A respeito das denúncias feitas à Sagrada Congregação do Índex sobre o livro El liberalismo es pecado, escreveu o Secretário da dita Congregação a seguinte carta ao Ilmo. e Revmo. Sr. D. Jaime Catalá y Albosa, Bispo de Barcelona:
“Exmo. Sr.:
“A Sagrada Congregação do Índice recebeu a denúncia do opúsculo intitulado El liberalismo es pecado, de D. Félix Sardá y Salvani, sacerdote dessa diocese; esta denúncia foi re petida juntamente com outro opúsculo intitulado O processo do integrismo, isto é, refutação dos erros contidos no opúsculo El liberalismo es pecado, sendo autor deste segundo opúsculo D. de Pazos, cônego da diocese de Vich. Por isso a dita Congregação estudou com maduro exame um e outro opúsculos com as observações feitas; mas no primeiro nada encontrou contra a sã doutrina, antes o seu autor D. Félix Sardá y Salvani merece louvor, porque com argumentos sólidos, clara e ordenadamente expostos, propõe e defende a sã doutrina na matéria que trata, sem ofensa de nenhuma pessoa.
“Não se formou porém o mesmo juízo acerca do outro opúsculo publicado por D. de Pazos, porque necessita de correção em alguns pontos, e além disso não se pode aprovar o modo injurioso de falar usado pelo autor, mais contra a pessoa de Sardá, que contra os erros que supõe no opúsculo deste escritor.
“Em virtude disto a S. Congregação mandou que D. de Pazos seja admoestado pelo seu próprio Ordinário, para que retire quanto seja possível os exemplares do seu dito opúsculo; e para futuro, se se promover alguma discussão sobre as controvérsias que se podem originar, abstenha-se de quaisquer palavras injuriosas contra as pessoas, segundo o ensina a verdadeira caridade de Cristo, tanto mais quanto o nosso SSmo. Padre Leão XIII, se recomenda muito que se combatam os erros, não quer nem aprova as injúrias feitas, principalmente a pessoas conspícuas em doutrinas e piedade.
“Ao comunicar-vos isto por ordem da S. Congregação do ndice, a fim de que o possais comunicar ao vosso preclaro diocesano, o Sr. Sardá, para tranqüilidade do seu espírito, peço a Deus vos dê toda a prosperidade e ventura, e com a expressão de todo o meu respeito me subscrevo:
De Vossa Exa.
Aditíssimo servidor
Fr. Jeronimo Pio Sacheri O.P.
Secretário da S. Congregação do Índice”.
“Convém, pois, salvando todos os respeitos, tocar também este ponto e perguntar, com sinceridade e boa fé – se pode haver também ministros da Igreja manchados de Liberalismo.
“Sim, amigo leitor, sim, pode haver também por desgraça, ministros da Igreja liberais; e há-os radicais, moderados e unicamente afetados. Exatamente como sucede entre os leigos.
“Não está isento o ministro de Deus de pagar miserável tributo à fraqueza humana, e por conseguinte também repetidas vezes o tem pago ao erro contra a fé.
“E que tem isto de notável, se não tem havido uma única heresia na Igreja de Deus que não haja sido levantada ou propagada por algum clérigo? Mais ainda; é historicamente certo que não tem dado que fazer, nem têm medrado em século algum, as heresias que não começaram por ter clérigos em seu apoio.
“O clérigo apóstata é o primeiro fator que busca o diabo para esta sua obra de rebelião. Necessita de apresentá-la de algum modo autorizada aos olhos dos incautos e para isso nada lhe serve tanto como o referendo de algum ministro da Igreja. E como por desgraça nunca faltam clérigos corrompidos em seus costumes, caminho mais comum da heresia, ou cegos pela soberba, causa também muito usual de todo o erro, por isso nunca faltaram a este apóstolos e fautores eclesiásticos, qualquer que tenha sido a forma sob que se tem apresentado na sociedade cristã.
“Judas, que começou no próprio apostolado a murmurar e a semear suspeitas contra o Salvador e acabou por vendê-lo a seus inimigos, é o primeiro tipo do sacerdote apóstolo e semeador da cizânia entre seus irmãos; e Judas, advirta-se, foi um dos doze primeiros sacerdotes ordenados pelo próprio Redentor.
“A seita dos Nicolaítas teve origem no diácono Nicolau, um dos sete primeiros diáconos ordenados pelos Apóstolos para o serviço da Igreja, e companheiro de Santo Estevão, protomártir.
“Paulo de Samosata, grande heresiarca do século III, era Bispo de Antioquia.
“Dos Novacianos, que tanto perturbaram com o seu cisma a Igreja universal, foi pai e autor o presbítero de Roma, Novaciano.
“Melécio, Bispo da Tebáida, foi autor e chefe do cisma dos Melecianos.
“Tertuliano, também sacerdote e eloqüente polemista, cai e morre na heresia dos Montanistas.
“Entre os Priscilianistas espanhóis, que tanto escândalo causaram na nossa pátria no século IV, figuram os nomes de Itácio e Salviano, dois bispos, a quem desmascarou e combateu Higino; foram condenados em um Concílio reunido em Saragoça.
“O principal heresiarca que teve talvez a Igreja, foi Ario, autor do arianismo, que chegou a arrastar consigo tantos reinos como o Luteranismo de hoje. Ario foi um sacerdote de Alexandria, despeitado por não haver alcançado a dignidade episcopal. E tanto clero ariano houve nesta seita que grande parte do mundo não teve outros Bispos nem Sacerdotes durante muito tempo.
“Nestório, outro famosíssimo herege dos primeiros séculos, foi monge, Sacerdote, Bispo de Constantinopla e grande pregador. Dele procedeu o Nestorianismo.
“Eutiques, autor do Eutiquianismo, era presbítero e abade de um mosteiro de Constantinopla.
“Vigilâncio, o herege taberneiro, tão chistosamente satirizado por S. Jerônimo, havia sido ordenado Sacerdote em Barcelona.
“Pelágio, autor do Pelagianismo, que foi objeto de quase todas as polêmicas de Santo Agostinho, era monge, doutrinado em seus erros sobre a graça por Teodoro, Bispo de Mopsuesta.
“O grande cisma dos Donatistas chegou a contar grande número de clérigos e Bispos. Deles diz um moderno historiador (Amat. Hist. de la Igles. de J.C.): “Todos imitaram logo a altivez de seu chefe Donato, e possuídos de uma espécie de fanatismo de amor-próprio, não houve evidência, nem obséquio, nem ameaça que pudesse apartá-los do seu ditame. Os Bispos julgavam-se infalíveis e impecáveis; os particulares com estas idéias imaginavam-se seguros, seguindo os seus Bispos ainda contra a evidência.
“Dos hereges Monelitas foi pai e doutor Sérgio, patriarca de Constantinopla.
“Dos hereges Adopcianos, Félix, Bispo de Urgel.
“Na seita iconoclasta caíram Constantino, Bispo de Natólia; Tomás, Bispo de Claudiópolis, e outros prelados, contra os quais combateu São Germano, patriarca de Constantinopla.
“Do grande cisma do Oriente não precisamos dizer quem foram os autores, pois é sabido que foram Fócio, patriarca de Constantinopla e seus Bispos sufragâneos.
“Berengário, o perverso impugnador da Sagrada Eucaristia, foi arcediago da Catedral de Angers.
“Wiclef, um dos precursores de Lutero, era pároco na Inglaterra; João Huss, seu companheiro de heresia, era também pároco na Boêmia. Foram ambos justiçados como chefes dos Wiclefitas e Hussitas.
“De Lutero, basta recordar que foi monge agostiniano de Wittemberg.
“Zwínglio era pároco de Zurich.
“De Jansênio, autor do maldito jansenismo, quem ignora que era Bispo de Iprés?
“O cisma anglicano, promovido pela luxúria de Henrique VIII, foi principalmente apoiado por seu favorito, o Arcebispo Cranmer.
“Na Revolução Francesa, os mais graves escândalos na Igreja de Deus deram-nos os Padres e Bispos revolucionários. Causam horror e espanto as apostasias que afligiram os bons naqueles tristíssimos tempos. A Assembléia francesa presenciou por esta ocasião cenas, que o curioso pode ler em Henrion ou em qualquer outro historiador.
“O mesmo sucedeu depois na Itália. São conhecidas as apostasias públicas de Gioberti e Fr. Pantaleão, de Passaglia, e do Cardeal Andrea.
“Na Espanha houve clérigos nos clubes da primeira época constitucional, clérigos nos incêndios dos conventos, clérigos ímpios nas Cortes, clérigos nas barricadas, clérigos entre os primeiros introdutores do protestantismo depois de 1869. Houve Bispos jansenistas em grande número no reinado de Carlos III. (Veja-se a este respeito o tomo III dos Heterodoxos, por Menéndez Pelayo).
“Vários dentre estes pediram e muitos aplaudiram em cartas pastorais a iníqua expulsão da Companhia de Jesus. Hoje mesmo em várias dioceses espanholas, são conhecidos publicamente alguns clérigos apóstatas e casados imediatamente, como é lógico e natural.
“Saiba-se, pois, que desde Judas até ao ex-padre Jacinto, a raça dos ministros da Igreja, traidores ao seu chefe e vendidos à heresia, se sucede sem interrupção; que ao lado e em frente da tradição da verdade, há também na sociedade cristã a tradição do erro; e que, em contraste com a sucessão apostólica dos ministros bons, tem o inferno a sucessão diabólica dos ministros pervertidos. Nem isto deve escandalizar ninguém. Recorde-se a este propósito a sentença do Apóstolo, que não se esqueceu de prevenir-nos: “É preciso que haja heresias, para que se manifeste quais são entre vós os verdadeiros fiéis’ ” (D. FÉLIX SARDÁ Y SALVANI, El Liberalismo es pecado, E.P.C., Madrid, 1936, 9ª. ed., pp. 116 a 120 / Con censura y licencia eclesiásticas).