Catolicismo, N° 453, Setembro de 1988, págs. 1 e 20
The New York Times, 11 (edição nacional) e 12 de agosto (edição local, Nova York)
À Universal Pictures
Senhores:
Há algum tempo vem circulando notícias sobre a produção do filme A última tentação de Cristo, baseado na conhecida novela de Nikos Kazantzakis, que nós consideramos sacrílega. Isso gerou controvérsia entre americanos de toda a nação, devido tanto ao conteúdo quanto à promoção do filme.
Em resposta ao antecipado lançamento deste filme, a Sociedade Americana de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) julga seu dever apresentar uma análise de certos aspectos da controvérsia.
Não procuraremos resumir aqui tudo o que já se falou a respeito do filme. Só podemos especular sobre o conteúdo da sua versão final, e basta-nos transcrever alguns dos muitos relatos chocantes publicados pela imprensa.
I — “Este Jesus é um carpinteiro, que fabrica cruzes nas quais outros judeus serão crucificados pelos romanos” (New York Times, 8-8-88);
2 — “Mais tarde ele (Jesus) se transforma num guru de olhar selvagem, à frente de um bando de seguidores maltrapilhos, mas apreensivo e fundamentalmente confuso sobre a sua mensagem e a sua missão” (Time, 15-8-88);
3 — “O ponto essencial do livro e do filme é apresentar Jesus como um mero homem, que se transforma em Messias por um ato de aceitação. Ele resiste ao desígnio de Deus sobre a sua vida, e finalmente o aceita, como sendo o de ir a Jerusalém para ser crucificado” (USA Today, 25-7-88);
4 — “…A última tentação de Cristo retrata um Jesus perplexo e vacilante, que só aceita com relutância o seu papel de Messias e mártir” (People, 8-8-88);
5 — “O grupo Morality in Media (Moralidade na Mídia) está particularmente indignado com o comentário angustiado de Jesus: ‘Sou um mentiroso, um hipócrita. Tenho medo de tudo… Lúcifer está dentro de mim”‘ (Time, 15-8-88);
6 — “…este é um Jesus perturbado por dúvidas e sujeito a todas as tentações humanas — orgulho, cólera, luxúria, ânsia do poder, medo da morte” (Newsweek, 15-8-88);
7 — “Quando Judas, representado por Harvey Keitel, grita contra ele (Jesus) ‘Você é uma vergonha! Você é um covarde!’ isto se torna o ensejo para um dos estereótipos subversivos do filme. Jesus convence Judas a traí-lo, para que possa realizar-se a redenção…” (New York Times, 8-8-88);
8 — “Numa seqüência de 35 minutos, durante a crucifixão, Cristo se imagina percorrendo o outro caminho. Casa-se e tem relações sexuais com a prostituta Maria Madalena” (People, 8-8-88);
9 — “Mais tarde, depois que Madalena morre, ele se casa com Maria, da dupla bíblica Maria e Marta, e pratica adultério com Marta” (Time, 15-8-88);
Abordando o ponto central
Baseados nestes relatos publicados, gostaríamos de fazer algumas observações que, acreditamos, lançarão luz sobre o que consideramos o ponto central. Isto é, se se tem o direito de atribuir a Nosso Senhor Jesus Cristo ações que, se atribuídas a qualquer pessoa privada, teria o caráter de difamação. A lei que protege todos os americanos contra a difamação não protegeria também a Nosso Senhor Jesus Cristo?
Poder-se-ia objetar que todos têm o direito de dizer o que queiram sobre qualquer um. Portanto, o caráter tolerante da lei americana não protege Nosso Senhor Jesus Cristo neste caso.
Em resposta a isso, fazemos notar que existem leis, nos Estados Unidos, que protegem os indivíduos contra comentários difamatórios ou detrações que possam lançá-los no ridículo, escárnio, vergonha e desgraça, ou que possam diminuir a sua respeitabilidade. E se tais leis protegem qualquer “João-ninguém”, nós cremos então com ainda maior razão, que elas devem proteger a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Alguém poderia objetar que se tem o direito de publicar fatos históricos, mesmo se eles são injuriosos aos indivíduos. Suponhamos que um pesquisador inesperadamente descobrisse algum fato indiscutivelmente confirmado, altamente injurioso a César — ou mesmo a alguma outra personalidade mais recente, tal como Napoleão, Abraham Lincoln ou Franklin Roosevelt. Haveria então um inegável direito de publicá-lo.
Jesus Cristo é, indiscutivelmente, uma figura histórica — continua o argumento —, e portanto não tem direito a maior proteção contra a revelação da verdade histórica do que qualquer outra pessoa.
Mesmo sob o ponto de vista estritamente secular, esta objeção pode ser rebatida. Muitos dos episódios apresentados no filme não são baseados em nenhum tipo de fatos históricos. Na carta-aberta da Universal Pictures ao Sr. Bill Bright, o diretor Martin Scorsese é citado como tendo afirmado claramente que o seu filme é “um trabalho de ficção, e que é baseado numa novela, não nos Evangelhos” (New York Times, 20-7-88). Não há absolutamente nenhuma prova de que qualquer dos supra-mencionados fatos sobre Nosso Senhor Jesus Cristo seja baseado em documentação da Sua época, ou que eles tenham mesmo ocorrido.
Como se vê, não estamos em presença de fatos históricos, mas de fantasias históricas, de caráter mais ou menos fictício, que supõem Nosso Senhor fazendo coisas que seriam difamatórias se atribuídas a Ele.
Imaginemos uma novela representando um falecido presidente americano no abominável papel de traficante de drogas, e que tal “história de uma vida”, baseada nesta e em outras difamações, fosse publicada. Vamos supor que, confessadamente, esta novela não fosse baseada em nenhum fato histórico, e que fosse simplesmente o produto da imaginação. As leis americanas certamente dariam base para se impedir a publicação de um livro desta natureza.
O presente filme contra Nosso Senhor Jesus Cristo é precisamente desta natureza.
Os limites da liberdade religiosa
Novamente, alguém poderia objetar que a liberdade religiosa concede a todos o direito de dizer o que queiram sobre religião. Sem dúvida, este é o princípio da liberdade religiosa. Contudo, este direito não vai ao ponto de permitir a alguém atacar os direitos de um terceiro. Assim, se Nosso Senhor é o objeto do abuso, os cristãos também são atingidos.
Jesus Cristo: o mais alto ideal de perfeição moral
Até aqui a TFP americana abordou o assunto do ponto de vista secular, a título de argumentação. A divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo é um fato suficientemente provado, e, portanto, não se pode atribuir a Ele ações contrárias às Suas naturezas divina e humana.
Sob este aspecto, Jesus Cristo é o mais alto ideal de perfeição moral; qualquer detração desta perfeição moral toma caráter difamatório, pois rebaixa e nega completamente a Sua única e excelentíssima posição enquanto Deus-homem.
Nada há de injurioso em um homem decidir casar-se. Mas insinuá-lo quanto a Nosso Senhor o detrata. Porque a Sua sublime perfeição nos assegura que Ele praticou a virtude da castidade da maneira mais absoluta, e sempre manteve o estado de castidade perfeita, que é intrinsecamente superior ao estado matrimonial.
A moral é objetiva
Finalmente, alguém poderia dizer que o próprio conceito de difamação é inteiramente subjetivo, consequentemente invalidando os argumentos acima.
Se assim fosse, todas as leis relacionadas com a difamação seriam nulas e inválidas. A difamação consiste essencialmente em atribuir a outrem ações imorais capazes de privá-lo do respeito que ele merece. Se o que é moral fosse inteiramente subjetivo, ninguém poderia condenar ninguém por nenhuma ação, pois o que é imoral para um pode não o ser para outro.
Além disso, existem padrões morais censurando ações que o Estado não considera ilegais em si mesmas.
Consequentemente, embora um filme possa não violar a lei, isto não significa que ele não seja imoral.
Por exemplo, algumas mentiras são punidas por lei, enquanto outras não o são. Não obstante, todas as mentiras são imorais. Exemplifiquemos também com o patriotismo. Se um americano em viagem pelo exterior é testemunha de sérias manifestações de desprezo ou ódio contra nosso país, e contudo permanece indiferente, ele pode não estar violando a lei. Mas viola o código moral que governa o patriotismo.
Imaginem que um americano cometa assassinato em algum remoto canto do mundo que não possua código penal, e onde o assassinato não constitua necessariamente crime. Entretanto, ao voltar aos Estados Unidos, se sua ação for conhecida, ele será tratado com todo o horror e desprezo que se tem em relação a qualquer assassino.
Portanto, a moral não é subjetiva, e deve ser tomada seriamente pela opinião pública. Nações que punem apenas atos ilegais e deixam de censurar os imorais estão destinadas a mergulhar no caos e na ruína.
* * *
Ainda há um ponto a ser tratado.
Preocupa-nos muito o repentino anúncio pela Universal Pictures de que A última tentação de Cristo seria lançado seis semanas antes do programado. Tal preocupação provém não só do que se relata sobre o conteúdo, mas também do véu de mistério que parece envolver a sua versão final, criando a impressão de que o filme poderia ser ainda pior do que os relatos indicam.
Tal mistério efetivamente impede que o público católico norte-americano possa formar opinião e responder prontamente a uma afronta. Situações ambíguas como essa rompem as mais elementares regras do “faireplay”, porque se se é livre para afirmar algo, tem-se também que respeitar o direito de outrem de contrapor uma opinião oposta equivalente. A não ser assim, estaria tolhida a liberdade de expressão e o direito dos católicos, e de todos os americanos, de formar imediatamente uma opinião com conhecimento de causa.
Veementemente protestamos e denunciamos tão tendenciosas atitudes e ações.
Nunca Nosso Senhor sofreu tais acusações…
Esta avaliação negativa do filme não é o resultado de um zelo religioso fanático. Se assim fosse, muitos outros poderiam ser rotulados de fanáticos, apesar de suas posições diferirem da nossa. A posição da TFP norte-americana não é nem isolada, nem exagerada, mas é compartilhada por incontáveis americanos.
Estamo-nos aproximando do 2.000° aniversário do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Durante esse enorme período, a Sua pessoa tem sido objeto não só dos mais fervorosos e admiráveis atos de adoração, mas também de pérfidos ódios e perseguições.
Se a maior parte ou a totalidade do que se diz sobre o filme for verdade, os Srs. devem admitir que nunca, desde que Nosso Senhor partiu desta terra, Ele terá sofrido ao mesmo tempo tão insultantes acusações. Porquanto, os meios para difundi-las influenciando um imenso público, nunca foram maiores.
Contra isso nós protestamos com toda a nossa alma.
Condições para um autêntico debate
Gostaríamos de fazer um pedido.
Permitam que a TFP e outras organizações semelhantes vejam a versão final do filme e publiquem sua opinião poucos dias antes do lançamento oficial. Isso criará as condições para um autêntico debate, um desacordo honesto e uma divergência de opinião imparcial ante o público americano, e também para evitar uma blasfêmia pública.
Sentimos que isto é o mínimo a que os obriga a lealdade.
Caso os Srs. concordem com o nosso pedido, esperamos que nos contactem logo que possível.
Sinceramente
Sociedade Americana de defesa da
Tradição, Família e Propriedade