O cerne da Revolução e da Contra-Revolução – Cuidados em matéria financeira numa Ordem religiosa

Conversa durante almoço no Eremo do Amparo de Nossa Senhora, 18 de março de 1987

A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

O cerne da Contra-Revolução, como também da Revolução é, sobretudo, um cerne moral, está na vontade do homem, mais do que na sua inteligência. É claro que a vontade do homem deve seguir o que a razão, iluminada pela Fé, indica. De maneira que a boa orientação da inteligência é fundamental para que a vontade esteja bem orientada e seja forte, isso é verdade. Mas desde que uma pessoa tenha os princípios elementares comuns para conhecer a verdadeira Fé e segui-la, desde que seja isso, o mais importante não é compreender a fundo a coisa, mas é amá-la a fundo. E é por isso que está na Escritura, essa frase que impressionava a Santa Teresa do Menino Jesus, e que está em São João [da Cruz]: “No anoitecer desta vida, vós sereis julgados segundo o amor“.

O amor está na vontade. O amor não está em outra coisa, está na vontade, e esse julgamento segundo o amor é, portanto, segundo a vontade. É por isso que nós vemos também grandes santos que são muito pouco inteligentes, e gente muito inteligente que é muito pouco santa…

Então, o cerne da Contra-Revolução está nessa disposição de alma por onde, conhecendo ela o que está proporcionado, normalmente, à sua necessidade intelectual, conhecendo ela isto, e amando – aqui está a tônica – amando com toda a força, ela realmente dá o contra-revolucionário.

Por exemplo, os Chouans, os Carlistas, os que eram heróis mesmo e que morriam no campo de batalha, o que é que eles entendiam dos princípios que eles estavam sustentando? Eles tinham uma noção genérica, mas uma noção elementar. Agora, por que é que eles eram o cerne da Contra-Revolução naquele âmbito? Porque eles representavam a vontade forte, a vontade santa de morrer se fosse preciso.

De maneira que o cerne da Contra-Revolução é esse. Como do outro lado o cerne da Revolução se faz nisso: o sujeito é revolucionário, ele conhece alguma coisa da Revolução, na proporção de sua inteligência. Mas, sobretudo, ele é ardente no ódio ao bem, no ódio à verdade, no ódio ao pulchrum. Por quê? Porque ele é depravado, não vale nada e, portanto, quer se atirar por cima de tudo quanto é ruim, quer aderir a tudo quanto é ruim e quer que tudo seja ruim. E isto faz dele o indivíduo cerne da Revolução.

Agora, cerne por quê? Por que é que se aplica aqui a metáfora do cerne? É porque numa corrente de opinião, a parte mais resistente, mais dinâmica, mais capaz de fazer face a todos os ataques e de dar iniciativa de todos os ataques, essa parte é a que ama mais. E, portanto, isto é o cerne. Uma coisa evidente.

* Nós não somos o cerne da Contra-Revolução como deveríamos ser porque não amamos na proporção da vocação que recebemos

Agora, quais são os obstáculos que há, a que gente como nós, esteja no cerne?

Os senhores veem esta sala aqui. Eu quase só vejo gente de hábito, e quem não está com hábito é quase exclusivamente eremita que, por uma razão ou outra, não está com hábito. Mas todos dedicam sua vida integralmente à Causa católica. Entretanto, por que é que nós não somos o cerne? Ou somos um cerne de palmeira, de coqueiro… Seria pouco amável falar ecerne de bananeira…

Antes de perguntar “por que é que?”, pergunta-se “no que é que?”.

E a resposta é a seguinte: nós recebemos uma porção de esclarecimentos, uma porção de doutrinas com a respectiva justificação, explicação etc., etc., nós temos diante dos olhos a tremenda visão de um mundo que está pegando fogo, ou pior do que pegando fogo, está se derretendo, decompondo em pus, que é o que está acontecendo com o mundo de hoje. Nós vemos isso, e diante desse contraste enorme que nos mostra aos uivos, o que é o mundo errado, o mundo da Revolução, e que nos mostra – é curioso – pela beleza de nosso próprio exemplo, o que é o esplendor da Contra-Revolução. Bem, apesar disso, nós não nos damos tão inteiramente à Contra-Revolução quanto deveríamos dar. Quer dizer, nós não amamos na proporção do que nos é dado.

Em termos mais precisos, diante desse contraste, nós devíamos arder de desejo de que a Revolução seja esmagada; arder de desejo também de que a Contra-Revolução seja vitoriosa. Mas, de tal maneira que o centro de todas as nossas reflexões, direta ou indiretamente conduza a isto. Ora, não se pode afirmar isto. Nós não correspondemos a esse ideal.

Eu já tenho dito isso várias vezes, mas estou querendo aprofundar a resposta à pergunta. que o Prof. Martini me fez.

Agora, por sua vez, por que é que é assim? É porque a Providência nos deu uma vocação altíssima, de um lado; e com isso nos faz ver em alto grau tudo quanto é Contra-Revolução. Ela nos faz ver também o que é a Revolução.

* A falta de fervor de quem não rompeu inteiramente com a Revolução

Mas Ela nos pede uma ruptura. A ruptura material, graças a Nossa Senhora nós a fizemos, e essa ruptura material não vai sem uma certa ruptura espiritual. Eu não quero dizer, portanto, que nós não tenhamos nenhuma ruptura com esse mundo. Graças a Deus, alguma temos, por isso estamos aqui.

Mas, não é a ruptura total, a ruptura completa, por onde nós não queremos que nada deste mundo fique em nossa alma. E, pelo contrário, queremos que tudo da Contra-Revolução exista em nossa alma. Nós conservamos uma nostalgia daquilo que deixamos, e parecemos como a mulher de Lot que ao sair da cidade maldita de Sodoma olhou para trás com saudades do horror, e se transformou em sal…

O que quer dizer isto?

Se um de nós conserva no fundo da alma uma espécie de conaturalidade com as coisas da Revolução, e com isso uma espécie de saudades, e um tirar um certo gostinho, ainda que seja por uma mera recordação, em ter um certo gostinho do que era da Revolução, nós nisso fazemos o papel da mulher de Lot. É evidente! E ao fazer o papel da mulher de Lot, nós deformamos nosso espírito e transformamos aquilo que poderia ser cerne, em cortiça, periferia da árvore.

Eu dou aos senhores um exemplo: todos os senhores conhecem o episódio famoso, de São Pedro no pátio da casa de Anás ou Caifás – ou qualquer um daqueles mandriões – aquecendo-se e conversando com aquela gentalha que estava lá fora. Ele estava lá “ut videret in finem”, para ver no fim como é que seria. Quer dizer, para acompanhar Nosso Senhor na sua Paixão.

Ele que já tinha andado mal várias vezes, naquela noite, ele dormiu; e quando acordou ele não andou bem quando Nosso Senhor foi preso, ele fugiu. Bem, mas afinal, alguma coisa ainda restava nele, e ele foi lá porque ele queria acompanhar o que iria acontecer com Nosso Senhor. Podia bem ser que aquela conversa dele com aquele pessoal do lado de fora – ele era um simples pescador – que essa conversa dele com aquela gentinha lá de fora, parecesse a ele uma conversa muito prestigiosa.

É claro, ele era um simples pescador, admitido no palácio de um chefe do lugar, e conversando com os que eram íntimos deste chefe do lugar, prestavam serviços íntimos, ele de algum modo, punha o nariz em ordem ao poder supremo e, portanto, era possível que achasse aquilo prestigioso. Era possível que ele achasse aquela gente muito divertida. Não me espantaria nem um pouco que houvesse uns dois, ou três grandes contadores de piada ali entre eles. E ele tivesse se aquecendo, meio com a atenção voltada no que acontecia com Nosso Senhor, e meio flatté, lisonjeado, por estar ali naquele pátio e se divertindo com as gargalhadas, com as brincadeiras.

Aconteceu tudo: Nosso Senhor passou, o galo cantou, Nosso Senhor olhou para ele, ele saiu entristecido, e depois o resto de sua vida, ele de vez em quando chorava com o que tinha acontecido.

Agora, os senhores imaginem, depois da Ascensão de Nosso Senhor, quando ele ficou Chefe da Igreja, Papa portanto, primeiro Papa, e com todas as responsabilidades daí decorrentes, [se] um dia ele passasse perto daquele palácio, olhasse – o palácio estava aberto – e lhe viesse no espírito – o demônio podia pôr: “Lembre-se como estava agradável aquela noite, entre um pouco para olhar, lembre um pouco, procure lembrar três ou quatro daquelas anedotas mais engraçadas. Entre, pare um pouco lá, que bons momentos você teve antes de que Ele cruzasse pelo seu caminho”.

Se ele cedesse a isso… Parece que ele não podia ceder, porque dizem certos teólogos – ao menos foi o que me disse D. Mayer – que ele era confirmado em graça. Os Apóstolos eram confirmados em graça, e não podiam mais pecar. Daí nos parecer inimaginável que ele cometesse o pecado que estou descrevendo aqui a título de hipótese.

Mas imagine que isso acontecesse. A impressão que se tinha era de que ele deveria pedir demissão do Papado, que ele devia sair, causava horror, era melhor não pensar mais nele!…

Não há uma coisa parecida com isso conosco?

Um rapaz de quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove, vinte anos, frequentou muito um determinado bairro. E ali havia um ponto qualquer onde se reuniam os rapazinhos, as moçoilas do tempo, e tomavam motocicletas e passeavam, e entravam num bar qualquer e bebiam, e mais adiante um pouco havia um lugar qualquer onde fazia esse pula-pula infecto de hoje, que não sei se ainda hoje se chama de dança ou não, mas enfim, pulavam, e o rapaz é da TFP. Prestou à TFP serviços insignes, serviços de primeira ordem! Mas numa tarde, ele passou ali perto. Olhou, não tinha ninguém. Ele parou – vamos dizer que ele estivesse de motocicleta – ele parou, olhou e [pensou]:

“Quanta coisa boa havia aqui… O boteco onde eu ia está vazio, eu vou só tomar uma guaraná, ou uma Coca-Cola lá”.

Desce e vai tomar. O homem que toma conta do bar diz a ele:

– Ó Juca, há quanto tempo você não aparece aqui!

– Pois é, eu tenho [estado] muito ocupado, sabe como é, não é?

E o outro:

– Você sabe que de vez em quando, ainda se lembram de você?… Eu ouço conversas e eles de vez em quando se lembram ainda de você.

A serpente que já está enroscada nele, lhe dá a mordida:

– O que dizem?

O outro:

– Ah, que não compreendem o que se deu com você. Você, de repente, meteu uma patada neles, e rompeu com eles, por causa de uma coisa esquisita, uma seita, um negócio chamado, parece de TPF, uma coisa assim, e que por causa disso, eles dizem ainda, de vez em quando: “Como seria bom que ele aparecesse. Ele era um homem tão engraçado, uma companhia tão agradável. E tal diz: ‘E não é só isso. Elegante como ele, só ele’… E tal outro diz: ‘Bom, reconheçamos, inteligência é ali, não é?…’”

Pouco depois, o homem diz para ele:

– “Vou fazer para você uma confidência. O pessoal quando vem aqui fica triste. Diz que os sábados e os domingos não são mais o que eram. Está faltando você. Você venha uma vez só aqui, e te garanto que tudo que você consumir, eu dou gratuito. É do meu interesse. Você movimenta um pouco o meu bar. Venha!”

Quase incomoda descrever uma realidade assim. Mas eu vou levar a descrição mais adiante.

O sujeito toma a motocicleta e diz:

– Olha, eu preciso ir embora logo.

O outro:

– Logo por quê? Hoje é domingo. Que compromisso você tem?

– Não – escapa a palavra da boca dele – eu tenho obrigação de estar a tantas horas lá, porque me mandaram.

– Quem manda em você?!

Pruummmm, toca a motocicleta e não dá resposta.

Chega no êremo… Ele encontra no corredor com o “Quidam” [encarregado do Êremo]:

– Mas quanto tempo o senhor levou para levar esta carta e trazer a resposta, hein?

– É…

– Mas por que tanta demora?

– É, sabe como é, não é?

Resposta vacilante.

– Bom, suba depressa que ainda está no “Vacare Deo” [horário de conversa]. Você pode participar!

Um peso: “Eu não queria ir para o Vacare Deo. Eu queria ir para a minha cela, e lembrar do que houve”…

Vai ao Vacare Deo. Chega lá, não acha graça em nada, quieto e aborrecido. O que acontece?

O demônio: “Está vendo? Graça é lá. Aquele pessoal é que sabe dar valor a você. Quero saber se um dos que estão aqui percebe o seu valor como aqueles lá. Não era melhor você viver lá do que aqui?”

Acontece que o rapaz vence a tentação. Toca o sino, entra ele na fila, ele reza o Ofício, cantam etc., etc., depois ele janta e a vida continua.

Ao cabo de dois, três, quatro dias, aquela imagem vai se apagando no fundo dele. Mas, resultado: ele se esqueceu daquilo, mas ele não recusou aquilo… Ele fica no serviço de Nossa Senhora, mas é um mole. Na hora de se entusiasmar, ele apenas aplaude; na hora de se indignar, ele apenas se desagrada um pouco; na hora de se entreter, ele se entretém apenas um pouco. Por quê? Ele percebendo ou não percebendo, a vida dele está no botequim do qual ele não saiu mais.

Então, nós ficamos sabendo como é que o indivíduo que era candidato ao cerne, fica fazendo parte da cortiça. E fica explicado que, possivelmente, haja na alma de um ou outro dentre nós, restos de saudades assim.

E havendo esse resto, nada está certo. Eu pergunto se está claro.

* Devemos pedir muito a Nossa Senhora e fazer um exame de consciência para extirpar de nossas almas as saudades da Revolução

Agora, o remédio: antes de tudo é pedir a Nossa Senhora – antes de tudo e de mais nada – que Ela limpe nossa alma de toda essa varredura maldita, por meio de graças que afluem, que incidem sobre nós, e que mudam as nossas almas. Nossa Senhora pode mudar as nossas almas. Nosso Senhor usou essas palavras: “A graça pode transformar pedras em filhos de Abraão”. Então, nós temos razão, quase obrigação de pedir e de esperar que isso aconteça conosco. De um lado.

Agora, de outro lado, é certo também que nós devemos fazer um esforço nesse sentido, à vista do que eu aqui falei. E devemos procurar fazer um exame nas nossas próprias consciências para sabermos se encontramos algum vestígio disso em nossas almas.

Pergunta: eu alguma vez fui mais fervoroso? Houve tempo em que o meu entusiasmo era maior? Houve tempo em que a minha dedicação era maior? Houve tempo em que eu tinha uma fé real no “Grand Retour”, na “Bagarre” e no Reino de Maria? Como é que está isso agora? Eu me arrasto? Isso é uma luz que bruxuleia apenas na minha alma?

Não sei se os senhores notaram, na lamparina do São Bento onde deve haver isso, em outras lamparinas que viram, esse fato: às vezes, a relação da chama com a mecha e com a quantidade de azeite é tal que vai se apagando a mecha e, de vez em quando, há um ufff, e a gente tem a impressão de que pela ação da mecha que brilhou mais, todas as sombras se deslocam. Mas, pouco depois, cai a luminosidade, e cai ao nível mais baixo do que estava antes de acender. E assim vai até o momento que está no chão…

Nós não nos devemos medir assim – isso é o exame de consciência do malandro -, o exame de consciência assim: “Bom, eu hoje cedo eu estava bem fervoroso, não estou agora, mas hoje cedo, oh! se me vissem…”. Porque essa é a hora em que a chama da lamparina subiu… rumo a descer mais, se eu não estou me observando continuamente, pedindo perdão, perdão, “tout court” [exatamente, precisamente] perdão. “Perdoai-me”! E entusiasmado com a ideia de que de fato Nossa Senhora pode me perdoar, e me pôr num alto grau junto a Ela. Assim se faz um exame de consciência, e a gente pode saber como é que estão as saudades de outrora.

Não sei se alguns dos senhores quer perguntar alguma coisa sobre isso, ou se dão a coisa por tenebrosa demais e, portanto, suficientemente explicada.

* O caminho para nos corrigirmos

É, por exemplo, procurar com toda confiança, mas toda confiança o respectivo quidam em última análise também a mim, e dizer claramente:

“Infelizmente eu estou nesse estado. O senhor mesmo descreveu esse estado, e mostrou como essa entalada é. O senhor mesmo disse que era preciso recorrer a Nossa Senhora, que Ela teria pena de nós. O recurso que Ela põe nas nossas mãos, é recorrer àquele que Ela colocou acima de nós para nos dirigir. Eu quero saber o que é que eu devo fazer, quero que o Sr. faça o favor de me descrever o meu estado. Que o Sr. me ajude a ver o meu estado inteiramente. Mas que o Sr. tenha pena de mim e considere que eu estou num estado de fraqueza, que se o Sr. falar com severidade eu não aguento.

“Eu venho, portanto, pedir, portanto, para o Sr. uma bondade que eu não mereço, mas também eu venho lembrar ao Sr. o que o Sr. várias vezes nos disse: que a misericórdia não é justiça. Se eu merecesse, o senhor ter comigo essa bondade seria um ato de justiça. Eu venho pedir misericórdia, eu não mereço. Mas o Sr. sempre ensinou que quanto maior é a dependência de uma pessoa, mais é o caso de lhe fazer misericórdia. Eu venho aqui me pôr nas suas mãos, e me confiar na sua misericórdia. Eu lhe peço, não me censure; eu lhe peço, não me puna, eu sei que eu mereceria. Eu peço do senhor o contrário: cicatrize-me, ajude-me a carregar esse fardo, ajude-me a voltar a ser eu mesmo. O Sr. quer?”.

Qual é dos senhores que teria o direito de duvidar da resposta transbordante de afeto que receberia? Não teria o direito. Com todo o modo pelo qual corre a vida na TFP, não teria direito.

Alguém dirá: “Mas a questão é que eu não tenho cara para me apresentar diante do Sr. assim”.

Eu diria: “É a mesma coisa, meu filho, do que um rapaz que está com a cara suja, e o lavatório dele está numa dependência do quarto do pai. Ele não lava a cara, porque não tem a coragem de se apresentar ao pai com a cara suja, e por causa disso fica fugindo o dia inteiro do pai com a cara imunda”. Ele jogou bem?… Ou ele deve dizer simplesmente: “Meu pai, sujei meu rosto, mas junto ao senhor estão as águas da misericórdia. Ajudai-me a lavá-lo”.

Eu me lembro, sou levado a me lembrar, o que faria Dona Lucília se eu agisse assim com ela. Que transbordamento de bondade, até de respeito para comigo, se eu agisse assim com ela: “Meu filho, etc.” Com serenidade e até com respeito. Levantando um pouco em mim a ideia de minha própria dignidade, e depois me dando todas as explicações, me agradando, me fazendo respirar um pouco. Se fosse o caso da confissão, levar-me a confessar, a pedir perdão. E, depois no dia seguinte, iria comungar comigo, ela. Não era uma outra coisa? É o nosso caminho. “Voilà”!

Meu Bueno, o que é que há?

(Sr. Bueno: Tenho a impressão de que o senhor descreveu a segunda parte do processo, mas existe uma primeira parte que é a do entusiasmo até chegar ao bar, não sei se o senhor poderia explicar?)

É uma pergunta cheia de propósito.

(Em que ponto a pessoa rompe [com] a Causa de Nossa Senhora, a união que ela tem com o Fundador, como nasce essa ruptura que termina nesse processo?)

Isso seria a terceira parte.

São três partes.

(Sr. Bueno: Se o senhor pudesse responder, se é o bar que causa a ruptura com o Fundador ou se primeiro há uma ruptura com o Fundador que causa o bar.)

Propriamente a sua pergunta é se a ida ao bar que causa a ruptura.

(Sr. Bueno: Se a ida ao bar, passar perto do bar, causou essa ruptura, ou se há antes uma ruptura com o entusiasmo que leva a pessoa a ir ao bar.)

* Quando a pessoa cede às saudades da vida passada é porque já havia decaído no fervor pela vocação

Há uma terceira hipótese que se tem a considerar também. A terceira hipótese, então, o Sr. Bueno definiu bem: uma hipótese é que a verdade, que uma catástrofe dessas começa passando em frente ao bar. Se não passasse, não acontecia nada.

Segunda hipótese é: pelo contrário, houve um fato antes, não sei, começou a se lembrar por causa disso, por causa daquilo, então a passagem do bar apenas agravou uma situação anterior, que é o começo da hipótese.

Eu digo que existe uma terceira hipótese e aí o elenco ficaria completo. Eu me volto um pouco para o senhor..

Bem, podem dar-se as três hipóteses: as duas que ele mencionou mais outra. Quer dizer, o rapaz vai passar em frente ao bar, porque era o caminho necessário dele. Ele nem pensou no bar. Quando, de repente, de longe ele está vendo aquela esquina, aquilo tudo, aquilo tudo sobe à cabeça dele e ele, em vez de reagir, olha com uma certa moleza, pensando: “Não vai me acontecer nada, eu estou habituado a reagir”.

Ou é outra coisa, ele pensa: “Isso tudo já acabou, não tem mais ninguém aqui, tudo já está dispersado com certeza. Olha como tudo isso está vazio. No meu tempo, a esta hora, a esquina estava movimentada. Não há perigo de eu descer aqui e tomar um, sei lá, uma Coca-Cola”. Isso pode acontecer, portanto ocasionalmente.

Pode acontecer de outra maneira: ele de manhã recebeu uma punição injusta. Notem bem hein, não estou falando da punição justa não, recebeu uma punição injusta e por isso se indignou. Ele quis explicar ao quidam porque é que era injusto aquilo, que o fato não se passou, qualquer coisa, mas ele notou que o quidam tinha outros informantes que prevaleciam no espírito dele, que o quidam não estava dando importância a ele. Ele então foi cumprir dez flexões lá fora. Mas, ele está efervescente, cada flexão: “Uma injustiça, duas injustiças…”.

De repente ele vê da vizinhança alguém que grita:

– Fulano!

É da casa vizinha que estão chamando alguém, era um amigo que ele tinha antes de entrar. E sobe toda aquela recordação ao espírito dele: “Fulano não tinha o poder de me mandar fazer flexões. Se quisesse, eu lhe dava umas bofetadas que ele havia de ver. No total ele nem tinha vontade, só tinha vontade de rir, eu também só tinha vontade de rir. Oh! que tempo!…”.

Então, houve um fato anterior que quando ele passou pelo bar à tarde, ele estava trabalhado por um fato anterior. Num caso houve, portanto, um fato anterior. Noutro caso não houve o fato anterior.

Bom, mas há uma terceira hipótese: não haver culpa. Simplesmente acontecer que Nossa Senhora permitiu que na hora de ele passar diante do bar, ele fosse tentado pelo demônio. Ele caiu. Teve o pecado, quer dizer, ele cedeu a uma tentação, mas não é que houvesse um processo nele anterior. Adão e Eva…

Enfim, assim seriam três casos sucessivos. Agora, em todos se nota um traço comum nas três hipóteses: é que a pessoa não estava no auge do fervor. Se estivesse no auge do fervor, a pessoa inegavelmente punha uma resistência e o auge do fervor consiste em que a gente preveja a ocasião de pecado: “Eu vou para o êremo agora, por onde eu vou?”. A pessoa faz um pequeno itinerário, por mais rápido que seja, mas passa pela cabeça isso. “Vou por tal lugar. Ah bom, se eu for para tal lugar, eu me lembro do bar, não vou passar pelo bar”. Isso é o auge do fervor. Quando a pessoa já não se lembra do perigo que vai encontrar no caminho, quer dizer que o fervor já está um pouco diminuído…

Agora, é por causa do quidam que mandou fazer algumas flexões a mais, ou foi injusto? Também não é razão. Quando o sujeito está no auge do fervor, o quidam mandando fazer uma injustiça, exercendo sobre ele uma injustiça, ele respira mais fundo e diz: “Serei mais fiel”! E cumpre aquelas flexões com entusiasmo. Ele compreende que se é grande o vento que quer levá-lo para fora, ele precisa se agarrar ainda mais à árvore. Assim cresce uma alma.

Se ele recebe uma punição apenas assim: “Coitado de mim, eu tenho pena de mim. Mas eu vou aguentar porque não tem remédio. Se eu sair daqui eu me perco, eu não quero me perder, então vou aguentar…” Já é uma dessas atitudes que de longe pressagiam, deixam entrever, que numa ocasião difícil que se apresente, a pessoa cai.

Essas coisas vão preparando a alma para…

Dinheiro, sonhando com negócios. “Agora os imóveis estão subindo…”

* Como devem ser tratadas, numa Ordem religiosa, as pessoas que têm a função de cuidar das finanças

Naturalmente a pergunta viria e seria essa: “Dr. Plinio, o Sr. acha então que fazer negócio é pecado?”

Eu dou uma resposta: em si não é, mas pode ser nocivo para uma vocação. Aqui está a questão, e nisso está o perigo. Alguém me dirá: “Mas eu não vejo jeito de acertar essa história, porque uma Ordem religiosa precisa de ter quem cuide dos negócios dela. Tem que ser um membro da Ordem. Então o Sr. chega à conclusão de que um ou uma é sempre fadado à tibieza!”…

Eu digo: o senhor compreende que se eu acho uma coisa dessas, eu sou um cretino. Tão cretino assim eu não sou, há de haver uma saída para isso. Qual é?

O superior ou superiora tenha um cuidado especial, especialíssimo com as almas que eles incumbem dos negócios! Não os deixem demorar muito no cargo. Se puder mudar de cada um ano, ou a cada dois anos, é o ideal. De maneira que ele saiba que, quando ele largar, largou. É um mero episódio na vida dele. E faça todos os esforços para que religiosos assim sejam bem assistidos…

…de um retiro, os senhores vejam como os tempos mudaram, em números muito redondos, há cem anos… – é mais do que cem anos – um retiro que Dom Bosco pregava na cidade de Turim, na Itália, todos os anos para banqueiros da cidade. Vá alguém oferecer de pregar um retiro para os banqueiros em São Paulo… É um cretino quem propuser, porque sabe que não vai ter.

Mas, como é que ele pregava esse retiro? Estavam presentes vinte banqueiros, o que para banqueiro é muito, hein! Ele começou a pregar sobre as verdades eternas, quer dizer, morte, juízo, Céu e Inferno. Em certo momento, disse: “Eu quero avisar os senhores uma coisa: dos senhores que estão aqui, um vai morrer no próximo ano. De maneira que, no retiro do ano que vem, um dos senhores estará entre os julgados”…

Sabia-se que ele era santo, sabia-se que muitas vezes ele previa o futuro, e agora como é? Os senhores imaginaram o tacho de água fria em cima desse “financismo”, e como isso muda?…

Assim se prega retiro para com gente que mexe com dinheiro! No ano que vem estavam todos lá, menos um: tinha morrido.

O cronista – ao menos no trecho que eu li, um livro que apresentava episódios da história salesiana – o cronista não dizia que comentários houve entre eles quando souberam da morte de um; nem quando chegaram lá, fizeram o cômputo, e disseram: “Falta um”; nem como que São João Bosco comentou o negócio.

Assim se devia cuidar esses pontos mais fracos de uma situação…

Os senhores estão vendo que não é para esse lado que sopram os ventos… De nenhum modo. Para que lado sopram? Para os conventos se desfazerem de suas riquezas e de seus tesouros e passarem a viver a vida miserabilista, a caminho da taba indígena. Aí está!

(Sr. Fernando Bueno: O senhor disse que, do perigo que têm esses que lidam com essas coisas, mas muitas vezes as pessoas não cuidam de nada disso e afundam também, agora, como é que a situação é assim?)

Porque admiram os que cuidam…

* Como Dr. Plinio trataria das finanças de um convento se lhe fosse ordenado pelo superior

Há gente que acha bonito fazer negócio arriscado. Vai, por exemplo, tomar conta das finanças de um convento, e nota que o convento tem dívidas e ao mesmo tempo tem entradas. Pelo meu feitio, se eu tivesse um superior e ele me mandasse tomar conta das finanças do convento, eu diria:

“Pese bem antes, porque eu, sem querer, vou pôr esse convento de pernas para o ar financeiramente, porque eu não entendo deste negócio, não sei como é, não tenho capacidade de entender. Quando eu começo a prestar atenção, eu vou ver, a minha cabeça está num outro assunto… Eu acho que isso aí é a coisa mais cacete do mundo! E ainda que eu tenha boa vontade, tudo… vai expor a um homem longamente uma coisa que ele não entende, ele não pode prestar atenção no que não está entendendo, a cabeça toma outra direção.

“Bom, mas se é para eu tomar conta da economia, não é à toa que eu tenho sangue português, é ali, na máquina registradora! Enquanto eu não tiver pago o último tostão de dívida, não se compra nada, não se aperfeiçoa nada, não se arranja nada, é só pão para comer e água para viver, até pagar!…

“Depois, nós não vamos começar a gastar não. Nós vamos continuar neste sistema até acumular um tanto para nós podermos viver de renda e não pensar mais em negócios… O fito do negócio é a gente escapar de dentro dele, ao menos é como eu entendo isso”.

Muita gente – eu não estou olhando para as caras – mas muita gente ouvindo isso me olharia com uma cara de desdém e um sorrisinho: “Esse senhor é dos outros tempos. Ele não compreende a beleza de uma pirueta: compra na bolsa, vende não sei o que etc., etc., faz uma geringonça, com esse dinheiro não paga a dívida. Faz dez vezes mais dinheiro e então paga um pouquinho da dívida…”.

Porque, uma vez um homem de negócio me explicou isso, não tinha nada que ver com o Grupo, era um homem de negócio. Ele disse: “Quando um homem de negócios vê um sujeito que pagou todas as suas dívidas, ele acha desprezível porque – olhe a razão que ele deu – se eu sou um homem de negócios capaz, eu sou capaz de, tendo dinheiro na mão, fazer multiplicar esse dinheiro por cinco, por dez, cem. Agora, eu posso pedir emprestado esse dinheiro a um incapaz que não sabe fazer multiplicar isso, na melhor das hipóteses para mais do que a metade do próprio valor durante um ano”.

Não sei se está claro.

“Então, eu pego o dinheiro de uma besta quadrada, e faço isso render um mundo de dinheiro na minha mão. Por que é que eu vou pagar a ele? Se eu pagar a ele, ele precisa pôr esse dinheiro a juro na mão de um outro para ter lucro, para poder viver. Então, deixa na minha mão, eu vou tirando do dinheiro dele, dinheiro para mim, do dinheiro dele, dinheiro para mim, de maneira tal que ele fica colocado ao léu, e eu fico nos galarins. De maneira que, cada vez que eu fico mais rico, é sinal que encontrei mais jeito de fazer multiplicar o dinheiro, então, é sinal de aumentar as dívidas, porque eu vou multiplicar o dinheiro que eu tenho”…

A resposta é: tudo isso é irrepreensível, exceto uma objeção: é que vira e mexe a pessoa escorrega, cai e acabou-se! E aí fica carregado de dívidas e não tem mais com que pagar, não tem mais crédito, ninguém empresta, como é que vai se arranjar? É muito melhor o sistema luso “velho de guerra”: pega aqui e…

(Fatinho!)

Fernando, só não me pergunte se alguma vez eu fiz dinheiro na vida, o resto…

(Sr. F. Antunez: Para sair do campo do dinheiro, eu perguntaria para o Sr. como foi que o senhor fez quando o Sr. rompeu totalmente com o mundo. O Sr. entrou no movimento católico e tomou uma série de medidas para não frequentar mais aqueles ambientes, de não tomar nenhum contato até chocá-lo. O Sr. poderia dizer como foi?)

* O rompimento de Dr. Plinio com o mundo

Quando eu rompi totalmente com o mundo, eu compreendi que não bastaria eu ausentar-me porque eu temia saudades. Eu temia as saudades, eu temia que – havia essa situação, pelo favor de Nossa Senhora, o mundo não me tinha sido ocasião de pecado contra o sexto mandamento, mas muito contra o primeiro. O pecado contra o sexto mandamento é um pecado material, a gente vê.

Quando é que a gente começa a pecar contra o primeiro mandamento? Quando é que começou amar menos a Deus? Quando é que começou a ter menos entusiasmo pela Igreja? A gente consegue sempre medir? Um mau olhar, um mau pensamento a gente percebe. Mas isto, como é? Eu tinha medo.

Então, eu criei uma barreira assim: nas casas onde eu ia, eu não fui mais. Também não dei satisfações. Não expliquei, nem nada, tranquei.

… de maneira que, por assim dizer, enterrar-me aos olhos deles como “carola”. Naquele tempo era muito feio um homem ser católico praticante. Era tido como horroroso. E eu então aproveitava a Missa, havia várias missas de manhã, aos Domingos, que eram frequentadas pela sociedade melhor de São Paulo.

São Paulo era muito pequena, de maneira que o que acontecia numa igreja naquela hora da missa, à noite todo mundo já sabia em São Paulo, São Paulo daquele ambiente. E, portanto, eu tomei a própria Igreja de Santa Cecília, que na missa das onze, era muito frequentada. E comprei na livraria do Coração de Jesus, um tercinho, um rosário, mas desses rosários de “carola”, azul claro. E comprei também, porque eu não tinha, um livrinho de piedade, desses de fazer Via Sacra etc., etc., e quando batia o sino e entrava o padre para a missa, eu começava a fazer a Via Sacra, todo mundo olhando.

E um homem fazer Via Sacra naquele tempo, era uma coisa de cair de costas, ainda mais um rapaz na minha idade – dezenove anos, vinte anos -, era uma coisa de cair de costas. E eu me lembro que uma vez eu vi, num banco, eu começava a Via Sacra no lado do Evangelho, a forma da igreja era essa, ia até o fundo e depois a Crucifixão e o Sepultamento de Nosso Senhor, que era o fim da Via Sacra ficavam perto do outro lado, já na capela do Santíssimo, portanto, lado da Epístola, considerando a Missa “versus Deo”, não “versus populi”. E eu fui. Quando cheguei no fim, encontrei-me junto a um grã-fino – desses que dão a opinião etc., não sei mais o quê – colega meu, amigo desde menino. Havia um lugar vazio.

Eu fui, ajoelhei-me ao lado dele e puxei o tercinho azul claro, e comecei a rezar sem olhar para ele. Ele percebeu o desafio, não é? Um desafio do outro mundo, equivalia a pegar o tercinho e enchafurdar na cara dele. Ele estava ajoelhado também, porque era uma hora em que toda a igreja, todo mundo ajoelhava e ficava mal não ajoelhar. Ele estava ajoelhado, mas não estava prestando atenção em nada. Ele viu aquilo, e deu um risinho malicioso sem olhar para mim. Um risinho, assim, no ar. Como quem diz: “eu percebo isso, e percebo o que é que você quer, mas eu não vou ligar. Eu vou passar por cima disso”. Levantei, quando terminou tudo, saí.

Tenho certeza de que naquela tarde ele contou para todo mundo: “vocês sabem, o Plinio hoje fez assim”. Isso tenho certeza. Trazia repercussões do outro mundo.

Eu me lembro, uma vez, num ato da vida de família, indispensável, e eu estava presente, e uma senhora casada com um primo meu, uma senhora alta, com uma voz muito possante, me grita do outro lado da sala, portanto todo mundo percebeu. A intenção dela era boa. Ela me disse: “Ó Plinio, eu vi outro dia você comungando na igreja do Coração de Maria. Você não faz ideia como eu fiquei contente, porque muita gente acha feio um homem comungar, eu acho bonito!”. Todo mundo em volta achou horrendo! Eu sustentei a nota dando uma resposta deste gênero: “Eu não vi você, em que Missa era? que horas eram? etc., etc.”. Quer dizer, sustentando a conversa nesse tema.

E assim acabou. Talvez fossem cinco horas da tarde naquele tempo… [referindo-se ao horário em que estava acabando aquele almoço-conferência]

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