Missão hodierna das elites tradicionais

Catolicismo, Nº 64, Abril de 1956, págs. 4-6

Plinio Corrêa de Oliveira

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No último número de CATOLICISMO escrevíamos sobre o Santo Padre Pio XII, por motivo de seu 80º aniversário natalício, que transcorreu no dia 2 de março. Na impossibilidade de analisar nos estreitos limites de um jornal a personalidade polimorfa e a obra imensa do imortal Pontífice, manifestávamos nossa homenagem ao augusto Aniversariante estudando uma parte importantíssima e pouco conhecida, de seus documentos doutrinários, isto é, os discursos à Nobreza e ao Patriciado Romano. Em prosseguimento ao estudo encetado, publicamos hoje uma coleção de excertos admiráveis dessas alocuções, pronunciadas por ocasião das visitas de Ano Bom da aristocracia de Roma.

Não havendo no Brasil uma nobreza propriamente dita, mas valiosa elite tradicional, e dado que o próprio Pontífice (cfr. o terceiro tópico de nosso trabalho) põe em relevo a analogia existente entre uma e outra, reportamos a esta muito do que o Santo Padre diz sobre aquela.

Os discursos à Nobreza e ao Patriciado Romano foram publicados pelo “Osservatore Romano”, órgão oficioso da Santa Sé, nas seguintes datas: 7-8-I-41, 5-6-I-42, 11-12-I-43, 20-I-44, 16-I-45, 17-I-46, 9-I-47, 15-I-48, 16-I-49, 13-I-50, 12-I-51, 14-I-52.

O número que acompanha cada citação indica o ano em que foi pronunciado o discurso respectivo.

Uma situação iniludível

Na Idade Média a sociedade se constituía de três classes, cada qual com encargos, privilégios e honras especiais. Em linhas muito gerais, pode-se descrever esta organização dizendo que ao Clero incumbia a missão de manter vivos os fundamentos cristãos da civilização, pelo exercício do ministério sagrado. O ensino e as obras de assistência e caridade estavam a seu cargo, de sorte que ele desempenhava sem ônus para o Estado os serviços hoje afetos aos Ministérios da Educação e Saúde Pública. A nobreza era a classe militar. Tocava-lhe a defesa do país. Em suas terras, exercia sem gastos para o Rei, funções algum tanto análogas às dos prefeitos, juízes e delegados de polícia hodiernos. Como se vê, estas duas classes viviam para o bem comum, e, em compensação de seus graves encargos, gozavam de honras e vantagens correspondentes, como a isenção de impostos. O povo era a classe votada mais particularmente ao trabalho. Eram privilégios seus ter na guerra uma participação muito menor que a da nobreza, a exclusividade no exercício das profissões mais rendosas, o comércio e a indústria. Seus membros não tinham para com o Estado nenhuma obrigação especial. Trabalhavam para o bem comum apenas na medida em que cada qual favorecia seus interesses legítimos. De onde ser a classe menos favorecida em honras, e sobre a qual recaía o ônus dos impostos.

Como dissemos em nosso artigo anterior, esta situação se veio desfazendo ao longo dos Tempos Modernos ( 1450-1789 ), entrou em franca dissolução nos Tempos Contemporâneos, com a instituição de uma sociedade que confunde todas as classes, negando inteira ou quase inteiramente reconhecimento jurídico ao Clero e à nobreza, e, no tocante a esta, na Itália o último passo foi dado pela Constituição republicana.

Dura situação, a que não se deve fechar os olhos com pusilanimidade. Pois isto seria indigno de verdadeiros nobres. Pio XII o diz com impressionante precisão:

“Em primeiro lugar, considerai com intrepidez e valor as realidades presentes. Parece-Nos vão e pouco digno de vós dissimulá-las com eufemismos prudentes, especialmente depois das palavras de vossa eloqüente intérprete, que Nos deu tão claro testemunho de vossa adesão à doutrina social da Igreja e aos deveres que dela decorrem.

“A nova Constituição italiana não vos reconhece como classe social. No Estado e no povo, nenhuma missão social, nenhum atributo, nenhum privilégio” ( 1952 ).

Esta situação, diz o Pontífice, é o ponto terminal de todo um longo encadeamento de fatos, que dá a impressão de um como que “caminhar fatal” ( 1952 ).

À vista das “formas de vida bem diversas” ( 1952 ) que agora se constituem, os membros da nobreza e das elites tradicionais não devem ignorar a realidade, nem perder-se em lamentações inúteis, mas tomar claramente atitude ante ela. É a conduta adequada a pessoas de valor: “Os medíocres, na adversidade, se limitam a mostrar uma fisionomia contrafeita. Os espíritos superiores, pelo contrário, sabem, segundo a expressão clássica, mostrar-se “beaux joueurs”, conservando imperturbável sua atitude nobre e serena” ( 1952 ).

Missão hodierna das elites tradicionais

Concretamente, no que consiste este reconhecimento objetivo e varonil de condições de vida que não se é obrigado de nenhum modo a aplaudir, a respeito das quais “se pode pensar o que se quiser” ( 1952 ), mas que constituem um fato palpável dentro do qual somos forçados a viver?

A nobreza e as elites tradicionais perderam sua razão de existir? Devem romper com suas tradições, seu passado, em uma palavra devem dissolver-se na plebe, confundindo-se com ela, apagando tudo quanto às famílias nobres reste de altos valores de virtude, cultura, estilo e educação?

A este respeito, o ensinamento de Pio XII é incisivo. As elites tradicionais devem continuar a existir, e continuam a ter uma alta missão: “Levantai os olhos e fixai-os firmemente no ideal cristão. Todas estas agitações, evoluções ou revoluções o deixam intacto, e nada existe que possa prevalecer contra o que é a própria essência da autêntica nobreza, isto é, a nobreza que aspira à perfeição cristã, que o Redentor enunciou no Sermão da Montanha” (1952). Em conseqüência, o nobre tem em nossos dias duas tarefas: deve primar por sua “fidelidade sem condições à doutrina católica, a Cristo e a sua Igreja; deve ter capacidade e vontade de ser modelo e guia também para os demais” ( 1952 ), nas várias esferas da vida temporal, quer pública quer privada.

As elites tradicionais resultam da ordem natural

Há antes de tudo um fato natural, ligado à existência das elites tradicionais, que cumpre lembrar: é a hereditariedade. “Desta grande e misteriosa coisa que é a hereditariedade – quer dizer, o passar através de uma estirpe, perpetuando-se de geração em geração, de um rico acervo de bens materiais e espirituais; a continuidade de um mesmo tipo físico e moral, conservando-se de pai para filho; a tradição que une através dos séculos os membros de uma mesma família – desta hereditariedade, dizemos, se pode sem dúvida entrever a verdadeira natureza sob o aspecto material. Mas pode-se também, e deve-se, considerar esta realidade de tão grande importância, na plenitude de sua verdade humana e sobrenatural. Não se negará certamente o fato de um substrato material à transmissão dos caracteres hereditários; para estranhar isto, precisaríamos esquecer a união íntima de nossa alma com nosso corpo, e em quão larga medida as nossas mesmas atividades mais espirituais dependem de nosso temperamento físico. Por isso a moral cristã não deixa de lembrar aos pais as grandes responsabilidades que lhes cabem a esse respeito. Mas o que mais vale é a hereditariedade espiritual, transmitida não tanto por esses misteriosos liames da geração material, quanto pela ação permanente daquele ambiente privilegiado que constitui a família, com a lenta e profunda formação das almas, na atmosfera de um lar rico de altas tradições intelectuais, morais e sobretudo cristãs, com a mútua influência entre aqueles que moram em uma mesma casa, influência essa cujos benéficos efeitos se prolongam muito além dos anos da infância e da juventude, até o fim de uma longa vida, naquelas almas eleitas que sabem fundir em si mesmas os tesouros de uma preciosa hereditariedade com o contributo de suas próprias qualidades e experiências. Tal é o patrimônio, mais do que todos precioso, que, iluminado por firme fé, vivificado por forte e fiel prática da vida cristã em todas as suas exigências, elevará, aprimorará, enriquecerá as almas de vossos filhos” ( 1941 ).

Esta formação de elites tradicionais, com um tônus aristocrático, é um fato tão profundamente natural, que se manifesta mesmo em países sem passado monárquico ou aristocrático: “Também nas democracias de recente data, e que não tem atrás de si qualquer vestígio de um passado feudal, foi se formando, pela própria força das coisas, uma espécie de nova nobreza ou aristocracia. É a comunidade das famílias que, por tradição, põem todas as suas energias ao serviço do Estado, de seu governo, da administração, e sobre cuja fidelidade ele pode contar a qualquer momento” ( 1947 ). Magnífica definição do que seja a essência da nobreza, que faz lembrar as grandes estirpes de colonizadores, bandeirantes e plantadores, que durante séculos fizeram o progresso da América, constituindo a maior riqueza moral das sociedades temporais em que viveram e vivem.

Fautoras do progresso e guardiãs da tradição

Entre as tradições típicas da nobreza e das elites tradicionais, se inclui “um calmo e constante apego a tudo quanto a experiência e a história convalidaram e consagraram, um espírito inacessível à agitação irrequieta e à ânsia cega de novidades, que caracterizam nossa época, mas ao mesmo tempo largamente aberto para todas as necessidades sociais” ( 1946 ).

Estas palavras bem exprimem o nexo existente entre nobreza e tradição. Aquela é a guardiã natural desta. É a classe incumbida, mais do que qualquer outra, de manter vivo o nexo pelo qual a sabedoria do passado governa o presente, sem contudo imobilizá-lo.

Pela força da hereditariedade, os nobres prolongam na terra a existência dos grandes homens do passado: “Relembrando vossos antepassados, como que os reviveis; e vossos antepassados revivem em vossos nomes e nos títulos, que vos deixaram, de seus merecimentos [e] de suas grandezas” (1942).

Isto dá à nobreza, e às elites tradicionais, uma missão moral toda particular, pois são elas que asseguram ao progresso a continuidade com o passado: “A sociedade humana não é, porventura, ou pelo menos não deveria ser, semelhante a uma máquina bem ordenada, cujas peças concorrem todas para um funcionamento harmônico conjunto? Cada qual tem sua função, cada qual deve aplicar-se para um melhor progresso do organismo social, cujo aperfeiçoamento deve procurar, de acordo com suas forças e próprias virtudes, se tem verdadeiro amor ao próximo e tende razoavelmente para o bem e proveito de todos. Ora, que parte vos foi consignada de maneira especial, queridos filhos e filhas? Que missão vos foi particularmente atribuída? Precisamente aquela de facilitar este desenvolvimento normal; o serviço que na máquina têm e executam o regulador, o volante, o reostato, que participar da atividade comum e recebem sua parte da força motriz para assegurar o movimento de regime do aparelho. Em outros termos, Patriciado e Nobreza, vós representais e continuais a tradição” (1944)

Sentido e valor da verdadeira tradição

O apreço a uma tradição bem entendida é virtude raríssima em nossos dias.

De um lado, porque o espírito de novidade, o desprezo pelo passado, são estados de alma que a Revolução tornou freqüentíssimos. De outro lado, porque os defensores da tradição a entendem por vezes de modo inteiramente falso. A tradição não é um mero valor histórico, nem um simples tema para variações de um saudosismo romântico. É ela um elemento vivo, que deve ser entendido não de modo exclusivamente arqueológico, mas como fator indispensável para a vida presente.

A palavra tradição, diz o Pontífice, “soa desagradavelmente a muitos ouvidos. Ela desagrada, com razão, quando pronunciada por certos lábios. Alguns a compreendem mal; outros a usam como mentiroso pretexto para seu inativo egoísmo. Em tão dramático desentendimento e equívoco, não poucas vozes invejosas, muitas hostis e de má fé, e mais ainda ignorantes ou enganadas, vos questionam e perguntam sem rebuços: “para que servis”? Para lhes responder, convém antes entender-se sobre o verdadeiro sentido e valor desta tradição, da qual antes de tudo desejais ser os principais representantes.

“Muitos espíritos, mesmo sinceros, imaginam, e crêem que tal tradição não seja mais do que a lembrança, o pálido vestígio de um passado que não existe mais, que não pode voltar, e que quando muito é relegado com veneração, se se quiser, e com reconhecimento, à conservação de um museu, que poucos amadores ou amigos visitam. Se nisto consistisse e a isto se reduzisse a tradição, e se importasse em recusa ou desprezo do caminho do porvir, seria razoável negar-lhe o respeito e a honra, e seria para se olharem com compaixão os sonhadores do passado, retardatários em face ao presente e ao futuro, e com maior severidade aqueles que, movidos por intenções menos puras e respeitáveis, mais não são do que desertores dos deveres da hora que se mostra tão lutuosa.

“Mas a tradição é coisa muito diversa de um simples apego a um passado já desaparecido, é justamente o contrário de uma reação que desconfie de todo são progresso. O próprio vocábulo, etimologicamente é sinônimo de caminho e marcha para a frente – sinonímia e não identidade. Com efeito, enquanto o progresso indica somente o foto de caminhar para a frente, passo após passo, procurando com o olhar um incerto porvir, a tradição indica também um caminho para a frente, mas um caminho contínuo, que se desenvolve ao mesmo tempo tranqüilo e vivaz, de acordo com as leis da vida, escapando à angustiosa alternativa “Si jeunesse savait, si vieillesse pouvait!”; semelhante àquele Senhor de Turenne, do qual foi dito: “teve em sua mocidade toda a prudência de uma idade avançada, e em uma idade avançada todo o vigor da juventude” ( Fléchier, Oração Fúnebre, 1676 ).

“Por força da tradição, a juventude, iluminada e guiada pela experiência dos anciãos, avança com passo mais seguro, e a velhice transmite e consigna confiante o arado a mãos mais vigorosas, que continuam o sulco já iniciado. Como indica seu nome, a tradição é um dom que passa de geração em geração; é a tocha que o corredor a cada revezamento põe na mão e confia a outro corredor, sem que a corrida pare ou arrefeça de velocidade. Tradição e progresso reciprocamente se completam com tanta harmonia, que, assim como a tradição sem o progresso se contrariaria a si mesma, assim também o progresso sem tradição seria um empreendimento temerário, um salto no escuro.

“Não, não se trata de subir contra a correnteza, de retroceder para formas de vida e de ação de idades já passadas, mas sim de aceitando e seguindo o que o passado tem de melhor, caminhar ao encontro ao futuro com o vigor imutável da juventude” (1944).

Importância e legitimidade das elites tradicionais

O sopro de demagogia que perpassa por todo o mundo contemporâneo cria uma atmosfera de antipatia contra as elites tradicionais. E isto em grande parte pelo apego que estas têm à tradição. Há nisto grave injustiça, desde que tais elites entendam “tradição” retamente: “Procedendo por esta forma, vossa vocação resplandece já delineada, grande e laboriosa, pelo que deveria merecer-vos gratidão de todos, e tornar-vos superiores às acusações que vos fossem feitas de um ou outro lado.

“Enquanto tendes providamente em vista ajudar o verdadeiro progresso para um mais são e feliz porvir, seria uma injustiça e uma ingratidão recriminar-vos e imputar-vos como uma deshonra o culto do passado, o estudo de sua história, a fidelidade irremovível aos princípios eternos. Os exemplos gloriosos ou infaustos daqueles que precederam os tempos presentes, são uma lição e uma luz diante de vossos passos; e com razão já foi dito que os ensinamentos da história fazem da humanidade um homem que caminha sempre e nunca envelhece. Viveis na sociedade moderna, não como emigrados em país estrangeiro, mas como beneméritos e insignes cidadãos que entendem e querem trabalhar com seus contemporâneos, a fim de preparar o saneamento, a restauração e o progresso do mundo” (1944).

A Providência quer a desigualdade de berço

Outro fator de hostilidade contra as elites tradicionais está no preconceito revolucionário de que toda desigualdade de berço é contraria à justiça. Admite-se que um homem possa destacar-se por seu mérito próprio. Não se admite porém que o fato de proceder de uma estirpe ilustre seja para ele um título a mais, de glória e influência. A este respeito, o Santo Padre Pio XII nos dá um precioso ensinamento: “As desigualdades sociais, inclusive as ligadas ao nascimento, são inevitáveis; a natureza benigna e a benção de Deus à humanidade iluminam e protegem os berços, beijam-nos, porém não os nivelam. Atentai mesmo para as sociedades mais inexoravelmente niveladas. Nenhum artifício jamais logrou ser bastante eficaz a ponto de fazer com que o filho de um grande chefe, de um grande condutor de multidões, permanecesse em tudo no mesmo estado que um obscuro cidadão perdido no povo. Mas se tais disparidades inelutáveis podem, quando vistas de maneira pagã, parecer uma inflexível conseqüência do conflito entre forças sociais e da supremacia conseguida por uns sobre outros segundo as leis cegas que se supõem regerem a atividade humana, de maneira a consumar o triunfo de alguns com o sacrifício de outros, – pelo contrário, tais desigualdades não podem ser consideradas por uma mente cristãmente instruída e educada, senão como disposição desejada por Deus pelas mesmas razões que explicam as desigualdades no interior da família, e portanto com o fim de unir mais os homens entre si, na viagem da vida presente para a pátria do Céu, ajudando-os da mesma forma que um pai ajuda a mãe e os filhos” ( 1942 ).

Servir à Igreja e ao bem comum, glória das elites tradicionais cristãs

Nisto está a glória cristã das elites tradicionais. A aristocracia pagã se ufanava exclusivamente de sua ilustre progênie. E a nobreza cristã soma a este título legítimo outro ainda mais alto. É o exercício de uma função paterna junto às demais classes: “O nome do Patriciado Romano suscita em nosso espírito um pensamento e um panorama histórico ainda maiores. Se a palavra “patrício”, “patricius” significava na Roma pagã o fato de ter antepassados, de pertencer a uma classe privilegiada e dominante e não a uma família comum, à luz cristã toma ela aspecto mais luminoso e ressoa mais profundamente, enquanto associa a idéia de superioridade social à de ilustre progênie. Assim é o patriciado da Roma cristã, que teve seus fulgores mais altos e antigos, não mais no sangue, mas na dignidade de protetores de Roma e da Igreja: “Patricius Romanorum”, título que foi usado desde o tempo dos exarcas de Ravena até Carlos Magno e Henrique III. Armados defensores da Igreja, tiveram ao longo dos séculos também Papas originários das famílias do Patriciado Romano, e Lepanto assinalou um de seus grandes nomes nos fastos da história” ( 1942 ).

Concepção paternal de superioridade social

Certamente, do conjunto destes conceitos se desprende uma impressão de paternalidade a impregnar as relações entre classes mais altas e mais humildes. Contra isto, duas objeções facilmente se apresentariam. De um lado, não se poderia afirmar que freqüentes opressões realizadas no passado pela nobreza, ou elites congêneres, desmentem toda esta doutrina? De outro lado, não se poderia dizer que toda afirmação de superioridade elimina do trato social a cordura, a suavidade, a amenidade cristã? Pio XII responde a estas perguntas implicitamente, quando afirma: “se esta concepção paternal da superioridade social, por vezes, em virtude do ímpeto das paixões humanas, arrastou os ânimos a desvios nas relações de pessoas de categoria mais elevada, com as de condição mais humilde, a história da humanidade decaída não se surpreende com isto. Tais desvios não bastam para diminuir ou ofuscar a verdade fundamental de que para o cristão as desigualdades sociais se fundem em uma grande família humana; e de que portanto as relações entre classes e categorias desiguais devem permanecer governadas por uma honesta e igual justiça, e ao mesmo tempo animadas por respeito e afeição mútua, que ainda sem suprimir a disparidade, lhes diminuam as distâncias e temperem os contrastes” ( 1942). Exemplo vivo desta aristocrática bondade de trato se encontra em muitas famílias nobres que sabem ser eximiamente bondosas para com seus subordinados, sem consentir em nada que desminta sua natural superioridade: “Nas famílias verdadeiramente cristãs, por acaso não vemos nós os maiores dentre os patrícios e as patrícias, vigilantes e solícitos em conservar para com seus empregados, e todos os que os cercam, um comportamento consentâneo por certo com sua posição, mas escoimado de presunção, propenso à cortesia e benevolência nas palavras e modos que demonstra a nobreza dos corações; patrícios e patrícias que vêm neles homens, irmãos, cristãos como eles, e a eles unidos em Cristo com os vínculos da caridade, daquela caridade que mesmo nos palácios ancestrais conforta, suste[nta], ameniza e dulcifica a vida entre os grandes e os humildes, máxime nas horas de dor e tristeza, que nunca faltam” ( 1942 ).

Jesus Cristo consagrou a condição de nobre como a de operário

Assim vista a condição do nobre, ou do membro de uma elite tradicional, compreende-se que Jesus Cristo a tenha santificado encarnando-se numa família principesca: “É fato que Cristo Nosso Senhor quis, para conforto dos pobres, vir ao mundo desprovido de tudo, e crescer numa família de simples operários; mas é igualmente verdadeiro que Ele quis com seu nascimento honrar a mais nobre e ilustre das casas de Israel, a própria estirpe de David. Por isso, fiéis ao espírito d’Aquele do qual são Vigários, os Sumos Pontífices sempre quiseram ter em alta consideração o Patriciado e a Nobreza Romana, cujos sentimentos de inalterável adesão a esta Sé Apostólica são a parte mais preciosa da hereditariedade recebida de seus antepassados, e que eles mesmos transmitirão a seus filhos” ( 1941 ).

A lei não pode revogar o passado

E também se entende que, a despeito de proclamada a república na Itália, o Santo Padre tenha mantido o Patriciado e a Nobreza Romana, como ilustre lembrança de um passado do qual o presente deve conservar algo, a título de continuidade de uma tradição benfazeja e ilustre: “É bem verdade que, na nova Constituição italiana, os títulos nobiliárquicos não são reconhecidos ( exceção feita, naturalmente, conforme o art. 42 da Concordata, no que diz respeito à Santa Sé, para aqueles que foram conferidos ou que serão de futuro conferidos pelos Sumos Pontífices ); mas a própria Constituição não pode anular o passado e nem a história de vossas famílias” ( 1949 ). Do que continua a provir para os nobres um pesado e magnífico dever, resultante desse prestígio que amigos e inimigos têm de reconhecer: “Portanto, agora também o povo – quer vos seja ele favorável quer desfavorável, quer tenha por vós respeitosa confiança ou sentimentos hostis – olha e observa o exemplo que dais em vossa vida. Cabe-vos, pois, responder a esta expectativa e mostrar de que maneira vossa conduta e vossos atos estão de acordo com a verdade e a virtude, particularmente nos pontos que acima recordamos em Nossas recomendações” ( 1949 ).

É considerando o que a nobreza romana foi no passado, e vendo nessa recordação, não algo de morto, mas “um impulso para o futuro” (1950), que o Santo Padre, “movido por motivos de honra e fidelidade” ( 1950 ), mantém, mesmo nas circunstâncias atuais, um tratamento de especial distinção para com ela, e convida o homem moderno a se associar a tal atitude: “Saudamos em vós os descendentes e os representantes de famílias que se sobressaíram no serviço da Santa Sé e do Vigário de Cristo, e permaneceram fiéis ao Pontificado Romano, mesmo quando este era exposto a ultrajes e perseguições. Sem dúvida, com o decorrer do tempo a ordem social pode evoluir, e deslocar-se o seu centro; os cargos públicos, que outrora eram reservados à vossa classe, podem agora ser atribuídos e exercidos sobre uma base de igualdade; todavia, para um tal testemunho de grata recordação, que deve por outro lado servir-nos de impulso para o porvir, o próprio homem moderno, se quiser ser de sentimento reto e equânime, não vos pode negar compreensão e respeito” ( 1950 ).

Dois erros extremos: arqueologismo e falsa restauração

Mas, dir-se-á, Pio XII, com estes ensinamentos, emitidos numa época em que o desejo de igualdade mais desabrido e completo vence por toda a parte, parece reagir inteiramente contra a corrente, condenando a democracia.

Tal impressão não procede. A Igreja afirmou sempre a legitimidade da forma de governo democrática, e o pensamento do Pontífice não consiste em impor um sistema de governo de preferência a outro. À vista da avalanche igualitária, e sem entrar em preferências políticas, Pio XII procura tomar a tendência democrática como ela existe, e guiá-la de sorte a evitar mal maior.

É o que ele faz ver, quando dá à nobreza romana o seguinte conselho ao se reorganizar a Itália de pós-guerra: “Todos admitem geralmente que esta reorganização não pode ser concebida como um puro e simples retorno ao passado. Tal regresso não é possível; mesmo em seu movimento freqüentemente desordenado, desconexo, sem unidade nem coerência, o mundo continuou a caminhar; a história não para, não pode parar; ela avança sempre, prosseguindo em sua marcha, ordenada e retilínea, ou então confusa e sinuosa, para o progresso ou para uma ilusão de progresso” ( 1945 ). Ora, nesta marcha para o “progresso ou uma ilusão de progresso”, querer restaurar até a última da menor das minúcias, o que foi destruído, seria impossível: “Não obstante, a história caminha, corre, e querer simplesmente fazer marcha-ré, não para reduzir o mundo à imobilidade em antigas posições, mas para reconduzi-lo a um ponto de partida infelizmente abandonado por causa dos desvios ou de falsas mudanças, seria empresa vã e estéril. Não é nisto que consiste, como observamos no ano passado, nesta mesma ocasião, a verdadeira tradição” (1945).

No reconstruir a sociedade, como no reconstruir um edifício, há dois erros extremos a evitar: um, a reconstrução arqueológica; outro, a construção de edifício diverso, isto é, uma reconstrução que não seria reconstrução: “Tal como a reconstrução de um edifício destinado a servir a usos hodiernos não poderia ser concebida à maneira de uma reconstrução arqueológica, assim também, essa reconstrução não seria possível de acordo com esquemas arbitrários, mesmo quando fossem teoricamente os melhores e os mais desejáveis: é preciso ter presente a imprescindível realidade, a realidade em toda a sua extensão” (1945).

Instituições altamente aristocráticas também nas democracias

Ora, se a Igreja não pretende destruir a democracia, deseja que ela seja bem entendida, e que a distinção entre o conceito cristão e o conceito revolucionário de democracia seja absoluta.

Vem muito a propósito, a este respeito, lembrar o que Pio XII ensina sobre o caráter tradicional e o tônus aristocrático da democracia cristã: “Já em outra ocasião falamos das condições necessárias para que um povo se torne maduro para uma sã democracia. Mas quem o pode conduzir e elevar a esta maturidade? Sem dúvida, poderia a Igreja dar muitos ensinamentos a tal respeito, extraídos dos tesouros de sua experiência e de sua própria ação civilizadora. Mas vossa presença Nos sugere uma particular observação. Segundo o testemunho da história, onde reina uma verdadeira democracia a vida do povo está como que impregnada de sãs tradições, que é ilícito abater. Representantes destas tradições são, antes de tudo, as classes dirigentes, ou seja, os grupos de homens e de mulheres ou as associações que dão, como se costuma dizer, o tom na aldeia e na cidade, na região e no país inteiro.

“Daí a existência, em todos os povos civilizados, e o influxo de instituições eminentemente aristocráticas, no sentido mais alto da palavra, como são algumas academias de larga e bem merecida fama. Pertence a este número também a nobreza: sem pretender qualquer privilégio ou monopólio, ela é ou deveria ser uma daquelas instituições; instituição tradicional, fundada na continuidade de uma antiga educação. Certamente, em uma sociedade democrática, como quer ser a sociedade moderna, um título de nascença não é mais suficiente para proporcionar autoridade e credito; portanto, para conservar dignamente vossa elevada condição e vossa categoria social, ou mais, para acrescê-la e elevá-la, devereis ser verdadeiramente uma elite, devereis preencher as condições e satisfazer as exigências indispensáveis no tempo em que vivemos.

“Uma elite? Vós bem o podeis ser. Tendes atrás de vós todo um passado de tradições seculares, que representam valores fundamentais para a sadia vida de um povo. Entre essas tradições, das quais a justo título vos ufanais, contais em primeiro lugar a religiosidade, a Fé católica viva e operante” ( 1946 ).

Uma nobreza, ou elites tradicionais, cujo ambiente seja caldo de cultura para a formação de altas qualidades da inteligência, da vontade e da sensibilidade, e que alimentem o seu prestígio do mérito de cada geração que passa, não é pois para Pio XII o contrário da democracia cristã, mas um precioso elemento dela. Tanto difere a democracia cristã da democracia igualitária revolucionária.

Veremos no próximo número outros ensinamentos do Santo Padre sobre esta importante matéria.

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