Sonhei. Sonhei que meu secretário me entregava, trazida pelo correio, uma carta de propaganda comercial cujo envelope levava o timbre, aliás muito pouco imaginativo, de Grande Hotel Castro.
Tratava-se, como é bem de ver, de missiva enumerando, para o deleite de eventuais turistas, os altos predicados do tal hotel. À medida que eu percorria o texto, os lugares e as cenas descritas tomavam cor, forma e vida diante de meus olhos encantados. Em uma ilha toda rodeada por um mar alto e azul, se erguia, bem no cume de um morro, uma mansão espaçosa, dotada daquela particular nota de estabilidade e gosto que faz pressentir, já de fora, o conforto, o asseio e a opulência que por dentro reinam. As encostas do morro desciam para a praia, recobertas de bosques e jardins. Os salões, de uma correção perfeita – com móveis macios e grandes que convidavam ao repouso – eram rasgados por janelões dos quais se viam diretamente os veleiros tocados pelo vento: sensação de alto mar aliada ao frescor e aos aromas da cordilheira. Uma criadagem abundante, discreta, solícita, servia hóspedes simpáticos e educados. Na sala de jantar, moderadamente cheia, flutuava o bom odor indefinido mas aliciante, provindo da coexistência não só pacífica como positivamente harmônica de toda a sorte de iguarias. Na portaria, um funcionário graduado e solícito conduzia os hóspedes que quisessem, para um subsolo com caixas fortes individuais reconfortantes, para a guarda de jóias e dinheiro. Boutiques, uma livraria, salão de barbeiro, penteador, duchas, até uma discreta pequena farmácia para os hóspedes a quem o excesso de quitutes pudesse perturbar: nada faltava, tudo demonstrava gosto, categoria, alto senso do que sejam férias.
Vinham logo depois, na circular, os preços das passagens, dos apartamentos, das suites etc. Que preços, e que descontos!
No fim, como de estilo, o dono do Grande Hotel Castro afirmava a persuasão de que ter-me-ia, e aos meus amigos, ainda para estas férias. E acrescentava toda a espécie de fórmulas-chapa para me persuadir de sua estima, sua simpatia, sua admiração etc., etc.
* * *
Sonhar é fácil. Com o papel na mão, me pus a imaginar que meus amigos e eu singrávamos para o hotel maravilhoso da ilha encantada. Em breve, o azul do mar se adornava com mais de uma centena de veleiros vindos de toda a parte onde existem sócios, amigos ou militantes das várias TFPs da América Latina. Vindos de Manaus e de Belém do Pará através do caudaloso Amazonas, saídos da Argentina pelo majestoso rio da Prata, provenientes do Chile pelo épico estreito de Magalhães, baixados de São Paulo pela Anchieta até o Oceano, saídos de Campos pelo Paraíba, vindos das Minas Gerais pelo litoral encantado do Espírito Santo, oriundos de Curitiba e de Florianópolis e Blumenau, da linda Bahia, dos rijos e poéticos arrecifes pernambucanos, de Niterói e da Guanabara incomparável, do Montevidéu risonho, da prestigiosa Porto Alegre e da próspera Caracas, de Medellin e de Bogotá, de Lima e de São Luís do Maranhão, do mar límpido e bravio de Fortaleza, da Brasília extravagante e da Goiânia movimentada, de dezenas de outros lugares enfim, lá vínhamos todos em nossos barcos, com imensas velas rubras marcadas pelo áureo leão rompante. Eu sorria comprazido e entusiasmado. Apenas, uma pontinha de mal-estar me incomodava, proveniente da conjunção de algumas impressões cujo nexo fugidio me escapava: não sei como eu sabia que os de Caracas eram os que de mais perto vinham… uma ilha… Castro… algo não estava certo!
Ainda com o papel na mão, desviei os olhos da rutilante armada da TFP para acabar de ler a circular. Com efeito, abaixo da assinatura do diretor-proprietário, um tal sr. F. Castro, vinha o seguinte:
“P.S. – Os serviços de vigilância do Grande Hotel Castro são exímios. O fato noticiado pela imprensa, na semana passada, de que alguns srs. hóspedes conseguiram fugir apesar da ação de nossos cães de caça e de nossos guardas-atiradores, foi absolutamente excepcional”.
Sobressaltado pela inopinada comunicação, acordei. Em minha mão estava realmente uma folha de papel: uma página de jornal com anúncios de turismo e a notícia de que a polícia de Fidel Castro perseguira com cães de caça e disparos de armas de fogo um grupo de quase 200 infelizes – entre eles mulheres e crianças – que fugiam do “paraíso” comunista para penetrar na base norte-americana de Guantanamo, meu permanente enlevo com o imenso florescer das TFPs, tudo se misturara em meu espírito e dera no sonho que acabo de narrar.
Lembro-me de que, quando eu “li” o post-scriptum, raciocinei: toda esta propaganda não é senão balela, pois como pode o Grande Hotel Castro ser tão delicioso e ter ao mesmo tempo hóspedes que dele queiram fugir com risco de vida? Cárcere Castro, campo de concentração Castro, inferno Castro, isto sim… E para lá não vou.
* * *
Acordado, tudo se desfez para mim. Mas o raciocínio ficou. Como acreditar nos benefícios paradisíacos de um regime que se arma como um campo de concentração, para obrigar a permanecer sob suas garras uma população espavorida?
Raciocínio gerado no sonho, mas simples, límpido, irrecusável como tudo quanto se baseia no bom senso elementar. Desta seção o envio para uso do Pe. Comblin em Recife, e dos admiradores de batina, de mini-saia, de beca ou de custosas camisas-esporte que ele tem pelo Brasil. Em suma, envio-o para esse punhado de homens de sacristia, de universidades e de boate que brandem a bandeira da revolução social abusando o nome das multidões rurais e urbanas. Sim. De nossas boas multidões pacíficas, honestas e operosas… as quais teimam em não se deixar “conscientizar” pelos tais “comblinistas“.
P.S. – Não é só o F. Castro de meu sonho que tem um P.S. a fazer. Também eu. Bem sei que nada é mais anacrônico que um “comblinista” de batina. Ninguém antipatiza mais com a batina – tão santa, venerável e simpática – do que o comblinista-tipo. Bem sei. Como milhões de brasileiros, estou até farto de saber.
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