Santo do Dia, 2 de julho de 1963
A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
Visitação (por Giotto)
A festa da Visitação de Nossa Senhora está muito relacionada com o Magnificat, por Ela entoado nessa ocasião.
Farei um breve comentário a respeito, satisfazendo um pedido que me foi dirigido e em homenagem a essa festa.
O Magnificat me parece uma obra-prima de raciocínio e mostra bem qual é o espírito de Nossa Senhora, ou seja qual a estruturação lógica de Seu espírito. Mostra-nos também como no maior transporte de alegria e entusiasmo, Ela conserva uma estrutura racional naquilo que diz que verdadeiramente impressiona.
É interessante notar como Maria Santíssima decidiu louvar os atributos de Deus, em função sobretudo do poder e da grandeza divinos.
Isto é muito pouco próprio daquilo que convencionamos chamar “heresia branca” (*), a qual, em vez de dar o devido realce ao que diz respeito à grandeza de Deus, apenas salienta o que se refere à misericórdia de Deus.
É óbvio que se deve louvar a misericórdia divina e eternamente. É claro que sem ela não seríamos nada. Mas também não se deve ser unilateral e encarar exclusivamente Sua misericórdia, como igualmente não se deve ter em vista apenas Sua grandeza. É preciso ter em vista uma coisa e outra.
É isso que se nota no Magnificat, que canta a grandeza, mas descreve também a misericórdia como uma das manifestações da grandeza de Deus.
Focalizo, então, um comentário do Magnificat a respeito desses aspectos: 1) um cântico eminentemente racional e estruturado, que é uma verdadeira tese. Contrário, portanto, à “heresia branca” que se move apenas por emoções; 2) um cântico onde a consideração da grandeza de Deus é a nota dominante, embora com uma referência das mais ardentes à misericórdia divina.
Um canto de oposição às unilateralidades dulçorosas da “heresia branca”
Vejam o caráter de tese que tem o Magnificat. Os dois primeiros versos são a tese:
A minha alma engrandece o Senhor; e o meu espírito se alegrou em extremo em Deus, meu Salvador.
O demais são motivos. Primeiro motivo:
Por Ele ter posto os olhos na baixeza de sua escrava, porque eis que de hoje em diante me chamarão bem-aventurada todas as gerações.
Aqui está uma manifestação do poder de Deus. Outra razão:
Porque me fez grandes coisas O que é poderoso, e santo é seu nome.
Ele fez nEla grandes coisas e essas grandes coisas manifestam a grandeza dEle; e Ela então engrandece o Senhor. Outra razão:
Sua misericórdia se estende de geração em geração sobre os que O temem.
Então, porque Ele fez isto e porque Sua misericórdia se estende de geração em geração. É outra manifestação de Sua grandeza, de Sua enorme misericórdia, que se estende de geração em geração sobre os que O temem.
Notem que é só sobre aqueles que têm temor de Deus, que possuem, portanto, o senso da grandeza de Deus e que diante dessa grandeza sentem temor. Esse temor é o temor reverencial, o temor do reconhecimento da grandeza, da santidade e da bondade de Deus.
O verso seguinte ainda é um argumento para cantar a grandeza de Deus:
Manifestou o poder de seu braço; dissipou os que no seu coração, formavam altivos pensamentos.
Deus grande, não em relação aos que O temem, mas em relação aos que não O temem. Em relação a esses manifestou o poder de Seu braço e dispersou os homens maus, no fundo do coração dos quais se formavam pensamentos orgulhosos. Deus é grande na Sua capacidade de ferir aqueles que não O temem. Manifesta-se aqui a grandeza da cólera de Deus, depois de se ter cantado a grandeza da misericórdia de Deus.
Os senhores vêem como isso é equilibrado, como mostra Deus em todos Seus aspectos e sempre grande em tudo. Como isso é diverso das unilateralidades meladas da “heresia branca”, que só considera Deus sob o aspecto da misericórdia, da condescendência, abstraindo a manifestação de Sua grandeza.
E como tudo isto é raciocinado! É uma tese e segue depois, ponto por ponto, os argumentos da tese.
Noção verdadeira de humildade
Outra razão:
Ele depôs do trono os poderosos e elevou os humildes.
Depor do trono os poderosos não é, evidentemente, tomar um homem que está no trono e que tem poder, para destroná-lo e depois colocar os humildes no lugar dele… Seria uma bobagem, porque esses humildes se teriam tornado poderosos e seria preciso derrubá-los também. Se o verso fosse assim: “Ele depôs do trono os poderosos e fez com que todos fossem iguais”, teria um mau sentido, mas teria um sentido. Mas essa forma de roda gigante, exaltando os humildes e depondo os poderosos, para depois ter que depor os humildes que ficaram poderosos, é absurda. É evidente que não é assim que isso deve ser entendido.
O que significa poderoso e humilde? O humilde é o que faz como Nossa Senhora neste cântico, ou seja atribui tudo a Deus, reconhece que Deus é a origem de todo o bem, a fonte de todo o poder e que sem seu concurso nada podemos na ordem sobrenatural e também na ordem natural. Ele é o centro de todas as coisas e o Senhor que manda em tudo. Humildes, por exemplo, eram os poderosos de quem Ela descendia e de quem também descendia Nosso Senhor. Assim, o rei Davi, que foi um poderoso e que morreu no seu poder, era humilde porque reconhecia tudo isso.
O poderoso ao qual se refere no Magnificat é quem não reconhece isso, pensa que tem poder independente do concurso divino. Então, Deus depôs os poderosos e elevou os humildes. Aqui está a manifestação do poder de Deus rindo de todo poder humano. Dá poder a um humilde e este fica poderoso; tira todo o poder a um homem orgulhoso que só confia em si e este fica reduzido a nada… É a grandeza de Deus, perto da qual todas as grandezas humanas não são absolutamente nada.
E continua:
Encheu de bens os que tinham fome e despediu vazios os que eram ricos.
Aqueles que eram pobres, ou seja os que são pobres de espírito, os que têm fome e sede de justiça, encheu de bens. Os que não têm fome e sede de justiça, que são apegados aos bens da terra, despediu empobrecidos. Quer dizer, os ricos nada são para Ele. Deus faz dos ricos, pobres; e dos pobres, ricos, conforme entenda.
Mais uma manifestação da grandeza de Deus: a proteção que dá ao povo eleito:
Tomou debaixo de sua proteção Israel, seu servo, lembrado de sua misericórdia, assim como havia prometido a nossos pais, a Abraão e à sua posteridade para sempre.
Quer dizer, naquilo que promete é grande, cumpre sua aliança até o fim.
Nossa Senhora, Sede da Sabedoria: exemplo de ponderação em tudo quanto reflete e diz
Os senhores observem como o Magnificat é uma tese, seguida de todos os argumentos até o final e como canta muito equilibradamente a grandeza e a misericórdia de Deus: a grandeza de Deus em Sua misericórdia; a grandeza de Deus em sua justiça; o vácuo de todos os homens diante de Deus; e o domínio de Deus sobre todo o universo. É o hino triunfal à grandeza de Deus.
No momento em que Santa Isabel falou a Nossa Senhora, glorificando-A, Ela mostrou que se considerava nada diante dessa grandeza infinita de Deus, que Ela cantou de modo excelente, com um fogo e um sentimento extraordinários! Mas sobretudo com equilíbrio, numa construção absolutamente racional, que poderia ser comparada a uma construção da Suma Teológica de São Tomás, de tal maneira é articulada, refletida profundamente. E isto Ela compôs sob inspiração do Espírito Santo, quando foi saudada por Santa Isabel. Aí os senhores têm o espírito de Nossa Senhora.
Nas poucas palavras ditas por Nossa Senhora e que se registram no Evangelho, esta nota racional se encontra presente. Por exemplo, quando recebeu o anúncio de que deveria ser a mãe do Salvador, Ela respondeu com uma objeção de caráter eminentemente racional: Como pode ser isto, pois tenho um voto de virgindade? – O Anjo deu-Lhe a explicação e Ela, quase com um silogismo, responde: “Eis aqui a escrava do Senhor, (portanto) faça-se em mim segundo a sua palavra”. É uma atitude conseqüente. Ela enuncia um princípio e apresenta a conclusão que dele deduz.
Outra passagem é quando encontrou o Menino Jesus no templo. A pergunta pede uma explicação, é uma pergunta cheia de aflição, cheia de angústia: “Meu Filho, por que fizeste isto conosco? Teu pai e eu te procurávamos aflitos”.
Compreendemos assim como a alma católica é plena de razão, de pensamento, é plena de densidade em tudo quanto diz e faz.
Nossa Senhora, sede da sabedoria representa assim o exemplo da razoabilidade, o exemplo da ponderação, o exemplo da medida em tudo que se pensa e se diz.
Podem analisar o Magnificat e notarão que nele não há uma palavra que esteja a mais, não há um pensamento que não esteja colocado no devido lugar. É uma jóia perfeita, em que cada pedra está colocada em seu corte para dar uma idéia global do conjunto.
Acima, condecoração da Grande Ordem do Tosão de Ouro, realizada por Ambrosio Gottlieb Pollet em 1790. Lisboa, Palácio Nacional da Ajuda. Está composta de 400 diamantes, o maior dos quais pesa 31,50 quilates. Trata-se de uma das mais extraordinárias jóias históricas conservadas até nossos dias
“O Magnificat é uma jóia perfeita”
Aí temos o espírito de Nossa Senhora, tão diferente da bobeira, dos sentimentalismos fátuos, dos entusiasmos vazios próprios à “heresia branca”.
O Magnificat é um cântico que nasce da razão. Não nasce de uma exacerbação do sentimento, nem de um movimento irrefletido, que se atira.
E assim compreendemos de um modo descritivo aquilo que sabemos de outra maneira sobre Nossa Senhora: Ela é a Sede da Sabedoria.
Através do Magnificat se conhece a escola de vida espiritual segundo o exemplo de Nossa Senhora
Compreende-se, assim, o que é ter o espírito de Maria e ser escravo de Maria. É procurar ter essa sabedoria, essa ponderação, essa grande estruturação de raciocínios, de idéias, de pensamentos, como couber em nosso nível intelectual, mas procurando fazer tudo razoavelmente, com a razão dominada pela fé e com o sentimento servindo de escravo à razão. De maneira que ele vibra quando a razão manda e cessa de vibrar quando a razão se opõe. E se em certo momento o sentimento não vibra com a razão, é esta que vence e não o sentimento.
Os senhores têm aí uma escola de vida espiritual na imitação de Nossa Senhora. E isso atestado por Sua principal composição que vem a ser precisamente o Magnificat.
A propósito da Visitação gostaria de lembrar um outro ponto: quando Nossa Senhora falou, São João Batista, no seio de Santa Isabel, ouviu a voz dEla e exultou de gáudio. Que alegria santa sentimos quando escutamos a palavra de Nossa Senhora em nossos corações?
Vamos pedir à Maria Santíssima que, ao par das provações que nos concede, obtenha-nos também, com as graças alcançadas na festa de hoje, uma dessas palavras interiores em que se exulta de gáudio e se tem coragem para carregar todas as cruzes e ânimo para chegar até o fim da vida sofrendo por Ela.
(*) “Heresia branca”: expressão utilizada pelo Prof. Plinio no sentido de “atitude sentimental que se manifesta sobretudo em certo tipo de piedade adocicada e uma posição doutrinal relativista que procura justificar-se sob o pretexto de uma pretensa ‘caridade’ para com o próximo” – cfr. “O Cruzado do século XX – Plinio Corrêa de Oliveira”, Roberto de Mattei, Ed. Civilização, Porto, 1998, tópico 7).