“A Ordem” [órgão do “Centro D. Vital”], Rio de Janeiro, nº 8, vol. IV (nova série), Ano X, agosto de 1930, pp. 83 a 87
Seção Universitária – A.U.C. [Ação Universitária Católica] de São Paulo
Os “horrores” da Inquisição
“É preciso ser muito ignorante, para caluniar a Inquisição e para buscar na mentira pretextos com que fazê-la odiosa”.
(Voltaire, Ensaio sobre os costumes)
Um dos ataques mais impressionantes que se fazem à Igreja, dos que mais se prestam a explorar certas mentalidades morbidamente crédulas e sensíveis, é, sem dúvida, a chamada Santa Inquisição.
O aparato sinistro de suas execuções públicas, em soleníssimos autos-de-fé, o desenrolar lúgubre e espetaculoso de todas as minúcias e etiquetas peculiares a semelhante gênero de cerimônias, o crepitar das fogueiras, o gemido das vítimas e os sorrisos ferinos e sarcásticos dos inquisidores, tudo, enfim, conspira de modo propício para a formação de um ambiente pitoresco, no qual historiadores parciais carregam, à vontade, as tintas, alterando o verdadeiro significado dos fatos e contribuindo com o jorro nem sempre límpido de sua inesgotável imaginação, para a criação das maiores monstruosidades históricas.
Os romances históricos, explorando o natural pendor do público pouco culto pelas cenas teatrais, apresentam sempre a Inquisição sob os mais desfavoráveis aspectos. Assim, os inquisidores são sempre sacerdotes velhos que, tendo passado a vida toda nos vícios e nas intrigas das cortes, mal disfarçados por uma incomparável hipocrisia, desabafam os rancores de sua velhice desiludida sobre aqueles cujas crenças a Igreja condena. E os exploradores da História costumam encarnar nos inquisidores os mais legítimos representantes do espírito de fidelidade à ortodoxia da Igreja Católica. Os inquisidores são tidos, em geral, como membros de escol do Clero, figuras características de indivíduos dotados, em alto grau, do mais acentuado cunho de catolicidade, produtos típicos do espírito da Igreja. E, como pelos frutos se conhece a árvore, tomando-se como fruto os inquisidores, assim pintados, julga-se e condena-se sumária, categórica, solene e definitivamente a Igreja Católica Apostólica Romana, isto tudo com grande exibição de princípios humanitários, frases ocas e sentimentalismo descabido, que sempre encontram terreno favorável. Eis, em suma, as conseqüências que os espíritos “independentes e liberais”, proclamando-se “imparciais e isentos de superstições da Idade Média”, tiram da história da Inquisição.
Justifica-se perante o bom senso e a verdade histórica semelhante acusação?
1) Admitido que fossem verdadeiras todas as acusações lançadas contra a Igreja, a propósito da Inquisição, ainda assim não se teria demonstrado a falsidade do Catolicismo.
De fato, se se pudesse demonstrar a falsidade de uma doutrina qualquer, servindo-se da crueldade com que a defenderam os seus partidários, seríamos forçados a concluir que todas as religiões, e o próprio ateísmo, são falsos, o que é absurdo.
E, quanto a provar que o Catolicismo tem sido vítima das maiores crueldades por parte dos sequazes de todos os credos que lhe são contrários, nada mais fácil. Não será preciso relembrar as perseguições de judeus e romanos, contra o Cristianismo nascente. Não será preciso mencionar a barbaridade dos orientais contra os missionários católicos. Será [necessário] evocar as crueldades com que os “ortodoxos”, que se separaram da Igreja, perseguiram os católicos? Bastará, apenas, recorrer à História escrita por pessoas insuspeitas de Catolicismo, como sejam Albert Mallet e Isaac, para demonstrar a inominável crueldade de Lutero (em virtude de cujas ordens uma guerra “sem piedade” foi levada a efeito contra camponeses revoltados, e na qual foram queimados, com aplausos do apóstata, dezoito mil revoltosos na Alsácia e dez mil na Suábia), a intolerância fanática de Isabel (a respeito de cujas violências contra católicos Mallet publica uma gravura curiosíssima), além de outros numerosíssimos fatos que poderíamos citar.
Quanto aos desmandos sanguinários do ateísmo, será ainda necessário falar nesta série de morticínios que, inaugurada em 1789 e continuada na Comuna de 1870, no México de 1924 e na Rússia de nossos dias, parece querer afogar em sangue a idéia de Deus?
Ora, se demonstramos que todas as correntes religiosas praticaram excessos, não podendo elas todas ser igualmente falsas, o que concluímos? Que a violência dos crentes não prova a falsidade do credo.
2) Admitidas todas as fábulas com que cercam a Inquisição, ainda assim não estará provado que a Igreja não é santa.
Em primeiro lugar, admitindo que as violências do clero de uma crença qualquer podem demonstrar a falsidade do credo, temos que todas as igrejas são falsas. Por aí vemos que os únicos a quem assiste o direito de se prevalecer da Inquisição, para atacar a santidade da Igreja, são os ateus.
No entanto, a crítica destes não tem razão de ser. De fato, é ponto de doutrina católica que os homens, enquanto homens, são criaturas sujeitas a pecado. E esta fraqueza é por tal forma inerente à natureza humana, que só deixa de existir com a morte.
Ora, se entre todos os sacerdotes, se entre todos os dignitários da Igreja, no decurso de dezenove séculos de vida, a Igreja não pudesse apontar alguns indivíduos absolutamente indignos da investidura que receberam, estaria demonstrado que estes indivíduos não eram sujeitos a pecado, donde se segue que seria falsa a doutrina católica.
A indignidade de alguns sacerdotes, e até, talvez, de alguns Bispos (sem esquecer Judas) e Papas, demonstra, portanto, não a falsidade, mas sim a veracidade da doutrina católica.
A santidade da Igreja não consiste, pois, e não poderia consistir, na santidade do clero, mas sim na santidade da doutrina.
3) Admitidas, ainda, todas as lendas relativas à Inquisição, não se poderia demonstrar a conveniência da separação entre a Igreja e o Estado.
Dizem algumas pessoas que, na Inquisição, o Clero já demonstrou aquilo de que é capaz, quando detém alguma parcela do poder temporal.
A afirmação é pueril. De fato, julgar o Clero de nossos dias através dos inquisidores é mais do que uma injustiça, é um absurdo.
Além disto, quem ousará negar a influência salutaríssima da Igreja em toda a vida da Idade Média? Não é princípio indiscutível, em matéria de Direito Internacional, que o Cristianismo, aplicado pela Igreja ao Direito Internacional tanto público quanto privado, constituiu um poderoso fator de concórdia e progresso entre os povos? Antes de se constituírem Ligas das Nações, não tinha a Santa Sé enfrentado o problema da paz internacional, e procurado instituir, com grandes vantagens para todos os povos, a Trégua de Deus?
Não é sabido que a autoridade dos bispos, na Idade Média, era tão suave que os plebeus fugiam do domínio dos senhores feudais, para receber a proteção do clero?
Aliás, para que demonstrar a evidência? Para que insistir em uma verdade que ninguém nega?
Chegamos, pois, à conclusão de que, ainda que se admitissem todas as acusações lançadas contra a Inquisição, nem mesmo um único argumento se poderia tirar daí, contra a Igreja.
Reduzamos agora os fatos às suas justas proporções, e restituamos à Inquisição seu verdadeiro caráter.
Já vimos o que pensava da Inquisição o terrível e insuspeitíssimo Voltaire. Segundo Valera, a Inquisição era um dos tribunais benignos da época, pois que, comparativamente, as fogueiras da Inquisição fizeram poucas vítimas. Somos pois forçados a concluir, como Justino Mendes na Igreja e a História, que a Inquisição, tribunal secular como outro qualquer, e, portanto, sujeito inevitavelmente aos preceitos do direito penal então vigente, ainda era brando, em comparação com os demais da época. Vemos que é exagero evidente o se lhe atribuir desusada ferocidade e a primazia entre os mais cruéis tribunais da História.
E, ainda assim, estava sua atuação em desacordo com os princípios humanitários da Igreja que, por isto, reagiu energicamente, como adiante veremos.
Vamos agora ao caráter da Inquisição. Se consultarmos os tratados jurídicos do século passado e outros ainda anteriores, veremos a Inquisição sempre classificada como tribunal eclesiástico. É o que faz, entre outros, Pereira e Souza, no seu Dicionário Jurídico. Ora, tribunal eclesiástico não era o que funcionava em virtude da autoridade da Santa Sé, mas sim o que, embora composto por eclesiásticos, estava subordinado, como órgão da administração pública que era, aos soberanos temporais.
Não existe, pois, entre a Inquisição e a Igreja, a solidariedade que liga o mandante ao mandatário. Muito pelo contrário, demonstraremos: a) que a Inquisição independia das ordens do Santo Padre, estando subordinada diretamente aos soberanos; b) que a Inquisição era mal vista e combatida pela Igreja, por causa de sua crueldade.
A primeira das afirmações, podemos fundamentá-la com as seguintes provas, facilmente controláveis em Justino Mendes, op. cit.: o Papa concedeu certificados de ortodoxia a indivíduos acusados pela Inquisição; esta, longe de acatar respeitosamente, como o faria um tribunal dependente da Igreja, as ordens do Santo Padre, decretou pena de morte a quem se munisse de tais certificados. Onde a obediência que, necessariamente, caracterizaria a Inquisição, se fosse sujeita à Igreja, e considerada mero departamento desta? Em 1482, Sixto IV dirigiu um Breve severo aos reis de Espanha, contra os excessos da Inquisição. Ora, se esta dependesse do Santo Padre, para que dirigiria ele o Breve aos reis, e não aos inquisidores, diretamente? Acresce que aos reis cabia até o direito de demitir os inquisidores, poder este exercido sobre doze dentre eles. Além disto, para corroborar ainda mais nossas afirmações, basta lembrar que a Inquisição estava encarregada de julgar os crimes de contrabando e estelionato. Ora, como poderia um tribunal mantido pela Igreja tomar conhecimento destes crimes?
Quanto à segunda afirmação, de que a Santa Sé combateu a Inquisição por causa de suas crueldades, basta lembrar os seguintes fatos: em 1482, Sixto IV pedia aos reis de Espanha, “pelas entranhas misericordiosas de Jesus”, que refreassem os ardores criminosos da Inquisição. O mesmo historiador faz menção de indivíduos secretamente absolvidos pelo Papa, depois de condenados pela Inquisição. Em 1519, Leão X excomungou os inquisidores de Toledo, para punir sua crueldade (e é esta a maior pena que um Pontífice possa aplicar a um católico). Paulo III aliou-se aos napolitanos, para impedir que se instalasse em Nápoles a Inquisição. Pio IV e São Carlos Borromeu opuseram-se à sua introdução em Milão. Logo, a Inquisição, sempre desaprovada pela Igreja, não foi produto do espírito católico de alguns elementos clericais, mas, muito ao contrário, um fator das mais censuráveis revoltas contra o intangível poder dos Pontífices Romanos, aos quais, pois, não cabe a menor responsabilidade quanto aos horrores da Inquisição.
Temos, pois, chegado ao fim que tínhamos em vista, que era de demonstrar que: 1) a Inquisição não se presta para demonstrar a indemonstrável falsidade da Igreja; 2) a Inquisição não pode servir de fundamento à separação da Igreja e do Estado; 3) a Inquisição, comparada aos demais tribunais contemporâneos, não foi cruel; 4) a Inquisição não era um tribunal sujeito à autoridade da Igreja, e independia das ordens do Santo Padre; 5) a Inquisição, rebelde aos Pontífices, foi por estes combatida e punida muitas e muitas vezes.
Plinio Corrêa de Oliveira
(5º ano da Faculdade de Direito de São Paulo)