Meditações sobre Nosso Senhor Jesus Cristo flagelado: “Em que te contristei?”

Auditório São Miguel, terça-feira, 10 de fevereiro de 1976 — Santo do Dia

 

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

 

 

(…) Dizer que o quadro é bonito, é dizer muito pouco por que ele é bonito. Mas muito mais do que isto ele é impressionante e profundamente impressionante. E de molde a despertar muita piedade. E que é, enquanto tal, eu quero fazer dele objeto do “Santo do Dia”.
Agora, à primeira vista, quando me foi apresentado o quadro, eu fiquei chocado. Porque as feridas do Corpo Sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo estão apresentadas com um tal realismo e de um modo tão brutal que o instinto de conservação do homem clama com aquilo, tem a tendência a fugir daquilo. E achar que não é arte representar um horror daqueles de um modo tão horripilante. O que é, de nossa parte, um primeiro impulso que deve ser dominado porque é uma ingratidão.
Tal será que tendo Nosso Senhor Jesus Cristo sofrido tudo o que Ele sofreu por nós, nós não queiramos sequer olhar para o Corpo chagado dEle porque isto nos pode desagradar. É uma ingratidão, é uma falta de respeito sem nome. Como primeiro impulso se compreende, é uma coisa quase que física. Mas há ingratidão em consentir.
A gente compreende, então, que o escultor tenha chegado a esculpir de um modo tão terrivelmente realista esta imagem.
[Projeção de slides]
A meu ver, o mais impressionante de longe é este. E é este que eu pretendo mais detidamente comentar.
Vejam o olhar!
Ainda aí notem bem o olhar; especialmente esse olhar eu comentarei daqui a pouco.
Aqui é a carne toda entumecida. Os senhores veem que parece mais um tecido do que propriamente uma carne sobre ossos, e toda lanhada pela flagelação.
Aqui as mãos.
Eu analiso essa. Eu vou procurar tornar claro aos senhores o que eu considero mais emocionante nesse quadro. Aliás, eu devo dizer, como muitas vezes acontece nas projeções a meu ver pelo menos, a projeções não dão inteiramente bem a coisa. E a estampa que eu recebi justifica melhor meus comentários do que a projeção. Mas eu não quis apresentar a estampa porque ela não pode ser vista por todo o auditório, e por isso mandei organizar a projeção.
Algumas coisas me agradam extraordinariamente nessa figura. A primeira delas, que me chama mais a atenção, é o olhar profundamente pensativo, profundamente meditativo.
Eu tenho visto incontáveis crucifixos em que Nosso Senhor parece abismado, aliás, legitimamente, santamente, na consideração da Sua própria dor; em que o artista procura atrair a atenção da pessoa que vê, do espectador, para as dores de Nosso Senhor Jesus Cristo, para provocar compaixão. E o próprio olhar de Nosso Senhor, muito legitimamente, muito santamente, nesses crucifixos parece perguntar: pelo menos nesta dor tu não tens pena de Mim?
Porém, aqui, eu interpreto o olhar de outra maneira. É bem verdade que a dor está presente. É o olhar de uma pessoa que sofre e sofre profundamente. Mas por cima da dor, não sei se os senhores notam que há uma reflexão profunda, uma reflexão consternada, de quem pensa e pensa profundamente a respeito do que lhe está acontecendo, a respeito do significado transcendente, do significado metafísico, do significado sobrenatural de todas as dores pelas quais Ele está passando, e que faz propriamente uma meditação.
É uma meditação sobre a sua própria paixão como Ele gostaria que nós fizéssemos. Uma meditação que, segundo eu interpreto olhando a face sagrada, parte de um ponto altíssimo, do mais alto ponto de consideração em que uma mente humana possa colocar-se. Mas é ao mesmo tempo uma meditação que vai até o mais concreto, ao mais palpável, ao mais miúdo, ao mais distante da transcendência, e une tudo numa vista em comum, une tudo numa só consideração; e é a consideração global não só do que fazem contra Ele, mas também do que fazem por Ele. Não só os homens vivos, então, mas todos os homens que ao longo dos tempos considerariam esse passo da Paixão e que seriam frios, seriam indiferentes, seriam cruéis; ou O adorariam, transportados de amor, de admiração, de veneração, consideração a situação em que Ele está.
Tudo isto é considerado aí. E isso me faz lembrar a palavra do profeta Simeão sobre Ele: “pedra de escândalo que dividiria os homens para a perda e salvação de muitos, e para que se revelassem as cogitações de muitos corações”. Quer dizer, dividindo a história, cindindo a história de alto a baixo, em dois: os que eram dEle e os que eram contra Ele, salvando uns e perdendo os outros.
Me parece que essas considerações todas, e outras ainda altíssimas, um mundo de considerações estão expressas nesse olhar, que como os senhores veem pousa ao longe, num ponto indefinido.
Mas de outro lado, e esta projeção não apresenta isto tão bem quanto a própria estampa, há uma altaneria na posição dEle. Os senhores notem que por mais que esteja quebrado Ele não está arqueado; pelo contrário, o tronco sagrado está de pé numa posição que se poderia chamar nobre. A própria cabeça não está caída de um modo desairoso. Mas a cabeça sem estar de pé, de modo arrogante, está posta com uma naturalidade profunda e nobre sobre o pescoço, e ereta como um homem que pensa, que pensa, que pensa, e que está entregue às suas mais altas cogitações.
Os senhores notem de outro lado a posição lindíssima dos dois braços. Dir-se-ia um personagem que está num ato de muito protocolo, de muita etiqueta. Os senhores sabem que até nas coortes, muitas vezes o modo de postar correto dos braços diante de um rei, ou de uma rainha é este. Assim está Ele. E assim os senhores O veem com o corpo trabalhado pela flagelação. Os senhores estão vendo que há partes da carne sagrada que não foram batidas e outras em que a carne foi arrancada.
Os senhores sabem, historicamente, que Ele está cercado por gente que ria dEle. Mas Ele não olha para essa gente. Ele transcende essa gente, não toma conhecimento. Ele está infinitamente acima de tudo isso, entregue aos seus pensamentos, à sua oração. De tal maneira que se podia colocar, entre os muitos títulos que esse quadro mereceria, se poderia por: “Jesu autem orabat” [Jesus porém rezava]; como poderia por: “Jesus autem tacebat” [Jesus porém se calou].
Os senhores notem o manto da irrisão, o manto como cai, apesar de tudo, composto, com a parte direita meio voltada para trás, indicando por esses discretos indícios a beleza moral e a força moral que não O abandonou nem mesmo nas situações mais terríveis.
Eu creio que isto aí é a última expressão do comovedor dentro desta linha: Cristo enquanto pensando, enquanto refletindo, enquanto orando durante sua Paixão.
Os senhores veem aí o olhar. Me parece discernir nesse olhar três aspectos: primeiro, muita dor física, que se exprime aí, seguida de muita angústia diante da dor que vem. É uma figura que está em todo tormento e que sente o tomento que ainda vem, está no meio do tormento. Ele está, portanto, no auge do horror, em que Ele ainda não sofreu tudo, e que, portanto, a morte que o libertará ainda está longe, mas em que Ele já sofreu tanto que Ele perdeu toda a força para resistir, mas ainda tem que aguentar enormemente.
Há, portanto, uma ansiedade, uma angústia; mas que uma angústia doce, que angústia suave, que angústia sem agitação, que angústia confiante: Isso tem uma saída, meu pai atenderá minha prece, eu chegarei até o fim. Isto tem um sentido.
Agora, de outro lado, não sei se os senhores veem, a tristeza profunda, mas uma tristeza moral. Como que divinamente decepcionado com aqueles que o abandonaram. Não parece aos senhores que Ele se lembra nessa hora não dos miseráveis que O estão chicoteando, mas dos Apóstolos que o deixaram? Que Ele está um por um revendo cada Apóstolo, e que Ele está pensando em São Pedro sobre quem Ele construiu a Igreja; Ele está pensando em São João, o Apóstolo virgem, que horas antes ainda deitara a cabeça sobre o peito dEle para fazer uma pergunta de intimidade; que Ele está pensando em São Bartolomeu, que Ele mesmo disse que era um verdadeiro israelita no qual não há fraude, e que, entretanto, o abandonou também. Ele está pensando em todos os outros; está pensando com horror no filho da perdição que O vendeu. Ele está pensando em todos aqueles que O trairiam ao longo dos séculos.
Ele está pensando também em algo que O angustia enormemente, que é magnífico, e que é Nossa Senhora e a dor que Nossa Senhora está sofrendo.
Mas, por cima disso, a mim me parece ver os olhos do pensador, que está meditando, que está pensando, que está fazendo filosofia e teologia daquele acontecimento central da história que é sua paixão e sua morte. E que com isso tudo está rezando, está orando. A meu ver é manifesto que há uma oração dentro disso, uma magnífica oração.
Parece-me que nesta fotografia a impressão da dor física é um tanto menor; a impressão da angústia e da reflexão é maior ainda.
E aqui os senhores têm um conjunto das várias expressões que vários close-ups sucessivos podem dar do rosto dEle e que tudo aqui se junta numa fisionomia una, na qual sobressai a vergastada profunda na testa.
Quando uma pessoa pensa, costuma frequentemente formar um vinco desse tipo na testa. É a meditação do verdadeiro homem Deus que é uma meditação acompanhada de dor, de pensamento. Quantas vezes acompanhada de tristeza e de amargura. Uma meditação que faz sangrar a alma, se não faz sangrar o corpo, uma meditação que envelhece, que encanece, que consome, mas que eleva e santifica.
Aqui os senhores têm o corpo divino. Eu não tenho nada que dizer. Os senhores notem a tumefação do braço esquerdo que aqui aparece melhor, nem tem o contorno redondo, comum do braço, mas está todo ele bailando em torno dos ossos. E esses braços ainda vão carregar a Cruz e essas mãos ainda vão ser cravadas na Cruz, até que Ele morra. Isso é a imensidade de tormentos que o aguarda depois de ter sofrido tudo isto.
Aqui estão as mãos sagradas. Amarradas as mãos do Onipotente. Os senhores percebem as pontas dos dedos. É bonito que as mãos são apresentadas inteiramente descontraídas, não há contração nervosa. Mas estão assim, como as mãos de um rei prontas para serem osculadas. É o Rei da Dor.
Terminou? Pode acender a luz.
Por vezes essas impressões são pessoais. E se bem que as fotografias estejam muito bem tiradas, eu sou da tese de que os projetores raramente dão toda a realidade da coisa que projetam, e que a coisa é muito mais real.
Esse quadro está no momento no Eremo de Jasna Gora. E eu pretendo depois trazê-lo para cá. Colocá-lo alguns dias nos “Buissonnets”, depois alguns dias na Sede do Reino de Maria, em outros lugares, até que os senhores todos possam vê-lo bem. Depois eu destinarei o lugar onde com toda propriedade ele possa ficar de modo definitivo.
Mas eu não queria deixar de assinalar aqui com os senhores esta ocasião de graças que todos nós recebemos.
É evidente que este quadro, a nós que somos escravos de Nossa Senhora, deve ser olhado de dentro dos olhos de São Luís Grignion. Quer dizer, nós devemos entender que se Nosso Senhor sofreu tudo isso, foi pelos rogos de Maria; que se esse sangue é aplicável a nós, é pelos rogos de Maria; que se nossa presença não causa horror a Ele, mas pelo contrário é aceita com misericórdia, é pelos rogos de Maria. E que é com Ela, por Ela e nEla que nós nos podemos apresentar a Nosso Senhor Jesus Cristo. Que Ela é o caminho necessário, por vontade de Deus, para nós nos aproximarmos de Nosso Senhor Jesus Cristo, e sermos não digo dignos, mas pelo menos de algum modo proporcionados para nós olharmos essa figura e pedirmos por nós e pedirmos pela Igreja, pedirmos pela TFP etc.
Mas a mim me pareceu que na nossa família de almas não poderia deixar de ser comentado em conjunto o aparecimento desse quadro.
Não sei se algum dos srs. quer me perguntar alguma coisa, ou quer acrescentar algo ao que eu disse, ou qualquer outra consideração.
(Pergunta: O Sr. tem ideia de quem seja o autor desse quadro?)
Não sei também. As pessoas que me deram informações sobre o quadro não sabiam que é o autor. Na estampa que me foi dada há o nome do fotógrafo da estampa, mas não o nome do autor.
(Pergunta: O Sr. teria algum comentário sobre o autor?)
O que esculpiu? Eu acho que esse homem fez uma coisa extraordinária no seguinte sentido: muitas vezes a gente vê diante de um quadro – ou escultura – a expressão de alma do artista que produziu o quadro, e é uma qualidade. É o modo pelo qual a pessoa exprimiu o que aquele tema lhe produzia na alma. Mas muito mais bonito é quando o artista de tal maneira se deixa identificar com o tema que aparece apenas o tema, e a expressão de alma do artista não aparece, é apenas o tema. Aqui o senhor não sente o artista. O senhor sente apenas a Nosso Senhor.
Quer dizer, o artista de tal maneira viveu, por assim dizer, a dor de Nosso Senhor, que ele representa Nosso Senhor e se apaga. Não se percebe qual era o estado de alma dele a não ser na extrema inteligência, na extrema propriedade, na extrema finura, e sobretudo na extrema piedade com que ele apresenta a matéria; o resto ele está ausente. E isso a meu ver é o auge do mérito dentro da obra de arte.
(Aparte inaudível)
A Igreja está atada à coluna da flagelação!
(idem)
Uma pergunta é ligada à outra. O porquê deste estado de alma nos dá o modo de rompê-lo, porque a gente fazendo cessar a causa, faz cessar o efeito. Então se nós queremos eliminar em nossa alma um estado ruim, nós devemos perguntar qual é a causa deste estado para fazer cessar a causa. Então o estado de alma ruim passa. De maneira que as duas perguntas são enormemente conexas entre si.
O senhor podia perguntar então qual é a razão de nossa indiferença.
Essa razão tem raiz na indiferença maldita do homem moderno, por tudo que não é ele próprio. Quer dizer, nós há pouco tempo vimos dois povos afundar num mar de desditas e de infelicidades e de perigos para a alma, possibilidade de apostasias: o povo do Vietnã e povo do Cambodge. Nós vimos depois Portugal ser lançado ao que o senhor viu. Nós lemos hoje cedo nos jornais as atrocidades praticadas em Luanda. E as pessoas não ligam, não prestam atenção, não se incomodam…
Por quê? Porque só se incomodam consigo, só se preocupam com suas coisinhas. E, castigo mais grave, mais terrível, preocupam-se consigo quanto às bagatelas. Dos seus verdadeiros interesses sérios as pessoas não cuidam. Cuidam da bagatelinhas da vida de todos os dias. E com isso que perdem distância psíquica, ficam nervosos e tudo mais.
Agora, quais são os sintomas disso?
Por exemplo, um caso que me contaram, numa dessas estradas que conduzem de São Paulo ao interior (estrada Anhanguera, ou Castelo Branco). Uma senhora – não eu; se fosse eu, eu não o contaria – sofreu um desastre de automóvel e estava toda ensanguentada. Passa rápido um automóvel, e as pessoas que acompanhavam a senhora detém o automóvel. O automóvel pára. Diz: o que é? Diz: é uma senhora que está aqui, toda ferida, ensanguentada, nós queríamos levar num hospital da cidade mais próxima. O senhor consentiria em colocar a senhora aí dentro? A resposta foi: não pode, vai sujar de sangue o meu estofamento que é novo.
Quer dizer, o que dizer de uma coisa dessas?… Quer dizer, qual é o grau dessa indiferença, qual é o castigo que se deveria dar a uma pessoa que mostra essa indiferença?
Pois bem, todos os jornais há algum tempo, se minha memória não me engana, há dois ou três anos atrás, deram notícia de um fato pior ainda ocorrido nos Estados Unidos. Num arranha-céu houve num dos andares um crime de um homem que matava uma mulher, com luzes acesas e com as janelas abertas. No prédio de arranha-céu fronteiriço todo mundo se acordou para olhar o crime, e ninguém chamou a polícia… Um simples telefonema: faça favor, num prédio tal, número tanto, estão matando uma mulher. Esse simples telefonema ninguém deu. Ficaram todos olhando até a pessoa melhor. Morreu. Fecharam as janelas e foram dormir…
Quer dizer, não estavam olhando de pena. Estavam olhando como quem vê um espetáculo, embora fosse uma coisa real, é como quem assiste uma fita de cinema. Acabou-se. Indiferença completa!
O senhor vai examinar uma por uma as pessoas que procederam assim e eu lhe garanto que a respeito de seus pequenos interesses eram verdadeiras feras. Alguém que simplesmente tirasse um travesseiro com que a pessoa ia dormir, a pessoa faria um barulho. Por quê? Porque está sem travesseiro para pôr a cabeça… Mas que a outra em frente tenha sido morta, pouco incomoda! Porque se incomoda tão desafiveladamente com o travesseiro e com mil outras coisas do gênero, que não tem espaço de alma para se incomodar com outra coisa. É ali. É no duro!
Como fazer cessar?
É evidentemente habituando-se a uma série de pequenas rejeições, a uma série de domínios sobre si numa porção de pontos. É por esta forma que a pessoa acaba criando condições preliminares para se dominar, e para tomar um amor a Deus apresentável.
Está claro, meu caro?
Bom, vamos então encerrar.

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