas é certo que sua oblação mereceria ser consignada em um epitáfio. José Gustavo, nosso querido e inesquecível amigo José Gustavo, nosso irmão de Fé, de ideais, de lutas, de tudo, José Gustavo viveu servindo a Igreja, e morreu oferecendo por ela a sua vida.

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De tanta elevação de espírito, de tanta coragem, de tanta delicadeza de alma, de tanta simplicidade, o melhor que nos resta é o perfume que deixam atrás de si as almas verdadeiramente cristãs.

Dissemos no início destas linhas de recordação que José Gustavo nada deixou de inteiramente realizado, senão o labor de formação de sua própria alma. Quase concluída, legou-nos ele esta tradução da obra de Joseph de Maistre sobre a Inquisição que mãos amigas completaram rapidamente no pouco que faltava. Joseph de Maistre é mundialmente conhecido como o criador da corrente de pensamento contra-revolucionário que habitualmente se chama “ultramontanismo”. Sua excelente obra sobre a Inquisição também é conhecida e dispensa apresentação. José Gustavo, paladino estrênuo do pensamento ultramontano, prestou com este trabalho uma contribuição valiosa para a cristianização autêntica do Brasil, e deu mais um belo testemunho de seu espírito puro e ortodoxo.


 [*] [N.R.: sobre o papel de José Gustavo na pré-história da TFP ver aqui]

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