INTRODUÇÃO – Carta Pastoral sobre Problemas do Apostolado Moderno

blank

Escudo episcopal de Dom Antonio de Castro Mayer

 

D. ANTONIO DE CASTRO MAYER

Por Mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica, Bispo de Campos

Ao Revdo. Clero Secular e Regular,

Saudação, paz e bênçãos em Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Amados Filhos e zelosos Cooperadores.

De todos os deveres que incumbem ao Bispo, nenhum sobreleva em importância o de ministrar às ovelhas que lhe foram confiadas pelo Espírito Santo o pábulo salutar da verdade revelada.

Esta obrigação urge de modo particular em nossos dias. Pois a imensa crise em que o mundo se debate resulta em última análise do fato de que os pensamentos e as ações dos homens se dissociaram dos ensinamentos e das normas traçadas pela Igreja; e só pelo retôrno da humanidade à verdadeira Fé, poderá esta crise encontrar solução.

Importa pois, mo mais alto grau, lançar unidas e disciplinadas, tôdas as fôrças católicas, todo o exército pacífico de Cristo Rei, na conquista dos povos que gemem nas sombras da morte, iludidos pela heresia ou pelo cisma, pelas superstições da gentilidade antiga, ou pelos múltiplos ídolos do neo-paganismo moderno.

Para que esta ofensiva geral, tão desejada pelos Pontífices, seja eficaz e vitoriosa, cumpre que as próprias fôrças católicas permaneçam incontaminadas dos erros que devem combater. A preservação da Fé entre os filhos da Igreja é pois medida necessária e de suma importância para a implantação do Reino de Cristo na terra.

A História nos ensina que a tentação contra a Fé, sempre a mesma em seus elementos essenciais, se apresenta em cada época com aspecto novo. O arianismo, por exemplo, que tanta fôrça de sedução exerceu no século N, teria interessado pouco o europeu frívolo e voltairiano do século XVIII. E o ateismo declarado e radical do século XIX teria fracas possibilidades de êxito ao tempo de Wiclef e João Huss.

Em cada geração, ademais, a tentação contra a Fé soe agir com intensidade diversa. A uma, consegue arrastar inteiramente para a heresia. A outra, sem a tirar formal e declaradamente do grêmio amoroso da Igreja, insufla-lhe o seu espírito, de sorte que, em não poucos católicos que recitam corretamente os formulários da Fé, e julgam – por vêzes sinceramente – dar uma adesão irrestrita aos documentos do magistério eclesiástico, o coração bate ao influxo de doutrinas que a Igreja condenou. É êste um fato de experiência corrente. Quantas vêzes observamos em tôrno de nós católicos ciosos de sua condição de filhos da Igreja, que não perdem ocasião de proclamar sua Fé, e que entretanto, no modo de considerar as idéias, os costumes, os acontecimentos, tudo enfim que a imprensa; o cinema, o rádio e a televisão diariamente divulgam, em nada se diferenciam dos céticos, dos agnósticos, dos indiferentes! Recitam corretamente o “Credo” e no momento da oração se mostram católicos irrepreensíveis; mas o espírito que, conscientemente ou não, os anima em tôdas as circunstâncias da vida é agnóstico, naturalista, liberal.

Como é óbvio, trata-se de almas divididas por tendências contrárias. De um lado, experimentam em si a sedução do ambiente do século. De outro, guardam ainda, talvez de herança familiar, algo do brilho puro, invariável, inextinguível, da doutrina católica. E como todo o estado de divisão interior é anti-natural ao homem, essas almas procuram restabelecer a unidade e a paz dentro de si amalgamando num só corpo de doutrina os erros que admiram e as verdades com que não querem romper.

Esta tendência a conciliar os extremos inconciliáveis, de encontrar uma linha média entre a verdade e o êrro, se manifestou desde os primórdios da Igreja. Já o Divino Salvador advertiu contra ela os Apóstolos: “Ninguém pode servir a dois senhores” (Mt. 6, 24). Condenado o arianismo, essa tendência deu origem ao semi arianismo.. Condenado o pelagianismo, ela engendrou o semi-pelagianismo. Fulminado em Trento o protestantismo, suscitou o jansenismo. E dela nasceu igualmente o modernismo condenado pela Beato Pio X, monstruosa confluência do ateismo, do racionalismo, do evolucionismo, do panteismo, em uma escola apostada em apunhalar traiçoeiramente a Igreja. A seita modernista tinha por objetivo, permanecendo dentro dela, falsear-lhe por argúcias, sub-entendidos e reservas a verdadeira doutrina, que exteriormente fingia aceitar.

Esta tendência não cessou ainda; pode-se mesmo dizer que ela faz parte da História da Igreja. É o que se deduz destas palavras do Soberano Pontífice gloriosamente reinante, em discurso aos pregadores quaresmais de Roma em 1944: “Um fato, que sempre se repete na História da Igreja, é que quando a Fé e a Moral cristã se chocam contra fortes correntes contrarias de erros, ou apetites viciados, surgem tentativas com intuito de vencer as dificuldades mediante algum compromisso comodo, ou então de se esquivar delas ou fechar-lhes os olhos” (A.A.S. 36, p. 73).

* * *

Que alerteis a vossos paroquianos contra o espiritismo, o protestantismo, o ateismo, amados Filhos e diletos Cooperadores, ninguém o poderá estranhar. Nesta Carta Pastoral, porém, concitamo-vos a denunciar as opiniões que entre os próprios católicos corrompem, não raras vêzes, a integridade da Fé. Sereis neste ponto igualmente bem compreendidos?

A muitos, mesmo dentre os mais piedosos, parecerá que perdeis vosso tempo, pois difícil lhes será entender como vos consumis em esmerar a Fé em alguns que, bem ou mal, já a possuem, quando melhor seria que vos empenhasseis na conversão de outros que jazem fora da Igreja, à espera de vosso apostolado. Parecer-lhes-á que encheis de tesouros supérfluos a quem já é rico, enquanto deixais sem pão a quem morre à mingua:

A outros se afigurará que sois imprudentes; pois já sendo tão meritória a profissão de católico em um século de tal maneira hostil, correis o risco de perder até os melhores, se vos não contentais com uma tal ou qual adesão às linhas gerais da Fé, sem sobrecarregardes o fiel com minúcias irritantes.

É de tôda a importância, diletos Filhos e caríssimos Cooperadores, que preliminarmente esclareçais os vossos paroquianos sôbre estas duas objeções.  Pois, do contrário, vossa ação será pouco eficaz e, pela desgraça dos tempos em que vivemos, vosso zêlo será mal compreendido. Não faltará quem veja nêle, não o movimento natural da Igreja, que por seus meios oficiais e normais exclue de si, como organismo vivo que é, qualquer corpo estranho, mas a ação ininteligente e obstinada de paladinos exaltados.

Assim, antes de tudo, mostrai que, por sua própria natureza, a Fé não se contenta com o que alguém chamasse suas linhas gerais, mas exige a integridade, a plenitude de si mesma.

Para vos fazerdes entender, exemplificai com a virtude da castidade. A respeito dela, qualquer concessão toma o caráter de escura nódoa, e qualquer imprudência a põe em risco tôda inteira. Houve quem comparasse a alma pura a uma pessoa de pé sobre uma esfera: enquanto se conserva na posição de equilíbrio, nada terá que temer, mas qualquer imprudência a faria resvalar para o fundo do abismo. E por isto os moralistas e autores espirituais são unânimes quando afirmam que a condição essencial para se conservar a virtude angélica consiste numa vigilante e intransigente prudência.

Precisamente o mesmo se pode dizer em matéria de Fé. Desde que o católico se coloque no ponto de equilíbrio perfeito, sua perseverança será segura e fácil. Este ponto de equilíbrio, porém, não consiste na aceitação de umas quaisquer linhas gerais da Fé, mas na profissão de toda a doutrina da Igreja, profissão feita não apenas com os lábios mas com toda a alma, envolvendo a aceitação leal e coerente não só do que o Magistério lhe ensina, mas ainda de tôdas as consequências lógicas deste ensinamento. Para isto se faz mister que o fiel possua aquela Fé viva pela qual é capaz de humilhar sua razão privada diante do Magistério Infalível, de discernir com penetração tudo aquilo que direta ou indiretamente colide com o ensinamento da Igreja. Mas, se abandonar por pouco que seja esta posição de perfeito equilíbrio, começará a sentir a atração do abismo. É, pois, movido pela prudência, e no interêsse do rebanho a Nós confiado, que vos dirigimos, amados Filhos, esta Carta Pastoral sôbre a integridade da Fé.

A este respeito, cumpre acentuar ainda um ponto, nem sempre lembrado, da doutrina da Igreja. Não se pense que uma Fé assim tão esclarecida e robusta seja privilégio dos doutos, de tal sorte que só a estes se pudesse recomendar a situação de equilíbrio ideal que acima descrevemos. A Fé é uma virtude, e na Santa Igreja as virtudes são accessíveis a todos os fiéis, ignorantes ou doutos, ricos ou pobres, mestres ou discípulos. Prova-o a hagiografia cristã. Santa Joana D’Arc, pastorinha ignorante de Donremy, confundia seus juizes, pela sagacidade com que respondia às argúcias teológicas de que se utilizavam para induzi-la em proposições erradas, e assim justificar sua condenação à morte. São Clemente Maria Hofbauer, no século XIX, humilde trabalhador manual que assistia, por gôsto, às aulas de teologia da ilustre Universidade de Viena, discernia em um de seus mestres o fermento maldito do jansenismo, que escapava à percepção de todos os seus discípulos e dos outros professores. “Graças Vos dou, Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondestes estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelastes aos pequeninos” (Luc. 10, 21). Para termos um povo firme e consequente na sua Fé, não é necessário que o façamos um povo de teólogos. Basta que cada qual ame entranhadamente a Igreja, se instrua nas verdades reveladas em proporção do seu nível de cultura geral, e possua as virtudes de pureza e humildade necessárias para verdadeiramente crer, entender e saborear as coisas de Deus. Do mesmo modo, para termos um povo verdadeiramente puro não é necessário fazer de cada fiel um moralista. Bastam os princípios fundamentais, e os conhecimentos básicos para a vida corrente, ditados, em grande parte, pela consciência cristã bem formada. Por isto vemos, muitas vêzes, pessoas ignorantes, com critério, prudência e elevação de alma maiores que muitos moralistas de consumado saber.

O que acabamos de dizer da perseverança de uma pessoa, aplica-se igualmente à perseverança dos povos. Quando a população de uma diocese possue a integridade do espírito católico, está em condições de enfrentar, auxiliada pela graça de Deus, os vagalhões da impiedade. Mas, se a não possui, se nem sequer as pessoas habitualmente tidas por piedosas prezam e procuram esta integridade, o que esperar de uma tal população?

Lendo a História, não se compreende como certos povos dotados de uma Hierarquia numerosa e culta, de um Clero douto e influente, de instituições de ensino e caridade ilustres e ricas, como a Suécia, a Noruega, a Dinamarca no século XVI, puderam resvalar, de um momento para outro, da profissão plena e tranquila da Fé católica, para a heresia aberta e formal, e isto quase sem resistência, a bem dizer quase imperceptivelmente. Qual a razão de tamanho desastre? Quando a Fé veio a ruir nestes países, já não passava, na generalidade das almas, de formulações exteriores, repetidas sem amor, sem convicção. Um simples capricho régio portanto bastou para abater a árvore frondosa e secular. A seiva já não circulava, de há muito, na fronde nem no tronco. Já não havia nessas regiões o espírito de Fé.

Foi o que compreendeu com angélica lucidez o Beato Pio X, em sua luta vigorosa contra o modernismo. Pastor clementíssimo, iluminou a Igreja de Deus pelo brilho suave de sua celeste mansidão. Não trepidou, entretanto, em denunciar os autores do êrro modernista dentro da Igreja e aponta-los à execração dos bons, com estas veementes palavras: “Não se afastará da verdade quem os tiver (aos modernistas) como os mais perigosos inimigos da Igreja” (enc. “Pascendi”).

Podemos aquilatar quanto doeu ao dulcíssimo Pontífice o emprego de tanta energia. Mas os seus contemporâneos não duvidaram em reconhecer que êle prestara com isto insigne serviço à Igreja. A este respeito o grande Cardeal Mercier afirmou que, se ao tempo de Lutero e Calvino, a Igreja tivera contado com Papas da têmpera de Pio X, é de se duvidar que a heresia protestante tivesse conseguido desligar da verdadeira Igreja uma terça parte da Europa (cfr. Card. Merry del Val: “Memorias del Papa Pio X” – Atenas S.A., Madrid, 1946 – p. 51). Por todos estes motivos, amados Cooperadores, vede como é importante cuidar com o maior zêlo, de manter na plenitude da Fé, e do espírito de Fé, os filhos da Santa Igreja.

* * *

Mostrai também quanto se enganam os que supõem que o tempo e os esforços empregados em esmerar na Fé os fiéis são, por assim dizer, roubados aos infiéis. Antes de tudo, por vosso exemplo e vossas palavras, podeis provar que uma atividade de nenhum modo é incompatível com a outra: “opportet haec facere et illa non omittere”. Ademais, a integridade da Fé produz nos católicos tantos frutos de virtude e torna tão vivo na Igreja o bom odor de Jesus Cristo, que atrai eficazmente para ela os infiéis, pelo que o bem feito aos filhos da Igreja aproveitará forçosamente aos que estão fora do redil. Por fim, um dos frutos do fervor na Fé será necessariamente o zêlo apostólico. Multiplicar os apóstolos, o que é senão beneficiar os infiéis?

Assim, pois, não podemos aceitar esta dissociação entre o tempo consagrado aos fiéis e aos infiéis; como se nosso divino Salvador, ao formar os apóstolos e discípulos, estivesse beneficiando um grupo de privilegiados, descuidoso da salvação do resto da humanidade.

* * *

Anime-vos a assim proceder, o exemplo luminoso do Vigário de Cristo. Nenhum Papa, talvez, tenha tido que enfrentar tantos e tão poderosos inimigos, fora da Igreja.

Contudo, não tem ele descuidado dos “erros que serpeiam entre os fiéis” (Enc. “Mystici Corporis”, A.A.S. 35, p – 197) e contra êles nos tem premunido numa série de documentos, como a Encíclica “Mediator Dei”, a Constituição Apostólica “Bis Saeculari Die”, a Encíclica “Humani Generis”, e mais recentemente a Alocução às Religiosas (cfr. “Catolicismo” n.° 23, novembro de 1952) em que responsabiliza, em larga medida, pelo decréscimo das vocações, certos escritores católicos, eclesiásticos e leigos, que falseiam a doutrina da Igreja quanto à preeminência do celibato sobre o estado matrimonial. E mais particularmente quanto ao Brasil, o zêlo da Santa Sé com relação aos problemas internos da Igreja bem se evidencia na Carta da Sagrada Congregação dos Seminários e das Universidades, cuja leitura atenta muito recomendamos (A.A.S. 42, p. 836 ss.).

Esforçando-vos por manter entre os fiéis o espírito tradicional da Santa Igreja, deveis velar por que ele não se desvie de seu legítimo sentido. Na presente Pastoral consideramos os extremos do espírito de conciliação com os erros de nossa época. A esta má tendência pode opor-se um êrro simétrico e contrário. Importa mostrar qual seja.

Não receiamos propriamente o exagêro do espirito tradicional. Com efeito, este espírito é um dos elementos essenciais da mentalidade católica, do que acertadamente se chama o senso católico. Ora, o senso católico é em si mesmo a excelência da virtude da Fé. Receiar que alguém tenha demasiado senso católico é receiar que tenha uma Fé demasiadamente excelente. O que cumpre evitar é que este espírito de Fé seja mal entendido, resultando mais em um apego á mera forma, à mera aparência, ao mero rito do que ao espírito que anima e explica a forma, a aparência e o rito. Exageros desta natureza são possíveis, porém não merecem em vossa vigilância um lugar tão saliente quanto a propensão exagerada ao novo, a aversão sistemática ao tradicional. É o que sabiamente fez sentir a Sagrada Congregação dos Seminários em sua Carta ao Episcopado Brasileiro: “O perigo mais urgente hoje, não é o de um apego demasiadamente rígido e exclusivo à tradição, mas principalmente o de um gosto exagerado e pouco prudente por toda e qualquer novidade que apareça” (A.A.S. 42, p. 837). E a Sagrada Congregação acrescenta com clarividência: “É certamente ao snobismo das novidades que se deve o pulular de erros ocultos sob uma aparência de verdade e, mui freqüentemente, com uma terminologia pretenciosa e obscura” (Ibd. pag. 839).

Um exemplo de má compreensão do espírito de tradição pode apontar-se no arcaismo a que alude o Santo Padre Pio XII na Encíclica “Mediator Dei”. Por um apego excessivo ao rito e à forma antigos, só porque antigos, certos liturgicistas pretendem restaurar o altar em forma de mesa e outras práticas da Igreja primitiva (cfr. A.A.S. 39, p. 545). Como se ao longo da História o espírito da Igreja não se pudesse ir exprimindo em novas formas e novos ritos, acomodados às diversidades dos tempos e dos lugares.

Os extremos se tocam e os exageros mais opostos entre si facilmente se coligam contra a verdade. O perigo deste espírito tradicional mal entendido encontra-lo-eis o mais das vêzes nos próprios fautores de novidades, como Lutero, Jansênio, os promotores do falso Concílio de Pistóia e, ainda neste século, os modernistas.

* * *

Explicai bem, amados Cooperadores, aos fiéis sob vossa guarda a gênese destes erros. De um lado nascem eles da própria fraqueza da natureza humana decaída. A sensualidade e o orgulho suscitaram sempre e suscitarão até o fim dos séculos a revolta de certos filhos da Igreja contra a doutrina e o espírito de N. S. Jesus Cristo. Já S. Paulo advertia os primeiros cristãos contra os que, do meio deles mesmos, iriam “surgir para proferir doutrinas perversas, com intento de levar após si os discípulos” (Atos, 20, 30), “faladores vãos e sedutores” (Tito, 1, 10) “que progredirão de mal a pior, errando e levando outros aos erros” (II Tim. 5, 13).

Alguns parecem pensar que nestes últimos séculos o progresso da Igreja é tal que já não se deve temer que irrompam dentro dela as crises suscitadas pelo orgulho e pela luxúria. Entretanto, para não recorrer senão a exemplos muito recentes, o Bemaventurado Pio X declarou na Encíclica “Pascendi” que fautores de revolta, como estes de que falamos, não só eram frequentes então, mas se tornariam mais frequentes à medida que se caminhasse para o fim dos tempos. E, com efeito, na Encíclica “Humani Generis” o Santo Padre Pio XII Imanta que “não faltam hoje os que, como nos tempos apostólicos, amando a novidade mais do que seria lícito e também temendo que os tenham por ignorantes dos progressos das ciências, intentam subtrair- se à direção do Magistério Sagrado e, por esse motivo, acham-se no perigo de afastar- se insensivelmente da verdade revelada e de fazer cair a outros consigo no erro” (A.A.S. 42, p. 564).

Esta a gênese natural dos erros e das crises de que nos ocupamos. Cumpre, porém, não considerar apenas as deficiências da natureza decaída mas também a ação do demônio. A este foi dado até o fim dos séculos o poder de tentar os homens em todas as virtudes e, portanto, também na virtude da Fé, que é o próprio fundamento da vida sobrenatural. Assim, é óbvio que até a consumação dos séculos a Igreja estará exposta a surtos internos do espírito de heresia, e não há progresso que, por assim dizer, a imunize de modo definitivo contra este mal. Quanto se empenha o demônio em produzir tais crises, é supérfluo mostra-lo. Ora, o aliado que ele consegue implantar dentro das hostes fiéis é seu mais precioso instrumento de combate. A experiência de nossos dias mostra que a quinta coluna excede em eficácia os mais terríveis armamentos. Formado nos meios católicos o tumor revolucionário, as forças se dividem, as energias que deveriam ser empregadas inteiramente na luta contra o inimigo externo se exaurem em discussões entre irmãos. E se para evitar tais discussões os bons fazem cessar a oposição, maior é o triunfo do inferno que pode no interior mesmo da Cidade de Deus, implantar o seu estandarte e desenvolver rápida e facilmente suas conquistas.

Se o inferno deixasse de tentar em certa época manobra tão lucrativa, seria o caso de dizer que nessa época o demônio teria deixado de existir.

Esta a dupla gênese natural e preternatural, das crises internas da Igreja.

* * *

Como vedes, estas duas causas são perpétuas, e, pois, perpétuo será seu efeito. Em outros têrmos, a Igreja terá que sofrer sempre a investida interna do espírito das trevas.

Para esclarecimento de vosso apostolado importa lembrar as táticas que êle adota. Afim de que sua ação se conserve interna cumpre que seja disfarçada. O embuste é a regra fundamental de quem age às ocultas no campo do adversário. O demônio insufla pois, para chegar ao seu fim, um espírito de confusão que seduz as almas a professar o êrro habilmente dissimulado em aparências de verdade. Não procureis, nesta luta, que o adversário emita sentenças claramente contrárias a verdades já definidas. Ele só o fará quando se julgar inteiramente senhor do terreno. O mais das vezes fará “pulular erros ocultos sob uma aparência de verdade… com uma terminologia pretenciosa e obscura” (Carta da Sagrada Congregação dos Seminários aos Bispos do Brasil, A.A.S. 42, p. 839). E a maneira de propagar este pulular de erros será ela mesma velada e insidiosa. O Santo Padre Pio XII assim a descreve: “Os que, ou por repreensível desejo de novidade, ou por algum motivo louvável, propugnam essas novas opiniões, nem sempre as propõem com a mesma intensidade, nem com a mesma clareza, nem com idênticos têrmos, nem sempre com unanimidade de pareceres; o que hoje ensinam, alguns mais encobertamente, com certas cautelas e distinções, outros mais audazes propalarão amanhã abertamente e sem limitações, com escândalo de muitos, em especial do Clero jovem, e com detrimento da autoridade eclesiástica. Mais cautelosamente é costume tratar dessas matérias nos livros que são postos à publicidade; já com maior liberdade se fala nos folhetos distribuídos privadamente e nas conferências e reuniões. E não se divulgam estas doutrinas somente entre os membros de um e outro Clero, nos seminários e institutos religiosos; mas também entre os seculares, principalmente aqueles que se dedicam ao ensino da juventude” (Enc. “Humani Generis”, A.A.S. 42, p. 565).

Assim, não vos deveis espantar se algumas vezes fordes dos poucos a discernir o erro em proposições que a muitos parecerão claras e ortodoxas, ou pelo menos confusas mas suscetíveis de boa interpretação. Ou se vos encontrardes diante de certos ambientes onde as meias tintas sejam habilmente dispostas para que se difunda o erro, mas se dificulte seu combate. A tática do adversário foi calculada precisamente para colocar nesta posição embaraçosa os que se lhe opõem. Com isto, ele atrairá por vezes contra vós até a antipatia de pessoas que não tem a menor intenção de favorecer o mal. Taxar-vos-ão de visionários, de fanáticos, talvez de caluniadores. Não foi precisamente o que disseram na França contra o Beato Pio X os pertinazes glorificadores do “Sillon” e de Marc Sangnier? De medo destas críticas, recuareis diante do Adversário, deixareis abertas as portas da Cidade de Deus?

Por certo deveis evitar com cuidado, aos olhos de Deus, qualquer exagêro, qualquer precipitação, qualquer juizo infundado. Mas deveis igualmente clamar sempre que o adversário, oculto sob a pele de ovelha, se apresente diante de vós, não lhe cedendo uma polegada de terreno pelo medo de que ele vos impute excessos de que vossa consciência não vos acusa.

Assim agindo, obedecereis às expressas intenções do Santo Padre. Em todos os documentos que tem publicado a propósito do assunto, o Pontífice gloriosamente reinante vem recomendando aos Bispos e aos Sacerdotes de todo o orbe que instruam diligentemente os fiéis a fim de que não se deixem iludir pelos erros velados que circulam entre êles.

A doutrinação desejada pelo Santo Padre tanto há de ser preventiva quanto repressiva. Não julgue um Sacerdote em cuja paróquia o erro pareça não ter penetrado, que está dispensado de agir. Dado o disfarce em que estes erros se envolvem, dados os processos de difusão, por vezes quase impalpáveis, de que se servem os seus fautores, poucos são os Vigários que podem ter a certeza de que todas as suas ovelhas estão imunes.

Ademais, o bom pastor não se contenta com remediar, mas está gravemente obrigado a prevenir. Não sejamos como o homem de que nos fala o Evangelho, o qual dormia enquanto o inimigo semeava a sizania no meio do seu trigo. A simples obrigação de prevenir justificaria os esforços que empenhareis neste sentido.

Os erros de que nos ocupamos terão talvez intensidade maior em um país, menor em outro. Contudo, sua difusão no orbe católico já é bastante larga para que o Santo Padre deles tenha cuidado em documentos dirigidos, não em particular a esta ou aquela nação, mas aos Bispos do mundo inteiro.

Ora, vivemos hoje num mundo sem fronteiras em que o pensamento se difunde célere pela imprensa, e sobretudo pelo rádio, até às últimas extremidades da terra.

Uma sentença falsa que seja sustentada, por exemplo, em Paris pode no mesmo dia ser ouvida e aceita nos centros mais longínquos da Austrália, da Índia ou do Brasil. E se algum pequeno lugar ainda exista em que a extrema ignorância ou o extremo atraso cria obstáculos à penetração de qualquer pensamento verdadeiro ou falso, ninguém poderia incluir neste caso os centros populosos de Nossa amadíssima Diocese, à testa das quais se encontra Nossa Cidade Episcopal, ilustre em todo o Brasil pelo valor cultural de seus filhos, pela influência decisiva que sempre se prezou de exercer no cenario político nacional.

* * *

Uma palavra agora sobre o método que adotamos. Dado que em sua Carta aos Bispos Brasileiros a Sagrada Congregação dos Seminários falou de uma “pululação de erros”, e que com efeito são êles muito numerosos, uma explanação e censura aos principais dentre eles, em forma discursiva, seria excessivamente longa. Preferimos, pois, a forma esquemática. E assim elaboramos um pequeno Catecismo das verdades mais atualmente ameaçadas, acompanhada cada qual do erro que se lhe opõe e de rápido comentário. Por mera conveniência de exposição fizemos a sentença falsa ou perigosa anteceder à sentença verdadeira. Mas vosso esforço em denunciar o erro deverá conduzir cada fiel ao conhecimento exato do verdadeiro ensinamento da Igreja. Pois só assim teremos feito obra positiva e durável.

* * *

Uma observação finalmente sobre o modo por que vêm enunciadas no Catecismo as sentenças falsas ou perigosas. Procuramos exprimi-las com a possível fidelidade, sem lhes tirar as aparências e até os fragmentos de verdade que encerram. Só assim seria útil o Catecismo, pois só assim dá a conhecer os modos de dizer em que o erro soe ocultar-se e as aparências com que procura atrair a simpatia dos bons. Pois o mais importante nesta matéria não consiste em provar que certa sentença é má, mas que certa doutrina falsa está realmente contida nesta ou naquela formulação de aparência inofensiva ou até simpática.

Por isto também repetimos diversas formulações mais ou menos equivalentes. É que se trata de atrair a vossa vigilância para as várias formulações em que o mesmo erro pode entranhar-se.

Nem sempre incluímos entre as proposições meras teses doutrinárias. Encontrareis também formuladas em proposições maneiras de agir diretamente decorrentes da doutrina falsa.

Como será fácil ver, tivemos a preocupação de seguir o conselho do Apóstolo: provar todas as coisas, e conservar o que têm de bom (cfr. I Tes. 5, 21). Por isto, em Nossas refutações, desejamos apontar em toda a sua extensão a parcela de verdade que as tendências impugnadas contêm. É que a Igreja é Mestra paciente e prudente, que condena com pesar e que considera patrimônio seu qualquer verdade, onde quer que se encontre.

Convém acentuar este ponto. As verdades aqui lembradas não são patrimônio, nem constituem propriedade de nenhuma pessoa, grupo ou corrente. A ortodoxia é um tesouro da própria Igreja, de que todos devem participar, e de que ninguém tem o monopólio. Por isto, Nossos amados Cooperadores, ao difundirem os ensinamentos que aqui se encontram, apresentem-nos sempre como são na verdade: fruto pleno e exclusivo da sabedoria da Santa Igreja.

Não é difícil perceber que estes erros, em sua generalidade, refletem em termos que se esforçam por parecer corretos, doutrinas que alcançaram a maior influência no mundo atual, e que constituem os traços típicos do neo-paganismo hodierno: o evolucionismo panteísta; o naturalismo, o laicismo, o igualitarismo absoluto, que se levanta na esfera política e social contra todas as superioridades legítimas, e na esfera religiosa visa suprimir a distinção instituída por Jesus Cristo entre Hierarquia e povo fiel, clérigos e leigos.

Estas são, amados Filhos e caríssimos Cooperadores, as proposições para as quais desejamos chamar vossa atenção.

* * *

Para maior êxito de vossa ação, fizemo-las acompanhar de diretrizes práticas que encontrareis na terceira parte desta Carta.

* * *

Em Nossa Pastoral, é claro, não tivemos a pretensão de expor toda a doutrina católica  sôbre  o  assunto,  mas  apenas  algumas  observações  mais  oportunas.

Vossa diligência, amados Filhos, completará nas fontes ao vosso alcance o que aqui não pudemos expor. De modo particular, recomendamos a leitura das Enciclicas “Pascendi”, “Mystici Corporis Christi”, “Mediator Dei”, “Humani Generis”, da Carta Apostólica “Notre charge apostolique”, da Constituição Apostólica “Bis Saeculari Die”, da Exortação ao Clero “Menti Nostrae”, e das alocuções e radiomensagens pontificias, especialmente as radiomensagens nas vésperas do Santo Natal, a Radiomensagem de 23 de março de 1952 sobre a “Moral Nova” (A.A.S. 44, p. 270 ss.

– “Catolicismo” no. 18, junho de 1952), a Radiomensagem ao Katholikentag de Viena (“Catolicismo” n.° 24, dezembro de 1952), as alocuções à Associação Católica dos Trabalhadores da Itália (A.A.S. 40, p. 331 ss.), aos delegados ao Congresso Internacional de Estudos Sociais reunido em Roma em 1950 (A.A.S. 42, p. 451 ss.), aos membros do 9.° Congresso da União Internacional das Associações Patronais Católicas (A.A.S. 41, p. 283 ss.), aos membros do Congresso Internacional do “Movimento Universal por uma Confederação Mundial” (A.A.S. 43, p. 278 – “Catolicismo” n.° 8, agosto de 1951), à Ação Católica Italiana e Congregações Marianas em 3 de abril de 1951 (A.A.S. 43, p. 375 –“Catolicismo” n.° 6, junho de 1951), por ocasião da clausura do Congresso Internacional do Apostolado Leigo (A.A.S. 43, p. 784, ss. – “Catolicismo” n.° 12, dezembro de 1951), à Associação dos Pais de Família franceses (A.A.S. 43, p. 730 ss. – “Catolicismo” n.° 13, janeiro de 1952), às participantes do Congresso da União Católica Italiana das obstetrícias (A.A.S. 43, p. 835 ss.), às Superioras Gerais das Ordens e Congregações Religiosas (“Catolicismo” n.° 23, novembro de 1952). Recomendamos, outrossim, a Carta da Congregação dos Seminários ao Episcopado brasileiro (A.A.S. 42, p. 836 ss.), documento clarividente e equilibrado que cuida especialmente deste problema enquanto existente no Brasil.

A palavra do Santo Padre é sempre benéfica e eficaz no sentido de elevar a alma e orientá-la na vida moral e espiritual. Salientamos os documentos acima, porque ajustam muitos pontos de ordem social, política e moral que tinham sido obscurecidos em consequência especialmente ao último conflito.

* * *

Índice

Contato