“O Estado de S. Paulo”, 22 de agosto de 1979
São Paulo, 15 de agosto de 1979
Ilmo. Sr.
Dr. Julio de Mesquita Neto
Diretor de
“O Estado de S. Paulo”
Sr. Diretor
Escrevo-lhe na qualidade de assinante, que sou por volta de há quarenta anos, de “O Estado de S. Paulo”. Comunico-lhe que não mais quero receber seu jornal, considero cancelada a assinatura que fiz do mesmo para 1979, e espero não ser procurado por seu departamento de propaganda para nova assinatura nos anos subsequentes.
Não me levam a isto os ataques recentemente feitos por essa folha tanto contra a TFP, de cujo Conselho Nacional sou Presidente, quanto contra a minha pessoa. Outras investidas já tem a TFP recebido de “O Estado de S. Paulo” sem que eu sequer cogitasse em suspender minha assinatura.
Porém, em noticiário publicado no dia 12 do corrente, a TFP e eu fomos objeto, da parte desse jornal, de uma ferocidade polêmica da qual não conheço precedentes no passado dele, nem na história da imprensa brasileira.
Com efeito, quis o aludido noticiário atingir-me em um dos sentimentos mais sagrados e mais íntimos do coração humano: o afeto e a veneração que todo filho tributa a sua mãe. Não tenho dúvida de que nenhum leitor do “Estado”, qualquer que seja sua opinião sobre o acerto ou a oportunidade deste ou daquele lance de minha vida pública, ou sobre a TFP, negará a inteira procedência de minha inconformidade com tal.
Ferocidade polêmica: a expressão é inteiramente precisa, Dr. Júlio de Mesquita Neto. Era justo, era decoroso, que, para atacar-me, e à TFP, “O Estado de S. Paulo” chegasse ao ponto de violar a augusta paz dos mortos, na qual dorme serenamente e cristãmente minha Mãe, à espera da aurora da ressurreição?
Era justo e decoroso que trouxesse à baila numa polêmica – e de que modo! – o nome dela, bem como os testemunhos de veneração e de carinho de que sua memória é cercada?
Procedendo desta maneira, “O Estado de S. Paulo” não terá transgredido um direito humano, ele que blasona de paladino de tais direitos, até mesmo quando se trata de encarniçados e irredutíveis adversários dos mais básicos preceitos das leis humanas e divinas?
Por certo, todos os homens, sem exceção, têm direitos. Assim sendo, não os terei eu? E só porque pertenço à TFP?
O mencionado noticiário do “Estado” relata que múltiplos sócios e cooperadores da TFP recorrem à intercessão da piedosa alma de minha Mãe para obter graças do Céu. E manipula habilmente o fato de forma a apresentá-lo como uma expressão da ridícula ou absurda mentalidade religiosa que a TFP inculcaria aos que vivem no âmbito dela.
Para isto, não hesita o noticiário em apresentar como sintomática uma transposição absolutamente absurda da Ave Maria.
Acerca dessa transposição, pelo mais extremo escrúpulo de precaução, investiguei se porventura era adotada nas fileiras da TFP. E posso responder que não. Se acaso algum fato individual dessa natureza se produziu, aliás sem conhecimento meu, nada provaria ele. Pois qual a entidade numerosa que aceita de ser responsabilizada por singularidades praticadas, sob responsabilidade individual, por este ou aquele dos seus participantes ou cooperadores?
Qualifico, pois, não só de injusto, como até de feroz, o recurso polêmico a um disparate desse gênero, ainda quando fosse fundado.
* * *
Há mais. É bem verdade que certo número de pessoas pertencentes à TFP, ou a ela chegadas, visitam o túmulo de minha querida e saudosa Mãe no Cemitério da Consolação, o adornam com flores, e ali rezam em recolhido silêncio.
Resulta isso de uma seqüência de fatos facilmente explicáveis.
Há mais de cinqüenta anos dedico-me a atividades em prol da Igreja ou da civilização cristã. Como é notório entre os que têm tido trato comigo, até o ano de 1967 constituíram compartimentos inteiramente estanques meu lar, onde vivia na suave dignidade da vida privada a tradicional dama paulista da qual me honro de ter nascido – e de outro lado os meus valorosos companheiros de ação pública. A tal ponto, que apenas uma meia dúzia deles freqüentava minha casa, e para todos os demais minha Mãe era uma desconhecida, ou quase tanto.
No ano de 1967, adoeci com sério risco de vida, e minha residência se encheu naturalmente de amigos. Profundamente aflita, a todos recebia minha Mãe, já então com a avançada idade de 91 anos. Nesse difícil transe ela lhes dispensava uma acolhida na qual transpareciam seu afeto materno, sua resignação cristã, sua ilimitada bondade de coração e a encantadora gentileza dos velhos tempos da São Paulo de outrora. Para todos foi uma surpresa e, explicavelmente, também um encanto de alma. Durou assim este convívio por longos meses.
Não estava eu ainda inteiramente restabelecido, quando Deus chamou a Si minha Mãe. A partir de então, ocorreu a alguns da TFP pedir a intercessão dela junto a Deus. E viram-se atendidos. Nada mais natural do florirem eles então seu túmulo como manifestação de respeito e gratidão. Não menos normal é eles narrarem os fatos a seus amigos. E igualmente natural é ainda a conseqüente e gradual ampliação do número dos que vão orar junto à campa da Consolação.
Competia-me a mim, como filho, opor-me a isto, que longe de ser ridículo ou extravagante, é – para quem tem fé – profundamente respeitável? Seria benfazejo que eu tentasse de qualquer forma privar deste apoio moral as pessoas atormentadas pelas tribulações de uma vida de luta em plena borrasca do mundo contemporâneo?
Diante de fatos que presenciei discretamente sem contudo os impulsionar, não cabia senão calar-me reverente, emocionado e agradecido.
Insisto. Em meu lugar, que filho não procederia assim?
Tudo isto, eu acabo de o expor do ponto de vista do bom senso e da bondade de coração. Elevando agora a vista, passarei a falar em termos de Fé e de doutrina católica.
Pedir a intercessão de uma pessoa que viveu e morreu piedosamente não tem o significado intrínseco e necessário de uma proclamação de que ela foi santa de altar. A doutrina católica ensina ser legítimo que os fiéis recorram à intercessão dos que os precederam na morte “cum signo fidei”, especialmente quando por sua conduta ou por suas palavras lhes deram estímulos para a virtude e assim os aproximaram de Deus. Em tal princípio genérico se fundam, por exemplo, os tão conhecidos pedidos às almas do Purgatório, ao as sufragarem os fiéis.
É o que, em anteriores ocasiões, se tem feito de modo individual na TFP, recorrendo da mesma maneira à intercessão de sócios ou cooperadores falecidos por doença ou acidente, visitando-lhes as sepulturas etc. E é o que se faz, dentro e fora da TFP, junto aos restos mortais de personalidades que a Igreja não canonizou, como o grande Bispo de Olinda e Recife, D. Vital, ou o heróico Presidente do Equador, Garcia Moreno, assassinado em ódio à Fé.
Nada mais ortodoxo.
Por tudo isso, Sr. Diretor, protesto com todas as energias do meu senso de honra e de minha piedade filial, contra o fato de que essa folha tenha tratado o assunto de modo tão ofensivo, sem pelo menos me ter procurado previamente, a fim de saber se eu teria a respeito alguma explicação razoável a dar. Eu que, mais de uma vez, acolhi amavelmente representantes do “Jornal da Tarde” que me pediram opinião sobre um ou outro tema.
É o que eu tinha a dizer.
* * *
Releia esta carta, Sr. Diretor; nela não encontrará o Sr. uma só afirmação supérflua para a defesa do nome de minha Mãe, ou do que na linguagem hoje corrente se chamaria meus direitos humanos.
Quero crer que sua seção “Escrevem os leitores” seja autenticamente uma tribuna aberta a todos, e assim espero que esta missiva seja nela publicada. Mas condiciono formalmente a publicação a que esta contenha na íntegra o presente texto. Sem supressão se qualquer tópico, portanto nem “resumo” de qualquer trecho. Do contrário, oponho-me a que seja publicada.
Caso “O Estado de S. Paulo” recuse a publicação, saberei como agir para a consecução dos fins desta carta, dentro do respeito devido à Lei de Deus e às leis dos homens.
Presentemente, nem a TFP nem eu dispomos dos recursos econômicos necessários para polemizar em seção livre contra a poderosa organização empresarial de “O Estado de S. Paulo”. Mas saberei como comunicar-me aos espíritos imparciais e aos corações sensíveis que, graças a Deus, não faltam neste imenso e querido Brasil.
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Mando-lhe a presente através de Cartório de Registro de Títulos e Documentos, sem qualquer intuito de recorrer a medidas judiciais. Mas apenas para poder provar para todo o sempre, que no momento apropriado defendi com a necessária firmeza o nome de minha Mãe, minha dignidade pessoal e o bom conceito da TFP.
“Beati mortui qui in Domino moriuntur” – “bem aventurados os mortos que morrem em paz com Deus”. Da paz do Senhor onde se encontra, bem sei que minha querida Mãe reza por mim. Segundo a ilimitada bondade de seu coração, sei que ela também está rezando pelo autor da ofensa. E pede que a este ninguém faça o mal feito a ela e a mim.
Sigo o exemplo materno.
É o que tenho a dizer para encerrar a presente.
Plinio Corrêa de Oliveira