Catolicismo, N° 505 – Janeiro 1993 – Ano XLIII, pags. 9-11
O teólogo belga, Pe. Joseph Comblin, revela: “As CEBs estão marginalizadas,
fustigadas, fulminadas em todas as partes. Hoje, elas constituem minorias sem projeção no conjunto das igrejas locais. Aqui, todo mundo odeia o PT”.
Serra Redonda é um lugarejo no agreste sertão da Paraíba, a 90 km de João Pessoa. Em 1981, sob os auspícios de D. José Maria Pires, Arcebispo dessa capital, e financiado por agências católicas internacionais, lá se instalou o Centro de Formação Missionária (CFM), encarregado de formar “líderes rurais” para as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) de todo o Nordeste.
Excetuada a antena parabólica, que capta sinais de TV via satélite, à primeira vista nada chama a atenção no CFM, um aglomerado de edifícios espalhados, sem muita ordem, por um terreno árido e acidentado. Na casa principal, o parco mobiliário é rústico e de mau gosto. Alguns motivos indígenas enfeitam a sala de visitas. Um ar de melancolia domina o ambiente, não obstante o dardejar inclemente do sol nordestino.
A certa distância da entrada desse conjunto de edifícios, seguindo uma trilha no meio da campina, encontra-se um barracão de alvenaria, que bem poderia servir de garagem para dois automóveis. Rodeado por estantes de livros empoeiradas, ali mora, desde 1983, o teólogo belga Pe. Joseph Comblin, 69 anos, um dos mentores intelectuais da “Teologia da Libertação” na América Latina.
Em 1968, o Pe. Comblin, então professor no Instituto Teológico do Recife, tornou-se tristemente célebre no Brasil, quando um documento de sua lavra, não destinado à publicidade, caiu nas mãos da grande imprensa brasileira. Até hoje não se sabe de que modo isso se deu. Porém, uma vez conhecido, estarreceu a opinião pública.
Tratava-se de estudo reservado, que deveria servir de subsídio à Conferência do Celam, realizada em Medellin naquele mesmo ano. Em linguagem clara e sem rodeios, o Pe. Comblin preconizava, como meios válidos para derrubar as estruturas sociais vigentes, a revolução na Igreja, a subversão de todos os poderes constituídos no País: a derrubada do Governo, a dissolução das Forças Armadas, a instituição de uma ditadura socialista férrea, esteada em tribunais de exceção, e aparelhada para reduzir ao silêncio — pelo terror — os descontentes (1).
Um quarto de século após aquele evento, a Agência Boa Imprensa (ABIM) foi entrevistar, com exclusividade para CATOLICISMO, esse propugnador de uma revolução marxista radical. Encontrou-o cético em relação ao trabalho das CEBs e desiludido com os atuais rumos da Igreja, embora continue aferrado aos velhos chavões marxistas, sobreviventes na “Teologia da Libertação”.
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ABIM: Na década de 80, falava-se muito das CEBs. Hoje quase já não se fala delas. O que houve? Diminuiu a sua influência?
Pe. COMBLIN: As massas populares dos anos 80 se orientaram para a ilusão da democracia, mas as suas reivindicações sociais e econômicas se enfraqueceram e continuam se enfraquecendo, porque o peso das massas populares está diminuindo em todos os países da América Latina, inclusive no Brasil. As CEBs também sofreram o impacto deste enfraquecimento geral (2).
A desindustrialização arrefeceu muito a força da classe operária, que cedeu lugar ao setor de economia informal. Neste mundo da economia informal, em que cada um se arranja por si, as CEBs se enfraqueceram, pois foram elaboradas para atuar junto às massas operárias.
ABIM: Mas os desempregados que ingressaram na economia informal não seriam mais sensíveis às reinvidicações sociais, justamente porque estão desempregados? Isso não aumentaria o campo de atividade das CEBs?
Pe. COMBLIN: Não! Estes desempregados se identificam com o Collor de Mello! Eles têm outra perspectiva da sociedade. Para eles, o clientelismo é a solução. Não é a reinvindicação. Quer dizer, o trabalhador, uma vez sindicalizado e trabalhando numa fábrica, identifica-se com o Partido dos Trabalhadores (PT). Este mesmo operário, uma vez desempregado, vira do Collor. O paulista então se transforma em malufista… Hoje, a imensa maioria da população é clientela do malufismo! E é claro que este não é o pessoal que as CEBs visam atingir.
ABIM: Há na Igreja oposição doutrinária à atuação das CEBs?
Pe. COMBLIN: No campo doutrinário não existe oposição. O problema é que as CEBs são re-absorvidas dentro do sistema paroquial. Com o tempo, se transformam em sucursais das paróquias, tornam-se inofensivas e perdem sua identidade. Vira reunião de velhinhas, que não leva a nada.
No plano original, as CEBs foram concebidas para ser um fermento, um fator de transformação social e econômica. Se elas se contentam apenas em fazer o trabalho paroquial — a catequese das crianças, a preparação para a primeira comunhão, para o Batismo etc — elas perdem a força. Este tipo de trabalho não cria nenhum problema, não leva a nada. Para isso não precisa haver CEBs, que é a expressão socializada e politizada da Igreja.
Mesmo nas dioceses mais comprometidas, se verifica hoje um menor interesse pelo social. Roma não está preocupada com estas coisas, mas sim com os problemas de disciplina interna, coisas de terceira ou quarta categoria.
Ao lado das reivindicações sociais, as questões ligadas à ortodoxia e ao catecismo são bem secundárias. Como resultado disso, as CEBs estão marginalizadas, fustigadas, fulminadas em todas as partes. Hoje, elas constituem minorias sem projeção no conjunto das igrejas locais.
ABIM: Por que o senhor mora em Serra Redonda, quando poderia ser professor na Europa?
Pe. COMBLIN: Eu poderia ensinar num seminário tradicional, mas não vejo muita saída por aí, porque lá só se repetem coisas já sabidas, e não adianta dedicar meus últimos anos de vida para repetir as coisas de sempre.
Aqui pelo menos gozo de liberdade para criar o novo, coisas que podem ser de pouca importância a curto prazo, mas que poderão trazer elementos novos para tempos novos.
No mundo rural, tem-se mais liberdade de buscar e experimentar como será o futuro. Se fosse na cidade, os vigários se sentiriam feridos nos seus direitos, pois alguém viria mexer no feudo deles.
Porque o sistema clerical da Igreja Católica é um sistema medieval, que persevera pela rotina de um atavismo, mas não tem futuro. Forma uma classe que dispõe de todos os poderes, uma classe privilegiada, um verdadeiro sistema feudal. Isso não pode ter futuro. Onde compensar isso? Onde gerar o futuro? Só num lugar onde este sistema feudo-clerical é tão fraco ou quase inexistente!
ABIM: Como seria uma Igreja “não-feudal”?
Pe. COMBLIN: As comunidades deviam ter participação na escolha de seus dirigentes. Atualmente tudo é de cima para baixo. Por que o povo não pode participar da escolha dos Párocos, dos Bispos e do Papa? Por que o Papa tem de ser escolhido apenas por alguns Cardeais?
Se há um Bispo que não convém, que se faça um processo de impeachment para tirá-lo do cargo! Por exemplo, lá no Recife: por que não abrir um processo de impeachment contra D. José Cardoso Sobrinho, que de tal maneira se mostrou incapaz de governar a igreja local?
Seria, portanto, a democratização total da Igreja para se eliminar os estigmas feudais que na sociedade civil já foram eliminados. A soberania, mesmo dentro da Igreja, reside no povo.
ABIM: E como fica o dogma da infalibilidade do Papa?
Pe. COMBLIN: Infalibilidade! Esta palavra não é muito feliz [sic!]. Mas que seja algo de última instância, último recurso, levando-se em conta, por exemplo, uma Câmara de Deputados: quando há empate, o Presidente então desempata. A infalibilidade é um desempate final…
ABIM: E Pio IX proclamando sozinho o dogma da Imaculada Conceição?
Pe. C OMBLIN: Pois é… Isso é um ato de autoritarismo! Tem-se de conhecer primeiro o que o povo deseja. Se não há unanimidade, deve-se esperar que ela se forme. A história não tem pressa! Atualmente, todo governo é plural. Uma pessoa só para tomar as decisões nunca dá certo.
ABIM: Quais as experiências em gestação no Centro de Formação Missionária?
Pe. COMBLIN: Temos várias. Esta casa forma missionários leigos, que se dedicam à organização de Comunidades Eclesiais de Base. Aqui, eles têm dois anos de formação básica. Depois, em grupos de quatro, passam a conviver nas comunidades rurais para adquirir os costumes, os modos de ser e de pensar do povo. Do contrário, provoca rejeição.
Trata-se de mostrar que se é inofensivo, que não se vem para destruir nem roubar. Se logo utilizarmos nosso vocabulário, que o povo não entende, cria-se resistências e se afasta o povo. Este foi o erro do PT. Aqui, todo mundo odeia o PT por isso. As massas populares têm medo do PT. Dizem: “Esses do PT são ladrões! Vêm para roubar a terra dos donos!” Justamente por falta de inculturação.
ABIM: Tem havido sucesso nesse trabalho?
Pe. COMBLIN: Bem, o sucesso é naturalmente pequeno porque somos poucos. Mas nos lugares em que os missionários estão trabalhando se nota que o povo se transforma e se dinamiza.
Texto e fotos: Bráulio de Aragão
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N. da R: A entrevista acima foi redigida com base em fitas magnéticas, pertencentes à Agência Boa Imprensa — ABIM, à qual o entrevistado prestou declarações.
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NOTAS:
1. O Documento Comblin deu ensejo a que a TFP brasileira desencadeasse a campanha a que nos referimos em quadro à parte. Denunciada pela TFP, de modo tão eficiente e com tamanho impacto, essa ameaça clérico-marxista que pesava sobre a Nação, a corrente progressista radical teve que encolher as garras. O Pe. Comblin, após a campanha promovida pela TFP, não encontrando clima para prosseguir seu trabalho no Instituto Teológico do Recife, passou vários anos no Exterior.
2. O Pe. Comblin, ao explicar as razões do declínio das CEBs em nossa Pátria, omite uma que se reveste de grande importância. Trata-se da pujante campanha, de âmbito nacional, promovida pela TFP, que difundiu a obra “As CEBs… das quais muito se fala, pouco se conhece — a TFP as descreve como são” (ver quadro).
Mensagem da TFP a Paulo VI
No dia 21 de junho de 1968, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, na qualidade de Presidente do Conselho Nacional da TFP, dirigiu carta pública ao então Arcebispo de Olinda e Recife, D. Helder Câmara, pedindo medidas enérgicas contra as atividades subversivas do Pe. Joseph Comblin, na época professor do Instituto Teológico daquela Arquidiocese.
A referida carta foi publicada em 16 jornais e distribuída à população de 25 cidades, de Fortaleza a Porto Alegre, causando forte impacto na opinião nacional. Até então, o público brasileiro desconhecia a profundidade da infiltração comunista nos meios eclesiásticos.
O Documento Comblin deu ensejo a que a TFP brasileira desencadeasse, a partir de 17 de julho de 1968, uma campanha de coleta de assinaturas para uma Mensagem a Paulo VI, pedindo respeitosamente medidas eficazes contra tal infiltração. Em 58 dias de campanha, 1.600.368 brasileiros de 229 cidades de 21 Unidades da Federação haviam assinado as listas apresentadas pela TFP.
O abaixo-assinado da TFP teve repercussão internacional. A conhecida revista norte-americana “Time” comentou na ocasião: “A facilidade com que a TFP coletou as assinaturas reflete o fato de que a maioria dos latino-americanos aprova ou pelo menos tolera o conservadorismo católico” (“Time”, 23-8-68).
As TFPs coirmãs da Argentina, do Chile e do Uruguai promoveram abaixo-assinados semelhantes ao da TFP brasileira. Depois de meticulosa recontagem, o impressionante total de 2.025.201 assinaturas colhidas nas quatro nações pôde ser entregue, em microfilmes, ao Vaticano, no dia 7 de novembro de 1969. Causando grande perplexidade aos signatários da Mensagem, Paulo VI não respondeu.
Contra o V poder emergente, a denúncia da TFP
As CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) são pequenos grupos de caráter religioso geralmente engajados no empreendimento de “reformar a Igreja e o Brasil”. Constituem elas uma “cruzada política” — uma cruzada sem Cruz — que lança uma minoria fanática de prosélitos em agitações de rua, em invasões de propriedades rurais e urbanas. Seu objetivo é a luta de classes e a instauração do “modelo cubano” em nosso país, através de uma revolução comunista.
No início dos anos 80, a mídia vinha apontando as CEBs como a grande potência emergente no campo eleitoral brasileiro, a qual iria levar de roldão as eleições de novembro de 1982. Por isso, dizia-se que, ao lado dos três poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário) e do chamado IV poder (a mídia), surgira um V poder paralelo que visava instrumentalizar o Estado brasileiro: as CEBs!
Contra este novo Leviatã encastelado no seio da Igreja, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, e os irmãos Gustavo e Luiz Solimeo escreveram a obra As Cebs… das quais muito se fala, pouco se conhece — a TFP as descreve como são (Editora Vera Cruz, São Paulo, 6 edições, 72 mil exemplares).
A divulgação do livro começou em agosto de 1982, e rapidamente se estendeu em diversas capitais e 1.510 cidades de todos os Estados da Federação. Desde então, as CEBs, vulneradas a fundo, nunca mais se restabeleceram do impacto esclarecedor causado na opinião pública pela campanha da TFP.
Neste sentido, vem a propósito aduzir pronunciamento insuspeito do próprio sacerdote belga, Pe. Joseph Comblin, por ocasião do Congresso “Fé e Secularismo”, realizado no verão do corrente ano no palácio do Escorial, em Madri: “Entre 1972 e 1982 as CEBs estavam no seu auge, mas a partir deste último ano começou o seu declínio, que se consumou em 1985”!
A estrutura monárquica da Igreja
A Igreja Católica foi fundada diretamente pelo Divino Salvador.
Tudo aquilo que nela foi instituído por Ele, sendo de origem divina, não pode ser modificado pelos homens. E esses elementos não sofrem a variação do tempo nem podem se modificar com as transformações sociais, culturais ou políticas da sociedade civil.
“Cristo quis que a Igreja, que é unida pela caridade, em sinal e como penhor dessa unidade, fosse uma monarquia e designou a São Pedro (e seus sucessores) como detentor dessa suprema potestade” (Pe. Ludovico Lercher, S. J., Institutiones Theologiae Dogmaticae Herder, Barcelona, 1945, t. I, p. 163).
A Igreja, portanto, não pode deixar de ter uma forma monárquica, e o Papa deverá ser seu chefe supremo. As correntes igualitárias protestantes, e mais tarde a dos modernistas (hereges condenados por São Pio X, no começo deste século) quiseram abolir essa monarquia papal, contrariando assim, de forma expressa, os desígnios de Nosso Senhor, O qual disse a São Pedro: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mt. 16, 18).