Nada melhor para conhecer o indivíduo do que se conhecer bem as nações – Portugal, Espanha, Itália e França

Santo do Dia, 21 de fevereiro de 1981, sábado

A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

…Isso posto, nós passamos a tratar dos assuntos que os senhores falaram há pouco. Os senhores fizeram um longo e belo enumerado de nações, e entre elas fizeram referência a quase todas as nações da Europa.

Quero e quero ardorosamente, peço à Nossa Senhora com todo o empenho de minha alma que essas nações continuem numa glória ascendente no Reino de Maria a participar do futuro. Mas uma coisa é positiva: é que o mundo se alargou e que acontecimentos de ordem muito diversa introduziram três tipos de nações dentro do tecer da História e que esses acontecimentos aí estão e estarão presentes no Reino de Maria.

Quais são os três tipos de nações?

Os descobrimentos introduziram as nações da América. Mas introduziram – a América do Norte faz parte, hoje, do cortejo da Europa, não com tanta história, mas certamente com uma importância igual ou maior. Ela é uma das grandes tecelãs do século XX. Ela já foi uma das grandes figurantes do século XIX. Como será o século XXI? Quais são as nações que estão nos bastidores, à espera de entrar na representação teatral em que há um papel para elas também no futuro?

De momento, mais especialmente, três tipos de nações. Os descobrimentos trouxeram – não me refiro à América do Norte – trouxeram a América Latina. Os descobrimentos que trouxeram tanto bem, mas que se realizaram numa atmosfera religiosamente eclética, em que havia muito desejo de missões e de conquista para o reino de Cristo. Basta pensar nos 40 mártires que vinham para o Brasil, basta pensar no Beato José de Anchieta, basta pensar nos numerosos homens de escol que participaram dos descobrimentos e das primeiras evangelizações para nós temos noção disso.

Então, isso era de um lado, os descobrimentos; mas a sede e a fome do ouro, a vontade de reduzir e transformar tudo em moeda, em pedras preciosas, de monetarizar o Brasil num mundo, começar aquela corrida atrás de dinheiro que haveria de chegar no século XX ao ponto que se chegou  também se desatou nessa ocasião e era filha da Renascença!

Então, em élan bom misturado com um élan ruim deram origem a que se começassem os povos sul americanos. E eles hoje estão prontos para entrar na História! Levaram 400 anos amadurecendo, quer dizer, quando muito, se esticarmos muito as coisas, 40 anos para a vida de um homem! E agora estão prontos a dizer uma palavra no dia de amanhã! Isto é o que a Europa tem do lado do Ocidente.

O que a Europa tem do lado do Oriente?

O cisma da I.O. (igreja greco-cismática, n.d.c.) embolorou a Rússia, contagiou quase todos os povos eslavos. Depois, veio também do Ocidente uma outra coisa horrível que foi o comunismo. Os senhores sabem bem que Lenine e seus comparsas eram agitadores comunistas refugiados na Rússia. Foram mandados antes da Primeira Guerra Mundial acabar, por ordem do governo do Kaiser, foram pegos na Suíça e levados em trem, como se o trem levasse bacilos, diretamente à fronteira russa e soltos lá. Entraram no território russo e fizeram a Revolução Comunista, para a qual tudo estava preparado a partir do emboloramento da I.O.!

Explodiu o fenômeno comunista que colocou a Rússia, algoz da Europa central e algoz do mundo eslavo, no píncaro. A Rússia entrou para um píncaro e levou o mundo eslavo consigo. A eslavidade inteira está pronta para entrar na História! Ela não era uma força decisiva da História. Ela tinha tido uma intervenção importante na história no tempo de Napoleão. Força decisiva não era. Ela passou a se tornar uma força decisiva no remexe-mexe de nossos acontecimentos.

O mundo amarelo foi tocado de dois lados. De um lado recebeu, com o Japão, toda a modernização da III Revolução. E, de outro lado está recebendo, recebeu com a China toda a inoculação da IV Revolução.

Nós temos o mundo amarelo convulsionado. Mas mencionado como uma potência de primeira ordem no século XX. O mundo latino-americano, o mundo eslavo e o mundo amarelo são os mundos colossos do dia de amanhã!

Os senhores dirão: “mas Dr. Plinio, isso é arbitrário! Por que não será também o mundo persa, o mundo malgaxe, sei lá o quê?” Dormem! Não dão sinais de terem acordado.

Alguém dirá: “mas os árabes são reis do petróleo”. Uma coisa é ser rei do petróleo e outra coisa é ser rei da história!

Tenho filhos de sangue árabe a quem prezo muito. Mas houve uma tentativa de galvanização do mundo árabe para uma insurreição geral. Ele se fragmentou e continuou a dormir. Não é culpa minha… Eu estou contando o que ele fez, não o que eu fiz!

Salvas novidades muito surpreendentes, ele tem esse mérito de não se ter deixado galvanizar por esta forma de Revolução, mas está dormindo. Nem a graça o toca, nem o demônio consegue galvanizá-lo. Dorme. Não posso fazer presságios. A menos que ele se levante, como é que posso dizer que ele está nos bastidores da História para entrar em cena? Talvez amanhã venha um fato em sentido contrário. De momento, não vejo!

Os três grandes blocos que estão, assim, em cena, em torno da Europa, a partir da Europa e da perspectiva europeia, esses são os três grandes blocos. Por que não perguntar alguma coisa também a respeito deles?

Quando nós fazemos esse longo enumerado de nações, eu ofereço, portanto, mais do que os senhores pediram. Falo a respeito de algumas nações e depois trato de algumas. As que são e foram e as que serão. Vamos tocar tudo isso com a relativa rapidez que a hora pede. Vamos nos aprofundar nesse estudo.

Para nós termos bem a noção disso, devemos tomar em consideração, como ponto de partida, um princípio que eu enunciaria da seguinte maneira: nada melhor para conhecer uma nação do que conhecer a psicologia dos indivíduos. Porque debaixo de certo ponto de vista – e é claro que é só debaixo de certo ponto de vista – toda nação é como um indivíduo visto numa lupa de aumento! Por outro lado, nada melhor para conhecer o indivíduo do que a gente conhecer bem as nações. A gente olhando para o indivíduo vê.

Não me lembro de que não sei que escritor europeu que disse isso: que ele se sentia a si próprio uma verdadeira câmara de deputados. Porque ele sentia dentro de si todos os partidos políticos e de vez em quanto cada partido se levantava e falava! É a mentalidade do revolucionário liberal, mas é assim! Ele tem todos os partidos políticos dentro da alma dele.

Nossas almas como são?

São como uma catedral em que há uma cátedra que fala: é a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana! Há um só consenso dos fiéis que ouvem e há uma unanimidade de nosso ser e há uma guarda que vigia, porque se alguém entrar em dissensão é posto fora. Que é o nosso exame de consciência?! Se alguma coisa em nós se levantar e nós percebermos que tem uma dissonância, nós lançamos uma objeção. Se resiste, pegamos e cancelamos! Quer dizer, não dou a isso direito de cidadania e recuso!… Ainda que não saiba porquê. Porque quem está na Cátedra está ensinando. E eu sou membro da Igreja discente, ouço o que a Igreja docente ensina com entusiasmo. Não é abaixo a cabeça: eu levanto a cabeça e olho para o Céu!

Então, para compreender bem o que nós vamos falar sobre as nações, vamos tomar em consideração o que se deve dizer dos indivíduos.

Se eu tivesse que falar dos indivíduos, eu começaria, talvez, com uma palavra introdutória a respeito das nações. De tal maneira os dois conceitos – e mais do que os dois conceitos, as duas realidades – de algum modo se espelham uma à outra.

Para entender bem o que é o indivíduo, eu queria desenvolver um pouquinho uma noção já dada aqui, mas à qual eu queria dar um realce num ponto especial.

O ponto especial é o seguinte: há algo no homem por onde, legitimamente e sem igualitarismo, todo homem, por ter uma alma espiritual, por saber-se eterno quanto a seu fim, não acabará, ele foi criado, ele nasceu, ele não é eterno para o passado, mas é eterno para o futuro –  toda alma, por causa disso, por saber-se ordenada para Deus que é supremo e para considerar Deus face a face, há um movimento qualquer de toda alma em que – eu insisto, sem igualitarismo – toda alma, debaixo de certo ponto de vista, se sente suprema e quer ser suprema!

Exatamente esse anhelo para uma espécie de supremacia pessoal é o que o igualitarismo quer apresentar como oposto à hierarquia, como oposto à estratificação, à graduação. E, por causa disso, tudo quanto se diz de hierarquia parece abafar algo na alma humana que, entretanto, é reto. Ao mesmo tempo que abafa coisas muito ruins dentro da alma humana: a inveja, o orgulho e outras paixões péssimas.

Qual é essa pequena coisa reta na alma humana que é essa tendência a uma própria e pessoal supremacia a luzir diante de Deus e olhar a Deus face a face? O que é isso?

É propriamente o seguinte: os senhores tomem – cada um percorra as suas curtas, mas em compensação, coloridíssimas memórias e procure rever nelas qual é o ente mais desprezível que conheceu. Não digo do modo moralmente desprezível, mas enquanto homem, a pessoa menos dotada que conheceu. Eu, como conheci muita gente, teria uma longa comparação a fazer, no triste cortejo dos menosprezíveis. Não poderia, assim, de momento, dizer quem é. A idéia me passou há pouco pela cabeça, do cortejo de desprezíveis, de maneira que eu apresento aos senhores assim.

Tomem um homem, vamos dizer, de menor inteligência, de capacidade de vontade – não quero falar de virtude, falo de dotes pessoais – capacidade de vontade mais encolhida, ou mais estupidamente hipertrofiada; e os senhores tomem um homem de uma sensibilidade mais irregular, pegando as coisas pior, ora demais, ora de menos. Coitado, um errado! Se esse homem corresponder à graça, embora na escala da gradação que só Deus conhece, incontável de todos os homens que Ele criou desde Adão e criará até o fim do mundo; nessa gradação esse homem ocupe um lugar muito modesto – vamos dizer que seja o último dos homens – ele em alguma coisa por onde ele é ele, e se diferencia de todos os outros, alguma coisa que talvez ele mesmo nem saiba o que é, mas Deus conhece, por pequeno que seja esse ponto; nesse ponto de superioridade ele é único e ninguém será como ele! De maneira que, embora ele seja o último, há um pontinho qualquer onde tomado de algum lado ele é supremo.

E se ele compreendesse isso e tratasse de amar a Deus com todo seu entendimento, toda sua vontade, toda sua alma, como que automaticamente e sem ele saber o que é, esse ponto viria à tona e se colocaria em ordem, se colocaria de joelhos, e depois de pé, e brilharia do seu minúsculo pequeno brilho que o Anjo da Guarda conhece, Nossa Senhora conhece a abençoa, e que Deus criou e que Deus quer ver no Céu!

Assim, há em cada um, ao par da comparação por onde são desiguais, há um lado – não é dizer onde todos são iguais não – mas onde cada um é supremo. O que corresponde a um certo anseio da alma humana.

Eu digo isso com esse pormenor porque provavelmente não ouviram dizer isso e é muito importante para que a gente balize bem todas as idéias de hierarquia.

Nós devemos nos encantar de saber os que estão acima de nós, devemos ter comprazimento com os que estão abaixo, mas pensar com enlevo: há um ponto, meu Deus, Vós o conheceis, minha Mãe, Vós o sabeis e que Deus olhará para cada um de nós e dirá “este é o filho único e amado, que entre os homens Eu pus, para imitar-Me em tal o ponto”. Isso dá uma alegria e um bem-estar especial.

Não sei se fui claro no que eu expus, se a idéia está positiva.

Vamos passar para as nações. O grande erro quando se fala de nações e, por exemplo, de nações rutilantes, como são as europeias é – os senhores não fizeram isso mas é um problema que fica na linha dos problemas que os senhores trataram: é fazer uma comparação por onde se procura saber qual é a primeira. E a discussão cai, tempo mais, tempo menos, no seguinte: para o universo, quem é maior: é o povo francês ou são os povos de língua alemã? Se alguém descende de italianos, é a bela Itália. Senão, é a heróica Espanha, senão é o glorioso Portugal. E vai ponto por ponto. Pega a Bélgica, pega a Dinamarca, Suécia, Noruega… Sem falar na gloriosa Albion (Inglaterra) colocada na sua ilha, meio de lado e marombando a política europeia. Cada uma dessas coisas tem um título. Qual é o supremo?

No momento que se trata de falar um pouquinho sobre todos – foi o que eu entendi que vós me pedistes; que eu dissesse algumas coisas sobre elas – no momento que se trata de falar sobre todas – o principal de nossa atenção não deve consistir em saber qual é a primeira. Mesmo porque absolutamente falando elas refulgem tanto, que eu acho que no fundo só Deus sabe, de fato, quem é a primeira. Portanto, não é por aí que corre a atenção. É saber no que é que ela, no seu gênero, deu ao mundo o belo exemplo de chegar quase até à ponta de si mesma. Eu digo quase por que tiveram a Revolução e decaíram. Se tivessem continuado nesse élan, ninguém sabe até onde teriam chegado.

Então, fazer análise de cada nação, segundo esse lado supremo que tem e que olha para Deus, aí nós teríamos a análise bem feita de alguma coisa do conjunto do continente europeu, com vistas a passar depois, rapidamente, pelos povos eslavos, pelos povos amarelos, pelos povos sul-americanos e termos assim uma ideia do que será o colorido do Reino de Maria.

Usando uma metáfora que usei outro dia no MNF, a história às vezes faz com as nações como o pavão faz com sua roda. Arma um leque e anda para os homens admirarem. E cada pena é uma nação. Já me aconteceu várias vezes olhar pavões. Pavões bonitos e fazer uma comparação entre a dignidade majestosa da roda do pavão e o pescoço, todo azul-verde magnífico que se ergue com uma distinção e uma categoria extraordinária! E me perguntar a mim mesmo o que é que o pavão tem de mais bonito, se é a roda ou se é a penugem do pescoço. E ficar, assim, nesta dúvida.

Assim, o que é que é mais belo? É o conjunto das nações ou é a história que nos apresenta esse conjunto de nações? Fica-se na dúvida.

A história vista assim é uma maravilha. É o desfile pelos séculos; primeiro, do povo eleito. Depois, da Santa Igreja Católica e depois, como roda ou como o pescoço em torno, as atitudes das várias nações face àquilo. E o refulgir das várias nações quando se deixam penetrar pelo espírito da Igreja! E a Igreja tem alegria com as várias nações que Ela penetrou com seu espírito, mais ou menos como o pavão tem com suas penas. Ele se volta… Vêde, ó gente, as nações que em Mim se abeberaram!

Eu me lembro, numa carta, uma encíclica ou algum documento pontifício de São Pio X, não me lembro bem mais o qual, ele tem um pensamento sobre a Europa, muito bonito. E que, para o tempo dele era inteiramente válido. Ele dizia: vêde a Europa. Ela se eleva por cima dos outros continentes e nações muitíssimo acima, de tal maneira que os outros continentes com ela não podem rivalizar! Pergunta-se por que razão e dir-se-á: é o gênio dessas nações. É bem verdade, mas é o gênio dessas nações porque se deixou penetrar em determinado momento, a fundo, pelo espírito da Igreja! E se uma luz a Europa tem, que faz com que ela atraia todas as nações da terra e as dirija, essa luz é a luz da Igreja Católica!

Perfeitamente verdadeiro, perfeitamente exato!

Isto posto nós – e eu me lembro aqui qual era o outro pontinho. Isto posto, nós poderíamos nos voltar para as várias nações europeias e nos perguntar, a respeito dessas nações, qual a forma, qual o tipo de grandeza, qual a maravilha que há, como é que brilharam. Como é que brilharão? O que teriam sido? Fazer uma rápida interrogação a respeito desses pontos.

Há aqui o que São Luís Grignion de Montfort chama “segredos da natureza e da graça”, que são tão profundos que a gente não chega a se dar inteiramente conta disso. Mas, quando a gente vai estudar a história dos povos europeus nas suas origens – tomem, por exemplo, os latinos. Nós vamos até dividir a Europa em três blocos, se quiserem: de um lado os latinos, de outro lado os germânicos e anglo-saxões, de outro lado os eslavos. Vamos abstrair de quase todos os Balcãs no que diz respeito à Europa porque foram europeizados há menos tempo, e não se integraram bem na substância europeia.

Então, os senhores tomando, por exemplo, os latinos, os senhores remontam até os romanos, os romanos dizem que descendiam dos troianos. No fundo todo mundo descendeu de Adão e Eva! Como é que se faz essa vinculação, por onde em determinado momento nasceram os latinos? O que é que aconteceu quando os latinos passaram a ser – os romanos passaram a dar origem aos latinos que já não são os romanos? Qual é a diferença que há entre um romano e um latino? O que é que é o espírito latino?

Análoga pergunta poderia ser feita quanto ao espírito germânico e anglo-saxão. E outra pergunta poderia ser feita quanto ao espírito eslavo que já está um pouquinho fora do limite europeu, e, portanto, poderia ficar para os povos que vão entrar na história. Sem saber que eu ia falar disso nessa reunião, eu tenho ultimamente, não sei por que esse assunto me tem voltado ao espírito e eu trato dele aqui um pouco.

Os senhores tomam determinados países, consideram o panorama e vêem que o panorama têm uma espécie de afinidade com a alma do país. De tal maneira que a gente tem a impressão de que aquelas montanhas, aqueles rios e aqueles ambientes modelaram o país. Ora, não pode ser porque o homem é espírito e o homem é o rei da natureza. A alma humana não se deixa modelar de tal maneira pela matéria. O corpo humano não se deixa modelar de tal maneira pelo ambiente. Ele é feito, até, para marcar o ambiente. Ele recebe do ambiente uma certa influência, mas ele cria, em larga medida, o ambiente!

Nós não poderíamos admitir que o sujeito seja filho da geografia! Ele é filho da vida das almas, da atitude das almas perante Deus. Sobretudo da graça que intervém, que aconselha; do demônio que luta. Isto tudo forja a alma humana.

Como é que acontece que há umas tais semelhanças entre os ambientes e os panoramas, de um lado; e das almas dos povos de outro lado, que quando a gente vê as montanhas do Rio de Janeiro, vê que o modo pelo qual elas se encaixam umas nas outras é um modo brasileiramente amigo e irmão! Elas parecem derreter-se umas nas outras!

Os senhores tomem umas montanhas da Espanha e a gente tem a impressão – eu já disse isso aqui – que um gigante andou por lá quebrando as montanhas! Elas apresentam uns píncaros grandiosos e isolados, meio trágicos no ar e meio incoerentes. Cada um a cantar a sua própria personalidade!

Os senhores vão ver as montanhas dos Alpes, que deitam vertentes para o mundo latino como para o mundo germânico, os senhores vão ver as montanhas dos Alpes são diferentes. A tendência delas – não é sempre assim, porque isso aqui não é um paraíso – mas estarem organizadas quase como cadências harmônicas. Um grande monte, outros e outros e  a gente prestando atenção a gente vê que tudo se reduz a harmonias efetivas ou esboçadas, mas que a gente estaria na presença de uma espécie de grande parada ordenada da geografia.

Ora, o alemão é assim, organizadão; o latino, o espanhol é assim, afirmativo, épico, heróico. As montanhas da Itália corem… (risos prolongados)

Não fogem… Eu diria que elas brincam, que elas gracejam, que elas fazem piada um pouco e a própria forma geográfica do país é um pouco uma brincadeira. A gente tem a impressão de que a Itália dá um pacífico pontapé na ilha da Sicília, que não toma a sério o pontapé que está levando e que continua tranquila!

Eu fui levado a pensar, especialmente nisso porque numa noite dessas o Sr. AG, que andou lendo, estudando, para efeito do Apocalipse, um grande historiador do século passado, muito contestado quanto à sua visão de conjunto da história, mas muito bom historiador nisto mesmo, que é o Rohrbacher, um padre do século passado. Ele me trouxe para ler uma vida de São Vicente, mártir espanhol do tempo dos romanos, quando não havia ainda a Espanha. Eu pedi que ele me fizesse uma ficha para ler para os senhores num SD. O martírio de S. Vicente é antes de tudo um martírio de um herói que está penetrado pela fé, que ama a fé católica como um grande, grande santo ama na hora em que a graça bate nele perpendicularmente e tira da alma dele os melhores acordes!

É uma magnificência a vida de S. Lourenço. Mas sobretudo a morte de São Lourenço. Mas a gente vai vendo a coisa e há apenas… a Espanha de hoje está para a Espanha de São Lourenço, na melhor das hipóteses, como estão o ovo, o trigo, o leite e o fermento antes de existir a massa do pão. Vão ser misturados para formar pão. Na melhor das hipóteses, havia na Espanha os elementos de que nasceu a Espanha de hoje. O modo de São Vicente desafiar os seus verdugos era um modo à la espanhola! A gente diria que ele tinha uma grandeza de dar taponas naqueles montes!

Notem que depois disso a Espanha passou por quedas horríveis. A invasão dos visigodos e a decadência dos visigodos a ponto de os árabes invadirem aquilo como invadiram – foi posterior a São Vicente. Entretanto havia gérmens e luzes de hispanidade indiscutíveis no martírio de São Vicente. Como é isso? O que é o papel da natureza, o que é o papel da graça, o que já era a Espanha dentro disso? Era uma vocação que luzia pela primeira vez para depois passar por um ocaso e renascer para os séculos? Não sei também. Há um mistério que a gente não sabe como explicar, é o mistério das nações. Há um mistério das almas humanas e há um mistério sobre as nações. Eu mais estou enunciando esses belos mistérios do que estou propriamente resolvendo.

Bem, o romano e o latino. O espanhol é latino; o italiano é latino, o francês é 80% latino, o português é latino. O que é que distingue o espírito romano do espírito latino? Tudo o que eu vejo do espírito romano é imponente, grandioso, sério, monumental. É um espírito monumental por excelência! O espírito latino é assim? Entrou qualquer fator que eu não sei qual é, mas que certamente não foram as invasões germânicas em nosso território, por onde o latino é muito mais leve do que o romano e quando o romano construiu uma torre, o latino já voou por cima de um espaço que essa torre não vai alcançar!

É ágil, pega as coisas depressa, sabe girar, manobrar, fazer, mover-se, tem uma força e uma destreza de espírito que eu não conheço outro povo do mundo que tenha! Isto aí é conosco, latinos!

Donde nasceu isso? Nós temos algo do monumental romano. Mas de tal maneira aligeirado, de tal maneira tornado ágil e pouco próprio a arrancar bocejos – o romano faz a gente bocejar um pouco dentro daquele eterno monumental. E a gente não saberia bem dizer.

Um fator novo entrou e um dos elementos mais característicos desse fator novo, de rapidez, de inteligência e de agilidade os senhores têm o espírito brasileiro! Que, entretanto, puramente latino não é! Os senhores sabem que houve outras composições étnicas em nosso país, muito frequentes. Senão em cada caso, pelo menos como uma regra quase geral. Os senhores vão ver aquilo que se chama espírito brasileiro é um dos luzimentos do espírito latino.

Então vamos pegar o espírito latino nos vários povos latinos, muito rapidamente, e formar, tentar fazer com isso um leque; depois comparar com o espírito germânico e assim teremos dado alguma coisa a respeito do tema que os senhores pediram. E que se revela um pouco mais vasto do que os limites naturais da reunião porque o tempo é feito pelo auditório, pelas necessidades da expressão e aí vem também o mais longo ou menos longo na exposição e eu tenho mais outro auditório à minha espera!

(Aparte: O Sr. tem vários sábados diante de si, sem contar com a segunda-feira, terça, quarta etc.)

Isso é dito latino!

O que que ele fez tem de latino? Levantou sério e disse uma coisa que estava no fundo, enfim, para nós não é uma surpresa tão grande, que haveria outros sábados para expor o tema. Não foi porque ele levantou! Ele latinamente levantou para dizer que afinal podia fazer reuniões nos outros dias da semana! (risos)

E aqui entra uma leveza latina, que eu não sei bem como qualificar de espanhola ou italiana, nem sei se há necessidade de dizer o que que é. Porque eu me limito a dizer que é latina. Na agilidade com que ele entrou, entra o italiano e entra o espanhol. Mas entra um pouco do brasileiro: é a politicagem!

Ele não tem sangue brasileiro, mas o ambiente penetra! O fundo da cabeça dele é: água mole em pedra dura, tanto bate até que fura!

Eu não preciso explicar o resto. Os senhores estão entendendo todo o resto! Eu, latinamente fingi que não entendi essa segunda parte! Só estou falando agora pela conveniência do exemplo. Do contrário, não falaria. E assim fica, na suavidade brasileira, ele dizendo com uma certa insistência: eu peço, e eu dizendo com uma certa insistência: não dou!

De um modo suave, que é bem brasileiro, tudo termina como as montanhas do Rio de Janeiro! Os senhores estão vendo aí a presença das nações dentro das almas humanas, os senhores veem o jogo do que é uma nação na terra, entrevem a grandeza de Deus ao criar os homens divizíveis em nações etc., etc. Há uma porção de coisas que se veem por aí por fora às quais, nesse ambiente quase todo ele latino, ou latinizante, eu aludo apenas de passagem e passo para a frente.

A gente diria: essa leveza especial no que é que se encontra? Vamos em ordem geográfica, a começar pela orla de Portugal e terminar na Itália. Eu deixo a França um pouco de lado, porque ela serve de transição para o mundo alemão. A França é um feliz encontro dos latinos com alemães. É uma composição especial da qual eu só falarei daqui a pouco.

Nós aqui do Brasil não temos uma ideia muito completa… digo mal: No que se fala habitualmente a respeito de portugueses entre brasileiros; claro que o brasileiro mais culto sabe que não é assim, mas na linguagem corrente, o português que representa Portugal, para a linguagem corrente brasileira, é o comerciante bem sucedido, mais do que o industrial porque eles não vão muito para a indústria, mais o comércio, ali, pão-pão, queijo-queijo eles gostam bem. O comerciante bem sucedido e não o comerciante que está bem sucedido num escritório; mas o comerciante com que o público tem contato e o comerciante português típico com que o público tem contato, os senhores já sabem que é o vendeiro.

Esse que o público conhecia. E, segundo a linha do português de uns 30 anos atrás, quando esse folclore se constituiu. Português forte, saudável, vendendo saúde, bigode assim em pé à la rei D. Carlos, ainda formando uma voltinha aqui, sobrancelhas espessas, cor de arrebentar de vitalidade, olhos “plutôt” (mais bem) dando a escuro, castanhos escuro ou pretos; cabelos também castanhos escuro ou pretos, por detrás da sua máquina registradora mais ou menos como um ente mitológico por detrás dos acontecimentos que regem o mundo! Na parede atrás dele um letreiro, uma coisa escrita: Não se vende fiado!

Os senhores já veem que papel representa, não é? Quando ele gira a máquina registradora, a máquina blim-blim-blim e projeta aquela gaveta e ele preside aqueles sons com a compenetração de um chefe de orquestra. Ele tira o troco, dá, encaixa o que ele quer, bate, o freguês vai embora e ele continua tranquilo. E o dinheiro se acumulando!

O português tem ou não tem essa leveza? É só ler descrições de Eça de Queiróz, por exemplo e ver nos mil matizes da alma portuguesa como são bem expressos ali, em palavras rápidas e como numa página ele faz a gente viver como se tivesse estado dez anos em Portugal para a gente compreender que isso é o próprio do gênio latino: em poucas palavras pintar mil coisas, encher de matizes, arrancar um sorriso, um comprazimento ou uma emoção e passar para adiante, tendo deixado tudo bem posto no ponto de vista lógico, porque o latino é lógico e no fundo de sua aparente desordem ele quer que as coisas estejam em ordem.

É o modo suave, doce, de Portugal fazer as coisas. Nós pretendemos ter herdado muito disso.  E creio que muita coisa disso herdamos. Mas amistoso, benévolo, sem barulheira, com que o português está presente no mundo latino com sua especial nota dentro do estilo latino em geral.

Os senhores tomem a Torre de Belém, que já foi projetada aqui, por exemplo, é uma torre. E ela, de fato domina o Tejo. Mas ela mais faz sonhar do que faz fugir. Quem vê a Torre de Belém nem tanto tem medo quanto se encanta e fica desarmado. Ela é nobre, delicada, alva, bela, digna. Quem ousará jogar um tiro de canhão contra aquilo? Ela está psy-defendida contra o canhão! É preciso ser comunista para derrubar uma coisa daquelas! Fora disso não se mexe! É Portugal!

* * *

A Espanha! É bem diversa! É a nação da movimentação. Se se fosse perguntar se é a nação da bonomia, não seria fácil dizer “sim”. É a nação da movimentação, da agilidade, da penetração, do espírito engraçado que cutuca, que pula para cima, que esparrama, que critica, que caustica, que brilha ao sol, que combate e que conserva uma certa alegria de ser ela mesma até no momento em que ela oferece os maiores holocaustos.

Eu não poderei me esquecer de uma fotografia de um espanhol sendo fuzilado. Nem me lembro porque estavam fuzilando esse homem. Não era desse tipo de europeu grandão. Era um – aliás, o tipo grandão não é muito frequente na Espanha. Era mais bem miúdo – não chegava a ser miúdo – mas era mais bem miúdo, cabelo preto, um homem de uns 40 anos para 50, uma barbicha, a pele a gente vê que era ligeiramente dada a moreno e olhando para o pelotão de execução. Em cima o letreiro era: “nosostros hemos hecho un pacto con la muerte!” (fizemos um pacto com a morte) A gente via que ele sentia a dignidade de morrer e tinha a alegria de viver esta coisa especial que é morrer! Ele morria contente.

Era uma coisa especial, era preciso ter visto para ter idéia do que é. O chiste espanhol, o provérbio espanhol, a graça espanhola, a dança espanhola; tudo tem um referver que é a mesma vitalidade latina apresentada em outro ângulo. E enquanto Portugal é todo doce, embora sabendo não vender fiado… a Espanha é toda heróica.

Com uma ressalva. Eu conheci alguns espanhóis muito politiqueiros. Dois ou três desses são dos melhores politiqueiros que eu conheci em minha vida. Heroísmo, heroísmo, heroísmo e de repente sai um politiqueiro do meio; é preciso tomar cuidado! Aí… E esse faz como serpente o que os outros fazem como dançarinos ou como toureiros. É preciso tomar cuidado. Mas são poucos e é uma exceção dentro da grei.

* * *

…estou acabando de falar, se levanta uma música. Canta-se e é a Tarantela: é a Itália que entra em cena!

Quão diferente! Quão imaginosa, quão artística, quão posta em duas vidas: uma vida que é o imaginar um mundo como poderia ser nos sonhos deles, e outra a realidade concreta dentro da qual eles entram com muito senso da realidade e caminham quase que duas vidas paralelas. O senso da arte e o senso do comércio e dos “quattrini” (dinheiro) formam ali uma competição em que não se sabe bem quem é o vencedor. E o indivíduo, depois de ter dado uma tacada na indústria, cantarola; depois de cantarolar ele vê se o bolso está cheio e vai fazer negócios… No que há um duplo movimento de vivacidade que também não é o velho estilão imperial romano. Vamos ver a canção italiana, a arte italiana, toda ela tem também uma forma especial, mas outra de leveza.

Enquanto o espanhol parece dar saltos para atingir o Céu, o Céu sobrenatural, a índole italiana marcada pela Renascença a fundo, parece dar saltos para atingir o ápice do que seria o Céu na terra. A vida gostosa, a vida alegre, a vida com bonomia, a brincadeira, a fraternidade, a graça, a arte para ornar tudo, para fazer desta vida a coisa mais gostosa possível e fazendo uma coisa realmente notável, realmente magnífica, única no seu gênero mas que já não é o espírito espanhol, já não é o estilo português. É uma outra coisa, que dá para outro lado. E que dá para aquilo que fez da Itália a matriz de todas as artes do Ocidente. Tudo que veio da Renascença para cá se inspirou na Itália. Os senhores vêem a marca da Itália colocada no mundo inteiro. O que eles conseguiram sem ganhar grandes batalhas – nunca se interessaram muito pelo gênero! – sem ganhar grandes batalhas, sem formar um grande império como o Império Romano, a arte italiana, a influência artística italiana foi muito mais longe do que a influência artística romana. E o império cultural italiano [foi] muito maior do que o império cultural romano. Uma grande nação, com uma expressão enorme na história do mundo.

E que expressão enorme na história da Igreja! A Igreja foi fundada para ter a sede em Roma. E a sede fixada em Roma é como que um chafariz de influência italiana no mundo inteiro! Os senhores percebem aí as mil diversidades, tão grandes do gênio italiano, que é quase impossível conter numa exposição só.

* * *

Bom, já estamos olhando para os ponteiros do relógio… e para o mundo germânico. Mas é preciso passar pela França. O caminho não passa pela Áustria. A Áustria fica depois. Mais ou menos como quando se sobe a torre. O alto da torre fica para depois. A gente vai subindo…

A França tem um pouco de tudo. Na gentileza aparece algo da bondade portuguesa; no mosqueteiro francês aparece algo do garbo espanhol; na arte francesa aparece algo do gosto italiano; na lógica especial e apertada do espírito francês aparece algo do gênio alemão. É o ponto de encontro da latinidade e do mundo germânico que formou um conjunto mais ou menos indefinível. E que dá na França, por sua vez, como a Itália: com tantos aspectos, tantas características, tão elogiável por tantos lados que a gente não sabe bem por onde começar.

Falaríamos da França das catedrais e dos castelos, falaríamos da França do Ancien Régime, falaríamos da França do século XIX. Falaríamos da arquitetura, da pintura, da escultura, da literatura, da música. Do que é que nós falaríamos! Depois de ter falado de tudo isso a gente teria a sensação de não ter falado do essencial que é o espírito francês, a alma francesa que se exprime melhor pelas migalhas da vida de todo o dia e do convívio cotidiano com o francês do que em todas as coisas que estão lá! É preciso vê-los funcionar!

Como já falei muito desse tema e nem é necessário aprofundar, eu conto um fatinho. E nesse fatinho está todo o resto. Eu li isso numa revista, ontem. Revista que minha irmã me mandou e que eu estava folheando. Eu li isso nessa revista. Um príncipe, no século passado. Um príncipe… Um príncipe de isopor, de matéria plástica, um príncipe da casa de Napoleão. Mandou para Victor Hugo, que os senhores sabem, grande literato francês, do século passado, mandou para Victor Hugo que gozava de uma fama mundial, mandou um livro com poesias compostas por ele, príncipe. E dizendo assim: “Monsieur Hugo, estas são umas pequenas poesias que eu compus em pequenos tempos livres. Estarão tão ruins assim?”

E as poesias eram péssimas!

Victor Hugo não teve dúvida: dardejou a resposta em cima do príncipe. Uma resposta que para a gente analisar a frio, seria embaraçosa. Porque ele era meio chegado ao mundo do bonapartismo. Ele era um revolucionário. Portanto, ele não queria esfriar as relações que tinha para esse lado. As poesias sendo péssimas, se ele dissesse era um fator negativo para o estilo de relações que ele queria ter. Portanto, ele não podia dizer isso. Mas ele, por outro lado, não podia dizer que eram bonitas porque o sujeito punha uma outra edição do livro dele com o elogio do Victor Hugo. E aí desacreditava a ele, Victor Hugo, como literato. Os inimigos de Victor Hugo cairiam em cima dele. E os inimigos do bonapartismo também. “Ele é um príncipe que fez poesias pé-quebrado, não valem dois caracóis e o Hugo, que é meio bonapartista, olha que elogios faz! Esse livro não vale nada por causa disso, daquilo, daquilo outro!”

Então ele tinha que arranjar uma saída em que ele pusesse o príncipe no lugar, mas não cerrasse de cima com o príncipe, para ficarem amigos. Ele dá essa resposta que eu reputo eminentemente francesa; e em vez de descrever aos senhores o espírito francês, com isso eu lhes dou uma amostra do espírito francês. Não é uma obra-prima! Vale porque é uma coisa frequente na França. Se não fosse frequente não estava tão bem amostrado o espírito francês. Ele diz: “Monseigneur, eu pergunto a vossa alteza o que é que acha se eu quisesse ser príncipe nas minhas horas vagas?” Assinado: Victor Hugo.

Como coisa da vida cotidiana, eu volto a dizer, não vou dizer que todo o talento de Victor Hugo se manifestou aí. Não. É coisa frequente na França saírem coisas dessas. Tanto é que a revista publicou numa noticiazinha assim. Ditos chistosos, vai esse! Mas eu reputei uma obra-prima de gentileza com uma impertinência um pouco salgada que faz sorrir. Porque ele se colocou tão abaixo de um príncipe que deixa o príncipe à vontade. Mas deu uma tal cocada no príncipe que o príncipe nunca mais escreveu, com certeza.

Mas vejam como a coisa é pensada dentro da rapidez. Aliás, eu percebi que os senhores saborearam tanto que a análise quase não é necessária. Vejam como a coisa é pensada. No fundo – em outros termos, é uma das coisas que se desprende do que ele disse hein, porque daí várias coisas se desprendem – em outros termos, ele disse ao príncipe o seguinte: “por que é que o senhor quer ser escritor quando é príncipe? Ser um verdadeiro príncipe lota a vida de um homem. Viva a sua que eu vivo a minha”! Porque quando ele mostra que a gente não pode ser príncipe nas horas vagas, ele dá a entender que isso exige um “maintien”, uma atenção, um esforço da vida inteira. É evidente. Os senhores estão vendo, portanto, como ele coloca alto, aos olhos do príncipe a condição de príncipe, e como ele mostra como ficaria sem jeito sem ser príncipe. Apesar disso, pam, na cabeça do príncipe!

Eu tenho a impressão que a gente poderia escrever uma hora, encher papel com os vários aspectos desse simples ditinho. E é pena que eu não tenha boa memória, porque coisas dessas ao longo da minha vida eu li centenas! Ou notei centenas. E que vem assim enxameando charmes e graças e que, a meu ver, são das ótimas distrações que o espírito humano pode ter! A gente pega e está acabado!

Para comparar a algo, eu me lembro do colibri com vem com aquele bicão comprido picar uma flor: esvoaça de modo gracioso, brilha com as penas ao sol e ptsium! Depois sai de novo levando consigo o mel que ele queria! Assim também é o dito de espírito francês.

Há pouco eu estava lendo um livro francês, aliás, um livro “cacetoso” que eu estou lendo porque é interessante ler, mas o autor não tem o grande vôo francês, ele não tem isto. Isto ele não tem. A certa altura ele cita um dito oriental. É um dito oriental bem pensado.

Ele dava esse dito que é razoável, mas sobre o qual farei uma apreciação minúscula: ele dizia “a mesma afirmação que um tolo leva um minuto para fazer, um homem criterioso pode levar um ano para refutar”. É bem verdade. Mas não tem graça. É verdade, mas não tem graça. É conciso, mas nós não ficamos alegres lendo. Nós não sorrimos. Nós não temos idéia de ter comido um bombom com licor. É um dito oriental. Mas ele não explica de que nação é.

A coisa francesa não. É bombom com licor…! É único. Não adianta a gente ficar com raiva, nem achando que a nação da gente está mal compreendida, porque Deus deu a quem quis. E quis dar a eles e eles têm.

É uma coisa que no seu gênero a gente diria que o espírito latino e o espírito germânico e o espírito anglo-saxão – se quiserem fazer a distinção – se encontram na França e fazem guirlanda. E que a França é a guirlanda. Vale mais do que qualquer dos lances da guirlanda, ou mais do que qualquer… flores. A guirlanda gira tão depressa que a gente acaba não percebendo bem quem é o latino, quem é o germânico, quem é o anglo-saxão… é o francês. É uma coisa magnífica.

Meus caros … a grande, respeitada, querida e nobremente brumosa Alemanha ficou de lado. Em cujo píncaro, mais ou menos como certas montanhas que são tão altas que atravessam as nuvens – a gente vê a montanha e vê uma bela bruma e depois o píncaro, assim eu vejo o mundo alemão com a Áustria. Tem os lados positivos do espírito alemão, são magníficos; tem os lados brumosos do espírito alemão; para quem sabe vê-los no amor ao mistério e não confusão hegeliana, são magníficos. Por cima está a síntese austríaca, brilhando por cima da nuvem e do monte. Isto focará para nossa próxima reunião.  Conversaremos um pouco sobre isso e sobre outros lugares.

Falaremos então em outra reunião do espírito germânico, do espírito sul-americano, hispano-americano, luso-americano, faremos as distinções, falaremos um pouco dos eslavos. Quem sabe se dá para falar também dos japoneses e dos chineses representados aqui. É possível. Por hoje ficamos aqui porque eu ainda tenho um encontrozinho no salão ao lado e depois tenho uma outra reunião. Então temos que resumir.

Eu não pretendo ter descrito estas nações. Eu pretendo ter evocado com os senhores alguma coisa que os senhores mesmos sentiram nestas várias nações. É, portanto, mais como quem partilha recordações do que como quem diz coisas novas que eu fiz este voo sobre as várias nações. O tempo não dá para mais. Vamos passar para a Alemanha, se Deus quiser, na reunião que vem. Agora vamos rezar.

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