Nossa Senhora do Carmo (16/7) – O Escapulário, a Profissão e a Consagração Interior

“Mensageiro do Carmelo”, Ano XLVII – Edição especial – 1959

 

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Imagem de Nossa Senhora do Carmo venerada na outrora Sede do Conselho Nacional da TFP brasileira, atualmente Sede do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira

Conferência proferida em São Paulo [15-11-1958], durante o Congresso da Ordem Terceira do Carmo

I – A essência de nossa vinculação a Nossa Senhora

Foi-me dado, para sobre ele dissertar neste brilhante congresso, o seguinte tema: “O escapulário e a profissão da Ordem Terceira do Carmo constituem um ato de principal consagração a Nossa Senhora. É indispensável que essa verdade seja propagada com grande zelo para um conhecimento mais profundo e mais perfeito da espiritualidade carmelitana”.

O enunciado da tese manifesta o louvável propósito de evitar que, em matéria de Ordem Terceira do Carmo, fiquemos apenas em exterioridades. Com efeito, o escapulário é um objeto palpável, que simboliza de um modo muito sensível nossa ligação com Nossa Senhora. Mas precisamente porque tal símbolo apresenta essas qualidades, podem certos espíritos facilmente cair na idéia de que sua simples posse, seu mero uso são suficientes para nos manter ligados a Nossa Senhora.

Também a profissão na Ordem Terceira do Carmo, feita habitualmente de modo tão solene e festivo, fala muito aos sentidos e à imaginação. Por isto mesmo, podem certas pessoas facilmente formar a idéia de que o simples fato da profissão estabelece entre nós e Nossa Senhora um vínculo tão profundo, que basta por si mesmo, e para todo o sempre, sem mais deveres, para nos manter unidos a Nossa Senhora como perfeitos Terceiros.

Tal é a condição do homem nesta terra que mesmo as melhores coisas, e as mais louváveis, são susceptíveis de abuso, não porque nelas haja qualquer coisa de mal, mas porque o mal está no homem cuja natureza decaiu com o pecado original. Assim se pode dizer que essas exterioridades tão úteis, tão oportunas, tão sábias, tão necessárias à natureza do homem podem, entretanto, ser usadas de modo errado fazendo com que tudo aquilo que o símbolo significa seja esquecido e apenas a realidade material do símbolo fique, como elemento evidentemente insuficiente para os fins que a instituição do símbolo tivera em vista. Realmente, é preciso que nos compenetremos bem de que a posse do escapulário ou o seu uso, e o simples ato de profissão na Ordem Terceira do Carmo, não constituem toda a essência de nossa vinculação a Nossa Senhora, e nada seriam se não fosse nossa consagração especial e interior à Virgem do Carmo. Este, sim, é o elemento básico de nossa condição de terceiros carmelitas. E o uso do escapulário, bem como a profissão na Ordem Terceira não são senão um objeto material e um ato jurídico – um e outro de grande significação e importância, aliás – que exprimem essa consagração.

O principal portanto, é que o terceiro esteja consagrado a Nossa Senhora, numa consagração que, feita no ato oficial da profissão, se conserve e aumente em intensidade ao longo da vida inteira. O terceiro deve, pois, compreender que é nesse fato interior, o qual em última análise, se desenvolve no terreno misterioso da relação das almas com Deus, indevassável para qualquer olhar humano, e posto diretamente sob os olhos do próprio Deus, é neste fato interior que consiste o liame que nos prende a Nossa Senhora do Carmo e faz de nós no sentido pleno da palavra, verdadeiros carmelitas.

Assim, portanto, por maior que seja, e o deve ser, o nosso apreço ao escapulário e à nossa profissão na Ordem Terceira, é de capital importância que nossa consagração interior seja por nós reputada o elemento capital de nossa vida carmelitana. É o que bem diz o enunciado da tese que nos foi dado desenvolver na noite de hoje. Afirma ela uma verdade que deve ser propagada com grande zelo, pois assim se evita o inconveniente de que numerosos Terceiros levem uma vida carmelitana completamente desviada do seu espírito, do seu sentido mais verdadeiro e profundo.

II – A Consagração a Nossa Senhora e a vida no Século

Se estas verdades são muito fáceis de enunciar e por si mesmas se provam, entretanto, é mais difícil precisar bem no que consiste a verdadeira consagração a Nossa Senhora e, especialmente, de que modo essa consagração deve efetivar-se em nosso século.

O Reverendíssimo Padre Provincial, Frei Bonifácio Harink, numa das alocuções deste congresso frisou bem que o terceiro carmelitano vive no século. E o Revmo. Padre Frei Kiliano Lynch, Geral da nossa Ordem, na esplêndida carta que aqui está sendo distribuída, e que Sua Paternidade dirigiu aos participantes deste congresso, ressaltou que a característica do apostolado dos leigos, portanto dos Terceiros Carmelitas também, consiste em desenvolver-se no século, em agir no seio da sociedade civil, para promover a salvação das almas por todos os meios lícitos, inclusive pela impregnação do espírito da Igreja em todos os valores próprios à esfera temporal. Não se trata, portanto, para nós, de evitar as coisas do século, enquanto tais, não se trata para nós de fugir para uma Tebaida ou para o recesso sagrado de uma Ordem estritamente contemplativa, nem sequer de vivermos a vida conventual numa Ordem consagrada ao apostolado externo. Trata-se, para nós, isto sim, de estarmos dentro do século e de ordenarmos para Deus os valores do século que foram criados para Ele e dos quais se deve exigir que Lhe dêem glória. Trata-se de comunicar a esses valores o seu verdadeiro caráter cristão.

Em tais condições, é preciso termos uma idéia exata de como a consagração a Nossa Senhora se realiza no século. Mas, falar do século, em tese é dizer pouco: cumpre tomar em consideração como a sociedade temporal vive em nossos dias e as peculiaridades da época em que estamos.

Fazendo-o, devemos ter em mente os elementos positivos bem conhecidos, mas não devemos esquecer o elemento negativo. Quem é o príncipe deste mundo? Qual é o inimigo ao qual nós não devemos servir? Qual é aquele outro “senhor” que também nos pede que nos consagremos a ele, e que é incompatível com a Senhora excelsa a quem protestamos servir na Ordem Terceira do Carmo? Sem que recusemos a este “senhor” toda a forma de serviço e vassalagem, sem que o combatamos sempre e por toda a parte, nossa consagração a Nossa Senhora não será verdadeiramente plena. E assim nós passamos de termos genéricos de nossa tese para o ponto flagrante de nossa consagração como ela deve ser realizada em nossa vida de filhos da Igreja militante no século XX.

Isto implica em perguntarmos no que consiste a consagração a Nossa Senhora de nossas pessoas e dos genuínos valores da sociedade temporal, nos termos da esplêndida carta que nos dirigiu tão paternalmente o Revmo. Frei Kiliano Lynch. A noção corrente a tal respeito, inteiramente verdadeira e imensamente preciosa, parte da consideração de Deus como:

a) causa final do universo

Sendo Deus o fim de todas as coisas, é normal que todas sejam ordenadas para Ele, o que se dá mediante a ordenação de todos para o cumprimento da Lei, a salvação das almas e a exaltação da Igreja na terra.

São tão verdadeiros, tão claros e tão conhecidos pelos Srs. Congressistas estes princípios, que não me deterei em os expor mais longamente. Mas ao par deles há um aspecto que corresponde a várias das preocupações da filosofia contemporânea e que ficou mais ou menos soterrado no acervo dos conhecimentos da doutrina católica, correntes em grandes massas de fiéis. Parece que sobre eles é conveniente que eu me detenha mais.

b) Deus como causa exemplar do universo

Deus criou o universo e depois deu ao homem a faculdade de completar vários aspectos da ordem e da beleza universal por meio de sua ação, de maneira que no dizer de Dante todas as coisas são filhas de Deus e as obras do engenho humano devem ser consideradas netas de Deus. Assim, Deus, ao criar o universo, teve em vista um admirável plano de harmonia e beleza, mas deixou a realização de parte desse plano confiada à luzes, ao arbítrio, ao engenho do homem.

Para que todo esse plano? Para que todo esse universo de ordem e beleza instituído por Deus?

Insisto na idéia de universo de beleza, porque habitualmente em nossos dias se considera de preferência o universo como uma grande máquina de funcionamento perfeito. Assim, quando se fala a respeito da sabedoria do Criador, mostra-se quase sempre como as coisas estão concatenadas de tal forma que elas não se destroem, nem colidem umas com as outras, mas que coexistem com harmonia e mutuamente se apoiam. É uma visão funcional do universo inteiramente verdadeira, por certo, mas que mostra apenas um aspecto que nossa época mecanicista e ultra-técnica mais facilmente compreende.

Mas há um outro aspecto do universo relacionado com Deus enquanto causa exemplar, enquanto Ser incriado e infinitamente belo que se reflete de mil maneiras em todos os outros seres que Ele criou. De maneira tal que não há nenhum ser que a um título ou outro não seja um reflexo da beleza incriada de Deus. Mas, sobretudo, a beleza de Deus se revela no conjunto hierárquico e harmônico de todos esses seres de tal maneira que não há, em certo sentido, um modo melhor de conhecermos a beleza infinita e incriada de Deus do que analisando a beleza finita e criada do universo considerado, não tanto em cada ser, mas no conjunto de todos eles.

Deus se reflete, ainda, em uma obra prima mais alta e mais perfeito do que o Cosmos. É o Corpo Místico de Cristo, a sociedade sobrenatural que veneramos com o nome da Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana. Constitui Ela mesma todo um universo de aspectos harmônicos e variegados, que cantam e refletem, cada um a seu modo, a formosura santa e inefável de Deus e do Verbo Encarnado.

Na contemplação, de um lado, do universo e, de outro lado, da Santa Igreja Católica, podemos elevar-nos à consideração da beleza santa, infinita e incriada de Deus.

Há um conjunto de regras de estética que nos podem facilitar o conhecimento da beleza que Deus pôs no universo, como ponto de partida para subirmos à consideração de sua beleza incriada.

A mais fundamental dessas regras é a COEXISTÊNCIA HARMÔNICA DA UNIDADE E DA VARIEDADE. Em vez de nos atermos, entretanto, a uma enumeração e uma definição fria desses princípios seria, talvez, mais interessante que os consideremos enquanto realizado em alguns dos seres que mais facilmente nos caem debaixo dos olhos. Comecemos pelo mar. Um dos primeiros elementos de sua grandeza é precisamente a unidade. Todos os mares da Terra comunicam-se entre si e constituem uma imensa massa de água que cinge o globo terrestre. Assim, postos em qualquer ponto do mundo, uma das considerações mais agradáveis que nos é dado fazer, é lembrar que a imensa massa líquida que se estende diante de nós, até as fímbrias do horizonte não se encerra ali, e tem atrás de si imensidades a que se sucedem outras imensidades para formar a grande e única imensidade do mar que se move, que se joga e que brinca por toda superfície da terra.

Mas ao mesmo tempo que o mar nos apresenta essa unidade esplêndida, impressiona pela grande variedade que nele podemos observar.

VARIEDADE, EM 1º LUGAR, QUANTO AO MOVIMENTO. Ora o mar se nos apresenta manso e sereno, parecendo satisfazer todos os desejos de paz, de tranqüilidade e de quietude de nossa alma. Ora, ele se move discreta e suavemente, formando em sua superfície pequenas ondas que parecem brincar diante de nós, para fazer sorrir e distender nosso espírito como se tivesse diante de si as realidades amenas e aprazíveis da vida. E ora, por fim, ele se mostra majestoso e bravio erguendo-se em movimentos sublimes, arremetendo furiosamente contra rochedos altaneiros e deslocando de seus abismos massas de água insondáveis para submergir ilhas e invadir continentes. Neste estado, o mar parece dominado de uma fúria avassaladora e que canta com seus rugidos e sua grandeza todo um poder que existe no mais profundo dele e que não se suspeitava nem um pouco, nos seus momentos de mansidão e de graça. Parece-nos presenciar os lances mais empolgantes e heróicos da História.

Também há VARIEDADES ESTÉTICAS DO MAR

Às vezes é ele tão claro através de uma grande massa líquida até o fundo de suas águas. E outras vezes, ele se mostra escuro, impenetrável, profundo, misterioso. Se em certos panoramas, o mar se apresenta em superfícies imensas e quase sem limites, em outros panoramas, ele está circunscrito pelos acidentes do litoral e forma pequenos golfos fechados em que, por assim dizer ele se compraz em estar em intimidade conosco, fazendo-se pequeno para melhor se deixar ver e amar.

O mar, pelos seus ruídos, não é menos variado. Ora seu murmúrio dá a impressão de uma carícia, que embala e faz dormir, ora não passa de um fundo auditivo que parece com a prosa de um velho amigo que já muitas vezes se ouviu. Mas pouco depois ele nos fala como bramido dominador de um rei que quer impor a sua vontade a todos os elementos.

O modo porque ele se “comporta” na praia é igualmente variado. Às vezes, o mar chega à terra célere e ofegante, outras vezes caminha para ela tardio e preguiçoso, em ondas que se movem languidamente. E outras vezes, por fim, parece tão completamente parado que se diria quase que ele se contenta em ver a terra sem tocá-la.

Ora, todas essas diversidades do mar não teriam para nós concatenação nem encanto, se não se apresentassem sobre o grande fundo de uma unidade fixa, invariável e grandiosa. Esta é a beleza da unidade na variedade do mar.

Devemos, entretanto reconhecer que a variedade do mar é um tão poderoso elemento de beleza por não ser uma variedade qualquer, mas oferecer em alto grau os CARACTERES ESPECÍFICOS DA VERDADEIRA VARIEDADE HARMÔNICA.

Tais caracteres são:

1º) Essa variedade chega até a oposição, quer dizer, é tão grande que seus pontos extremos chegam a atingir aspectos opostos e como que contraditórios entre si. Esta variedade pelo próprio fato de que reúne em uma só gama extremos tão pronunciados, tem uma suprema harmonia, uma indiscutível beleza. Nós não encontraríamos tanta beleza no mar se ele não soubesse ser, por exemplo, tão extremamente manso e tão extremamente furioso, tão extremamente majestoso e tão extremamente gracioso. É na harmonização do extremo da mansidão e no extremo da fúria, por exemplo, que se verifica a perfeição da variedade do mar.

Esta variedade de oposição deve comportar uma certa simetria, quer dizer, é necessário que quando uma coisa tem um caráter, e leva a um extremo, o lado oposto chegue a um extremo igualmente acentuado. Se o mar fosse extremamente furioso em certos movimentos e apenas um pouco calmo em outros, sua beleza não seria grande. Para que a oposição seja perfeita cumpre que o mar possa ser tão grande quanto furioso em umas horas quanto é profundamente manso em outras. E só com esta simetria é ele inteiramente belo.

Mas, ao mesmo tempo, AS VARIEDADES HARMÔNICAS DAS GAMAS INTERMEDIÁRIAS, também concorrem notavelmente para a beleza do mar. Essas situações de transição são tão harmônicas que nós em determinados momentos nem podemos dizer bem como o mar nos parece. Estará bravo? estará manso? estará claro? estará escuro? Não o sabemos dizer porque o mar vai passando de um extremo para outro com várias fases intermediárias tão esplendidamente matizadas e harmônicas que a linguagem humana não é suficiente para as descrever, e o único processo para tal é o da comparação. Por exemplo, quem viu o mar que esteve furioso e está ficando manso pode dizer que ele está manso mas quando se lembra do mar verdadeiramente manso e o considera nesse momento de transição tem ainda a impressão do mar furioso. Por esta espécie de contradição de aspectos opostos existentes no mesmo meio termo, tem-se bem a idéia de toda a riquíssima gama de estado intermediários que o mar atravessa.

Mas a relação entre esses próprios estados intermediários deve apresentar uma verdadeira continuidade. De um extremo a outro o mar não salta, mas passa sempre com rapidez maior ou menor por todos os estados intermediários. Esses estados são habitualmente perceptíveis em sua sucessão, como matizes que se substituem uns aos outros. Mas quando a sucessão dos matizes é muito perfeita, dá por vezes a impressão de que não muda. Mas ao cabo de pouco tempo e sem saber como, o observador está diante de um quadro diverso. É que essas mudanças foram tão delicadas e tão imperceptíveis que excederam à precisão de nossos sentidos ou pelo menos a acuidade de nossa atenção.

Há por outro lado uma forma de variedade que não é tão nítida no mar, mas é muito relevante no céu: A VARIEDADE DO PROGRESSO.

Há no firmamento uma variedade de aspectos que vem desde a aurora até a noite posta, de maneira tal que oferece um quadro encantador, primaveril, matutino na aurora, depois vem ganhando em colorido, em força, e em majestade até chegar à gloriosa plenitude do meio dia. Em seguida ele se vai esvaindo lentamente até chegar às tristezas do crepúsculo e por fim ele toma o seu aspecto noturno. Este se conserva mais ou menos contínuo e imóvel até os primeiros clarões da aurora. Há, assim ao longo do dia uma harmoniosa sucessão de aparências que vão dos primórdios ao apogeu, e deste à decadência, num processo de progresso e retrocesso, ciclo de aspectos variados que o céu percorre.

Outro princípio de variedade, que confere ao céu uma beleza peculiar é o PRINCÍPIO DITO MONÁRQUICO: a ordenação das múltiplas formas e variedades em torno de um elemento ou ponto central em função do qual elas se harmonizam e reciprocamente se explicam. É o papel do sol no firmamento. Em função dele, no céu, todas as variedades não são senão fundos de quadro que cooperam para realçar de mil modos em toda a sua beleza.

Assim temos os vários princípios da beleza realizados no mar e no céu, isto é, em duas criaturas que estão constantemente debaixo dos nossos olhos e que são esplêndidas semelhanças da beleza incriada e espiritual de Deus, Nosso Senhor.

Mas sabemos pela doutrina católica que se a formosura de todas essas coisas é imagem de Deus, Espírito puro e infinitamente perfeito, assim também, já que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deuselas são também imagens do homem, e que o céu e o mar, em seus vários estados, fazem lembrar a alma humana, em suas várias disposições, o jogo complexo das paixões humanas, as virtudes da alma humana quando esta realmente reflete a santidade de Deus, Nosso Senhor.

Desta maneira essas regras de estética são para nós meios para considerarmos a verdadeira beleza da santidade no homem. No homem, sim, e, pois, na mais alta de todas as meras criaturas, em Nossa Senhora, que, com tanta e tão esplêndida propriedade, tem sido e deve ser comparada quer ao céu quer ao mar. Alma de uma imensidade inefável, alma na qual todas as formas de virtude e de beleza existem com uma perfeição supereminente da qual nenhum de nós pode ter uma idéia exata, Nossa Senhora é bem aquele mar, aquele céu de virtudes diante do qual o homem deve ficar estarrecido e enlevado e que com todas as suas forças deve procurar amar e imitar.

Em Nossa Senhora se encontra também, a mesma unidade na variedade dos dons de Deus. Isto se nota bem no fato de que sendo una Ela se apresenta a nos na variedade admirável das suas invocações. Ela é Nossa Senhora da Paz. Ela é a Nossa Senhora das Dores, Ela é Nossa Senhora da Boa MorteNela todos os contrastes se harmonizam. Ela é ao mesmo tempo “Auxílio dos Cristãos“, mas “Refúgio dos Pecadores“, Ela é glorificada pela sua humildade incomparável, mas todos os videntes que tiveram a felicidade de A contemplar nas suas aparições comentam a sua soberana majestade. Ela é Nossa Senhora que se nos apresenta a nós “Ut Castrorum Acies Ordinata” mas ao mesmo tempo Ela é “Mater Clementiae et Misericordiae”. Poderíamos fazer um estudo de Nossa Senhora com o auxílio dos mesmos princípios que nós aplicamos na análise do céu e do mar. Quem, por exemplo, pode olhar melhor numa perfeita harmonia contrastes aparentemente irreconciliáveis, de que a Virgem Mãe chamada a Virgem das Virgens, que poderia muito lícita e validamente também ser chamada a Mãe das Mães. Ninguém mais plenamente mãe, Mãe por excelência, do que Ela.

Ninguém mais plenamente virgem, Virgem por excelência do que Ela também.

III – A CONSAGRAÇÃO A NOSSA SENHORA, OBRA PRIMA DA CRIAÇÃO

Ora, a consagração a Nossa Senhora consiste em o homem dar-se a Ela. E, já que ele pode realizar em si de algum modo as virtudes que nela refulgem, dar-se à Mãe de Deus é para o homem procurar imitá-La e também serví-La. O conhecimento de Nossa Senhora, a admiração por Nossa Senhora, a imitação e o serviço de Nossa Senhora são os elementos integrantes desta completa consagração a Nossa Senhora que nós queremos verdadeiramente realizar.

Mas daí nós passamos a uma pergunta: Qual a influência exercida pelas condições peculiares à vida no século, no modo de vivermos nossa consagração? A vida no século deve ser tal que os mesmos princípios de beleza universal que revertem em última análise em princípios de moralidade e santidade universal se reflitam não só nas almas, mas em tudo aquilo que cerca o homem. Por uma misteriosa afinidade as formas, os sons, as cores, os perfumes podem exprimir estados de espírito do homem. É necessário, pois, que reflitam estados de espírito virtuosos para a formação dos ambientes em que o homem encontre os recursos necessários para a sua santificação, imagens de Deus que lhe dêem o atrativo da virtude e o estimulem por essa forma a conhecer a ter apetência daquela beleza incriada de Deus que ele só verá face a face na glória dos céus.

Organizar uma ordem temporal que assim forme as almas e as convide para o Céu, eis uma alta missão dos leigos vivendo no século. Claro está que tal ordem temporal teria uma consonância profunda com a Revelação, os ensinamentos e as leis da Igreja, bem como com os ditames da verdadeira ciência. Ela seria pois o Reinado de Jesus Cristo, o Reinado de Maria na terra.

A esta altura podemos nos perguntar a nós mesmos: então, no nosso século em que consiste o serviço de Nossa Senhora? Consiste em salvar as almas, por todos os meios lícitos dentre os quais queremos acentuar este: tomar todas as coisas, ordená-las dentro desse espírito e construir a cultura e a civilização cristã. Pois que uma e outra, sob certo aspecto, não são senão a disposição das coisas de maneira que elas sejam nesta vida o reflexo de Deus e orientem as almas para a vida eterna. Estar consagrado a Nossa Senhora e serví-La é sustentar, é promover e defender contra os seus adversários, a cultura e a civilização comparáveis àquela pérola preciosa que o homem deve procurar vendendo todas as coisas que tenha: cultura e civilização que são aquela paz na terra prometida aos homens de boa vontade pelos Anjos de Belém, a única paz de Cristo no reinado de Maria.

Assim, é não só um homem profundamente interior, mas soldado nato da cultura e da civilização cristã todo verdadeiro terceiro carmelita que compreenda o que é a sua consagração.

IV – PROBLEMAS PECULIARES À AÇÃO DA ALMA CONSAGRADA NO SÉCULO XX

Para que compreendamos bem como servir a Nossa Senhora em nosso século é preciso que tenhamos bem em consideração as circunstâncias peculiares a este.

Vivemos em nossos dias em um processo revolucionário que, tendo começado com o Protestantismo e o Humanismo no século XVI, alcançou um triunfo universal pela Revolução Francesa no século XVIII e pela extensão dos princípios desta no mundo inteiro, no século XIX. Esse processo chega agora aos extremos de si mesmo na afirmação do comunismo. Nós estamos, portanto, no clímax de uma longa série de apostasia. Nisto está a marca dominante dos acontecimentos de nossos dias, e das circunstâncias dentro das quais a Igreja age, vive e luta atualmente. Em outras épocas, a Igreja também tem tido adversários a enfrentar. Nunca, talvez, – e nesse sentido são tão numerosas as citações pontifícias que eu me dispenso de as lembrar aqui – teve Ela que enfrentar uma tão profunda investida, que A ataque com tal furor em todos os pontos de Sua doutrina, de Seus costumes, de Suas instituições, e de Suas leis. Nunca seus inimigos mostraram tanta coerência, tanta unidade de objetivos, e tanto rancor quanto em nossos dias. Assim, e seja qual for o ângulo do qual vejamos o panorama hodierno, é preciso que coloquemos no centro de toda a nossa perspectiva esse fenômeno: a investida multisecular das forças do mal chegada hoje a seu paroxismo.

Vivemos, como há pouco afirmamos, dentro de um processus revolucionário que mina e corrói uma realidade gloriosa, isto é, a civilização cristã. Assim, portanto, temos um inimigo a atacar e um patrimônio a defender. O patrimônio é todo o imenso e inapreciável tesouro de tradições desses 20 séculos de civilização cristã que nós tivemos atrás de nós. Patrimônio esse que não deve ser considerado como um valor estático, mas ao qual pelo contrário, cada século foi dando o seu contributo. Também nós, pela nossa fidelidade e pela nossa vida acrescemos este glorioso acervo. Em face de nós está essa Revolução que é, justamente, o contrário de tudo que amamos. Nós a devemos atacar em todas as suas manifestações.

Assim se explica um dos aspectos essenciais de nosso apostolado realmente adequado a nossos dias.

Tal aspecto merece uma explanação conveniente, para que compreendamos bem o que vem a ser “in concreto”, e em sua plenitude, a perseverança na consagração a Nossa Senhora, em nossos dias. Com efeito, costuma-se dizer que o católico deve ser o homem de seu tempo, que deve ter a vista aberta para todos os progressos, que deve ser um homem que se acomoda tanto quanto possível às circunstâncias da época em que vive. Ninguém poderia dizer que em si mesmas essas expressões são falsas. Mas devemos saber distinguir uma aceitação inteligente e cheia de discernimento, das condições da época, de uma aceitação simplória, impensada, fraca, tíbia que abrange não só o que as condições da época têm de bom, mas o que o espírito da Revolução instilou veladamente até em muitas das boas condições da nossa época. De modo que há “aceitação”, e há “ser homem do tempo”. E é exatamente a linha divisória entre uma coisa e outra, que deve ser por nós marcada com todo o cuidado.

Em que sentido um católico pode e deve ser homem do seu tempo? Toda época costuma diferenciar-se da anterior por se ver nesta alguns defeitos que lhe ferem a atenção e que deseja corrigir. Mas, ao mesmo tempo, acontece que muitas vezes uma época dissente de outra anterior porque discrepa também das qualidades desta. Em relação ao passado próximo de que nós provimos, mas não queremos, não devemos, e não podemos aceitar tudo mas rejeitar até certos elementos com cuidado. A época passada apreciava, por exemplo, a oratória florida, farfalhante, verbosa e torrencial, que se manifestava em todas a ocasiões possíveis. Um aniversário, uma formatura, um casamento, o regresso de uma longa viagem, tudo era ocasião para um discurso. E tais discursos eram tão padronizados que já havia manuais que continham peças oratórias de circunstâncias para o moço que se forma em Direito, por exemplo. Essas peças podem ser repetidas, por exemplo, em todo Brasil desde o Amazonas até o Rio Grande do Sul, em Portugal e nas Colônias.

Evidentemente para nós, que achamos que o tipo do homem romântico que nos antecedeu era pouco eficiente, tinha o espírito povoado de sonhos vácuos, e uma imaginação em fogo, que ele nem primava pelo rigor da lógica, nem pelo desejo de traduzir em fatos concretos aquilo com que sonhava, para nós toda essa abundância de discursos se patenteia supérflua. Os poucos discursos que se fazem hoje devem ser rápidos, em uma linguagem menos convencional, menos hirta, em uma linguagem viva e não de uma linguagem morta. Para nós, todas as flores daquela retórica estão já gastas pelo uso e, portanto, devem ser relegadas ao museu. Nenhum de nós se extasiaria, como um velho amigo meu, ouvindo um discurso de Ruy Barbosa a bordo de um navio e contando-me que para dizer umas mesma coisa, o expansivo tribuno soube empregar catorze sinônimos. Quanto a nós, pensaríamos nos catorze minutos perdidos e nos aborreceríamos com essa prolixidade supérflua.

Segundo os cânones do romantismo passado, por exemplo, o gosto pela tristeza era um atributo essencial do espírito. Um moço segundo o estilo em voga, deveria ser doente e infeliz, deveria exalar a sua infelicidade e a sua doença numa guitarra, deveria trocar a noite pelo dia, deveria ser um daqueles sonhadores de garoa e de orgias tão típicas da velha Faculdade de Direito. A nós hoje nos parece que tudo isso está errado. Sem falar na orgia, parece-nos que essa glorificação da melancolia, esse amor à doença, essa mania de se sentir triste, são anti-naturais e ridículas.

Desta ordem de idéia nós poderíamos passar facilmente para outra. A incompreensão dos homens, por exemplo, de uns 120 ou 130 anos e no Brasil muito mais recentemente, dos homens até o fim do século passado, para o mar.

Quem é que, tendo recursos para construir um palácio com o vulto do Catete, haveria de fazer como seu proprietário, que o construiu com os fundos para o mar e a frente para a cidade, num alheiamento patente das beleza do panorama do Flamengo? Conta-se que este senhor queria ao mesmo tempo construir no outros ângulos da praça do palácio três outras moradias iguais para seus filhos, de maneira que o mar nesta concepção arquitetônica e urbanística estava completamente excluído. Quem de nós pode achar que se deve voltar a essa concepção? O Palácio do Itamarati visitado com encanto até hoje pelos diplomatas estrangeiros, quem de nós, se o construísse hoje, haveria de o colocar no fundo do Rio de Janeiro em vez de o situar em uma bonita ilha, ou pelo menos em um ponto pitoresco do litoral?

Nenhuma época do passado pode ou deve ser intocada. É sempre possível, por um movimento verdadeiramente progressivo, abolir defeitos e melhorar qualidades. Mas isto não basta, é preciso também que nós nos lembremos de que muitas das transformações instituídas no presente não representam um trabalho inteligente para depurar e fazer progredir as tradições que recebemos, mas, pelo contrário, constitui um esforço de destruição clara ou de falseamento sub-reptício dos valores da civilização cristã. Em carta dirigida ao Eminentíssimo Cardeal Arcebispo Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota pelo Exmo. Mons. Ângelo Dell’Acqua, então substituto da Secretaria de Estado da Santa Sé, falando com a responsabilidade de seu cargo, pudemos ler que o mundo contemporâneo, por efeito do Laicismo, perdeu quase completamente o senso cristão da vida. Chamo a atenção para estas últimas palavras. Ora, sabemos que um homem não fica sem senso nenhum. Se ele perde o senso cristão, substitui-o o espírito anti-cristão. Portanto quase todos quantos existem hoje estão marcados em escala maior ou menor pelo senso anti-cristão da vida. Somos infelizmente filhos de nosso tempo e estamos todos expostos ao risco de trazer em nós insuspeitados, muitas das infiltrações desse senso anti-cristão da vida.

Como são freqüentes em torno de nós as pessoas que supõem que têm verdadeiro espírito católico, porque recebem uma ou outra vez os sacramentos e praticam alguns atos de piedade. Entretanto, os seus modos de pensar, de sentir e de agir são marcados por um espírito oposto ao da Igreja. Até mesmo entre as pessoas piedosas dá-se, em escala menor embora, o mesmo fato. Nessas condições, há razão para sentirmos uma verdadeira desconfiança até de nós mesmosE devemos com suma diligência e um grande temor nos dedicar à tarefa de distinguir em nossa época aquilo que há de bem e de mal. Obriga-nos a tal o santo receio de renunciar a alguma coisa daquele depósito d tradições católicas que recebemos de nossos maiores e que devemos transmitir aos pósteros não só intacto, mas até acrescido. Está bem corrigir judiciosamente o passado. Mas modificá-lo sem esse discernimento, levianamente, a todo propósito e às vezes pelo simples gosto da modificação, eis o que não se deve de modo algum fazer.

Não se pode imaginar algo mais contrário à verdadeira consagração a Nossa Senhora do que esta falta de cuidado no proteger a tradição cristã.

Porquanto, se o terceiro se entrega sem critério nem reservas ao século, ele serve a dois senhores, ele não é um verdadeiro carmelita, a sua consagração não é uma consagração efetiva.

Assim embora repudiando formalmente a idéia de que devemos conservar imóvel o passado, afirmamos que nunca na História da Civilização Cristã foi tão difícil a alguém fazer esta discriminação entre os valores verdadeiros do passado e aquilo que nele deve ser retificado em nossa época.

Disso dão bem uma noção as palavras iluminadas do discurso do Santo Padre Pio XII ao Patriciado e à Nobreza Romana no dia 19 de janeiro de 1944. Elas deixam bem ver que em tudo aquilo que é renovação feita segundo o espírito da Igreja deve entrar em sentido de profundo amor à tradição. Diz o pranteado Pontífice:

“As coisas terrenas fluem como um rio no alvéolo do tempo: o passado cede necessariamente o lugar e o caminho ao porvir, e o presente não é senão um instante fugaz que vincula um e outro. É um fato, um movimento, uma lei: não é um mal em si. O mal seria se esse presente, que deveria ser uma onda tranqüila na continuidade da corrente, chegasse a se tornar uma tromba marinha, convulsionando todas as coisas como um tufão ou ciclone no seu avançar, escavando com fúria destruidora e voraz um abismo entre o que passou e o que está por vir.

“Tais saltos desordenados, que a História faz em seu curso, constituem e determinam então o que se chama uma crise, ou seja, uma passagem perigosa que pode conduzir à salvação ou à ruína irreparável, mas cuja solução está ainda envolta em mistérios, dentro das nuvens negras das forças em choque.

“Patriciado e nobreza, vós representais e continuais a tradição.

“Esta palavra, como bem sabeis, soa desagradavelmente a muitos ouvidos. Ela desagrada com razão quando pronunciada por certos lábios”. (E são exatamente os lábios, dizemos nós, daqueles que quereriam conservar o passado numa imobilidade impossível)

“Muitos espíritos, mesmo sinceros, imaginam e crêem que tal tradição não seja mais do que a lembrança, o pálido vestígio de passado que não existe mais, que não pode voltar, e que, quando muito, é com veneração, e, se vos agrada, com gratidão relegado em um museu”…

“Mas a tradição é muito diferente do que um simples apego ao passado já desaparecido. É justamente o contrário de uma reação que desconfia de tudo o que são progressos. O próprio vocábulo etimologicamente é sinônimo de caminho, e marcha para a frente; sinônimo e não identidade. Com feito, enquanto o progresso indica somente o caminho para a frente, passo após passo, procurando olhar um incerto porvir, a tradição indica também um caminho para a frente, mas caminho contínuo, que se desenvolve ao mesmo tempo tranqüilo e vivaz, de acordo com as leis da vida…

“Por força da tradição, a juventude iluminada e guiada pela experiência dos anciãos, avança com passo mais seguro, e a velhice transmite e entrega confiantemente o arado a mãos mais vigorosas que continuam o sulco já iniciado. Como indica seu nome, a Tradição é um dom que passa de geração em geração; é a tocha que o corredor a cada revezamento põe na mão e confia a outro corredor, sem que a corrida pare ou diminua de velocidade. Tradição e progresso reciprocamente se completam com tanta harmonia que, assim como a Tradição sem progresso se contraria a si mesma, assim também o progresso sem tradição seria um empreendimento temerário, um salto no escuro”. (Discurso do Santo Padre Pio XII ao Patriciado e à Nobreza Romana, 19 de janeiro de 1944)

V – CONCLUSÃO

Assim, pois, Revmos. Srs. Sacerdotes, dignas Irmãs, prezados Irmãos, a nossa consagração no século, a nossa consagração a Nossa Senhora expressa pelo ato efetivo da profissão e rememorado pelo uso e pela posse do escapulário, é realizada em nossos dias, pela recondução das almas e de todos os valores da sociedade temporal, para darem glória a Deus dentro das sendas da civilização cristã, tendo em Deus a sua causa final, tendo em Deus a sua causa exemplar, dentro de um rumo que, se é um rumo de verdadeiro progresso, é por isso mesmo, e nisso mesmo, um rumo indicado pelos princípios magníficos da Tradição Cristã.

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