O Beato Angélico (18/2) e uma nova iconografia

Da obra “A Milícia Angélica. Os Anjos no panorama atual da Igreja e do mundo” de Plinio Corrêa de Oliveira (compilação de Julio Loredo), Petrus, São Paulo, 2023, 1a. edição, págs. 48-53:
A iconografia angélica, ou seja, a representação dos anjos sob formas sensíveis, reflete a ideia que o homem tem dos anjos. Dessa forma, podemos conhecer não apenas a mentalidade dos que assim os representaram, mas também seu estado espiritual; e ainda podemos avaliar a situação espiritual e cultural dos homens em uma determinada época histórica. Na Idade Média, por exemplo, atingiu-se um auge:

 

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Fra Angélico é o melhor pintor de anjos que conheço. Representou os anjos com corpos humanos, como criaturas resplandecentes de graça. Seus corpos angelicais têm uma transparência, um frescor, uma beleza que o corpo humano não tem. São criaturas sem pecado original, figuras que superam os aspectos sexuais. Têm uma alma tão limpa e honesta, que estão prontos para qualquer ato de virtude; têm tanta lucidez, que podem dirigir qualquer governo; são tão guerreiros, que podem enfrentar qualquer batalha; e ao mesmo tempo são muito pacíficos. Tantos contrastes encontram-se numa magnífica síntese, exprimem a perfeita temperança medieval. Se não tivesse havido Fra Angélico, toda a Igreja Católica ficaria sem compreender alguns aspectos da natureza angélica, pois a escolástica de São Tomás de Aquino não bastava para abarcar essas realidades. Para isso Fra Angélico era necessário.[1]
“A diminuição da noção de anjo, resultante do processo revolucionário a partir do fim da Idade Média, provocou a decadência da ideia de santidade, e com isso o minguamento de toda a civilização cristã”.[2]
O Renascimento imprimiu uma mentalidade nova, que se reflete negativamente em nova iconografia:
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“Os anjos de Rafael revelam um talento artístico inegável. Mas também demonstram total falta de discernimento e bom gosto: figuras roliças, voluptuosas, nada combativas, incapazes de governar ou sacralizar. Ou seja, sem nenhuma das características próprias dos anjos.[3]
“A minha maior rejeição se volta contra os anjinhos barrocos, entezinhos bojudos, desordenados, nus, obscenos, inapropriados para tudo: corpo mole, braço mole, perna mole; aquela fuzarca de anjinhos nus é medonha, simulando um jardim de infância do pecado. Se fossem meninos numa escola, seriam uns eternos cretinos, os canalhas da escola. E se eu fosse criança, entraria em luta com eles, que moveriam seu ódio contra mim. Não se pode medir o que a Revolução ganhou com esses anjinhos. Não condeno que se representem os anjos como meninos, desde que não sejam meninos cretinos.[4]
“Curiosamente, enquanto as representações dos anjos os tornavam cada vez mais infantis, as do demônio os tornavam cada vez mais inteligentes, sagazes, astutos. Inverteu-se o quadro, passando das horrendas gárgulas medievais para refinadas figuras com barbas e bigodes”.[5]
Devido à compreensão imperfeita da natureza dos anjos e de sua ação, introduzida na Igreja constantiniana e potencializada por um sentimentalismo generalizado que tudo suaviza, as representações angélicas na arte ocidental são hoje muitas vezes inadequadas, quando não enganosas. Um apostolado eficaz sobre a devoção aos anjos implicaria, portanto, um reexame da iconografia atual:
“Para dar uma ideia correta sobre os anjos, é preciso renunciar completamente às figuras convencionais. Por exemplo, apresentar anjos que deem a impressão de seres colocados numa distensão completa, mas tendo dentro dessa distensão uma espécie de força sobrenatural capaz de comodamente mudar as coisas. Os anjos precisam dar a ideia do prœlium magnum que houve no Céu, onde os anjos lutaram uns contra os outros, e mostrar que no mundo atual há também o esforço de um anjo contra um demônio, não apenas a luta da graça contra a tentação preternatural. Precisam dar a ideia desse choque, e além disso mostrar o modo como ele se realiza na terra, para poder ser visto e acompanhado a todo momento, em todas as circunstâncias.[6]
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“Anjo arcabuzeiro” (Cusco – Peru)

“As representações dos anjos devem mostrar algo de aristocrático, pois os atributos dos anjos são por si mesmos aristocráticos; e características visuais altamente aristocráticas são conaturais com eles. De outro lado, os atributos de Satanás são vulgares como uma lata de lixo, e assim devem ser apresentados.[7]
“A Revolução procurou denegrir certos aspectos de Deus e dos anjos, como também certos aspectos da Igreja e da civilização cristã. É muito difundida, por exemplo, a ideia ou impressão de que tudo o que é grande é opressor, toda justiça é inexorável, implacável. Foi orquestrada uma espécie de sinfonia negra sobre certas perfeições morais.
“A ação angélica deve ser mostrada como exímia nas perfeições morais, de modo tão alto e tão puro, que uma perfeição entra em harmonia com outra, sem deixar de ser o que é. A majestade de Deus não exclui, por exemplo, o Senhor Deus das vinganças, mas também não exclui o Deus de misericórdia. Uma ideia transcendente de santidade contém, como num cone, todas as virtudes. Assim se combate a falsidade da sinfonia negra.[8]
“Da mesma forma, as representações de demônios devem ser diferentes. Por exemplo, o fogo do inferno deveria ter cores e formas diferentes, dinamismos diferentes, dependendo do pecado que tem de ser punido”.[9]
A iconografia deve mostrar a imensa variedade de anjos
“Normalmente os anjos são pintados de modo muitíssimo parecido uns com os outros, tão robôs como se possa imaginar, mas isso não preenche o meu elevado conceito sobre eles, que são muito mais ricos, muito diferentes do que imaginamos. Mesmo os anjos de Fra Angélico, dos quais sou entusiasta, são imóveis e aplicados em fazer sempre as mesmas coisas”.[10]
A nova iconografia será consequência de um estudo renovado dos anjos, acompanhado de uma nova graça:
“O tema dos anjos não acaba no plano doutrinário. Quando tivermos concebido inteiramente como são os anjos, deverão aparecer os artistas que pintem anjos num modo novo, ou angelizem ainda mais as imagens já existentes. Para isto terá que vir uma graça nova, mas é inegável que as coisas católicas já têm algo de angélico”.[11]
“Devemos notar e ressaltar em que pontos os anjos são diferentes de nós, mas também os pontos de analogia conosco. As conversas comuns sobre os anjos não põem em evidência essas diferenças e semelhanças, mas considero muito anti-axiológica essa lacuna”.[12]
“Seria preciso excogitar uma música não profundamente moderna, mas profundamente nova, tendo como ponto inicial uma observação da psicologia dos anjos, e a partir dela musicar o mundo angélico.[13] Um tratado sobre os anjos nos forneceria também a clave literária para abordar nossa imprecação e nossa deprecação face ao mundo moderno”.[14]

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Notas:

[1]    Chá 18/1/90, Comissão B, 3/6/67, CSN 1/05/76. Resumimos o que o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira diz sobre a iconografia de Fra Angélico. Na verdade, seus comentários abrangem muitas páginas. Mesmo o que ele disse sobre a decadência da iconografia angélica, paralela à decadência da própria civilização cristã, é muito mais extenso e articulado. Acabamos de relatar aqui apenas a sua essência.

[2]    Apostila 2.

[3]    SD 14/9/65, Apostila 2.

[4]    Apostila 2, MNF 17/11/82, CSN 1/5/76, SD 6/12/80.

[5]    Almoço 30/1/92, “O anjo da guarda é menos inteligente do que o demônio?”, Catolicismo, n° 41, maio 1954.

[6]    MNF 23/2/83, Apostila 2.

[7]    CSN 6/1/90.

[8]    CSN 1/5/76.

[9]    MNF 23/2/83, Apostila 2.

[10]  Apostila 2.

[11]  Apostila 1.

[12]  Apostila 2.

[13]  MNF 23/1/83, Apostila 2.

[14]  MNF 23/4/76, Apostilas 1-2.

 

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