“Enquanto for Superiora, não permito nada de progressismo dentro desse convento” (Madre Letícia)

Sede São Milas, Santo do Dia, 11 de maio de 1974 – Sábado

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

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[…] Digo apenas algumas palavras sobre a Madre Letícia.

“Letícia” quer dizer “alegria”. Tenho esperança de que a Madre Letícia esteja no Céu.

Quem era a Madre Letícia?

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Maria Julieta da Gama Cerqueira era descendente de ilustre e tradicional estirpe mineira, nascida em Belo Horizonte (10 de março de 1900) e falecida em Campos (Rio de Janeiro, a 2 de maio de 1974)

 

Era uma moça mineira, de Belo Horizonte, de boa família antiga mineira. Aliás, via-se isso nela. Tinha uma certa segurança e dignidade de uma pessoa que nasceu alguém. De outro lado, uma alma grande, forte, de idéias largas, generosas, de empreendimentos corajosos e que nunca recuou diante de perigo nenhum, de grande tarefa nenhuma.

Basta dizer aos senhores um lance de sua vida. Quando era ainda moça, e que todos os jornais da época publicaram em manchetes, como escândalo o fato seguinte, que ela mesma me contou.

Ela devia entrar como noviça num convento perto daqui, em Itu, no Estado de São Paulo. Primeiro ela entrou para essa Congregação, saiu e entrou para outra Congregação.

Ela devia entrar para essa Congregação, mas por dificuldades com a família etc., ela só foi muito atrasada. E o trem ia chegar depois da hora em que ela podia entrar. Pelo Regulamento, ou ela chegava naquela hora, ou não seria mais admitida. E era desses trens antigos que davam muitas voltas para chegar a algum lugar. E o trem passou diante do convento bem devagarzinho, e ia dar uma volta de 15 minutos antes de deixá-la na cidade onde ela tinha que tomar uma condução para chegar até o convento. Ela viu que ia perder a hora. O trem ia diminuindo de velocidade, passou um capinzal bem fofo para uma moça – e uma moça de 1920, mais ou menos, isso era bem longe de ser pouco! – pois ela se atirou do trem com mala e tudo.

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Resultado: tumulto no trem, pararam o trem, o que aconteceu? Ela: – “Não aconteceu nada. Eu estou viva”… Porque pensaram que fosse uma tentativa de suicídio.

Os senhores não podem calcular como os trens andavam devagar! Eu várias vezes tive a tentação de me atirar do trem, para provar que não havia perigo, tão inocentes eram esses trenzinhos desse tempo. Ela se jogou, encontrou uma estrada e chegou.

No convento, podem imaginar a surpresa! – “Mas como é que a senhora chegou?” – “Eu me joguei do trem”… Foi contar o caso para a superiora. Esta achou que fez bem e a admitiu.

A Providência deu-lhe essa alma grande, inteligência pronta, forte, generosa. Eu disse a ela que parecia Santa Teresa, a Grande. E a Providência sempre lhe pediu coisas difíceis. E há um modo de ser tradicional da Igreja, por onde Ela permite que uma freira, ou um frade passem de uma Ordem Religiosa para outra, mas não vê com muito bons olhos. Mudar de convento é uma coisa normal. Fica uma certa suspeita, algo estranho: por que mudou? Sobretudo quando muda várias vezes. Aí a impressão é de mais reserva ainda.

Em certo momento, Madre Letícia sentiu o chamado para se tornar uma freira de clausura. Convenceu-se que era a vontade de Deus, procurou as superioras e disse: – “Eu quero abandonar esta Congregação e quero ser freira de clausura em tal outra Ordem; adoração ao Santíssimo Sacramento, culto perpétuo a Nossa senhora”.

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Madre Letícia no parlatório de seu Convento, em Campos dos Goitacazes (Rio de Janeiro)

As irmãs acharam esquisito e consultaram a Santa Sé. Esta lhe concedeu a licença. Depois foi fundar um convento em Belo Horizonte, tendo se tornado uma grande religiosa. Exatamente porque sua família era influente em Belo Horizonte, muito relacionada e, antes de entrar no convento, era muito conhecida, obteve um número enorme de donativos e foi nomeada Superiora do convento.

Parecia que a situação estava arranjada e que sua vida estava seguindo seu curso normal. Ela era muito amiga dos fundadores da TFP, dos membros do chamado primeiro grupo de Belo Horizonte: Dr. Rodrigues, Dr. Milton Mourão, Dr. Vicente Ferreira. Eles iam com frequência lá, conversavam muito, ela conhecia a TFP etc., quando arrebenta a crise progressista dentro da Igreja.

Nos primeiros sintomas do progressismo, ela começou a achar esquisito e a reagir, e a reagir no duro. Acabou entrando em luta contra os capelães que frequentavam lá e disse:

– “Comigo pode acontecer o que acontecer. A autoridade eclesiástica tem o direito de me depor como superiora. Mas fiquem sabendo que eu, enquanto for superiora, não permito nada de progressismo dentro desse convento. Depois podem fazem de mim o que quiserem, porque eu sou sujeita à obediência. Mas duas coisas não esperem: 1º) que eu, enquanto superiora, permita alguma coisa progressista aqui dentro; 2º) que eu, enquanto freira, me adapte a alguma coisa progressista. Porque isso é heresia e eu não entro em heresia. E tenham isso por bem dito e bem contado”.

– “Não senhora! A senhora está se exaltando! Não é bem assim!” E manobra indireta – indireta… – para introduzir o progressismo em seu convento.

Afinal de contas, o conflito ficou tão grande, que ela entendeu que não podia continuar, tanto mais que uma boa parte das freiras dela aderiu ao progressismo, e uma parte ficou do lado dela. Havia, portanto, um desentendimento interno no próprio convento. Podem imaginar o mal-estar que essa situação criou!

Em consequência disso, ela vendo que era impossível continuar na arquidiocese de Belo Horizonte – porque pelo Direito Canônico, pertence à Santa Sé; a Cúria vela pelo Convento -, saiu com sete ou oito freiras, foi para Diamantina, num conventinho minúsculo, onde ela conheceu o padre Benigno Brito, grande amigo de Dom Mayer e nosso também, que passou a ser capelão do convento. No convento, grande amizade, no início, com Dom Sigaud, mas depois ela percebe que Dom Sigaud estava ficando progressista também. Então, ela, as freiras e o padre Benigno resolvem fazer uma outra mudança e vão para Campos. Lá, então, fundam mais um convento, por coincidência colado na sede da TFP.

Nesse trânsito, elas acabaram me conhecendo e formamos grande amizade, feita de grande respeito de mim para com ela e de muita consideração dela para comigo. Formamos grande amizade, grande estima. Tive ocasião de lhe prestar alguns serviços, elas rezaram muito por nós.

Mas aí elas começaram a ouvir, de dentro do convento, as fitas de nossas reuniões e ouvidas muito alto na sede da TFP. E começaram a gostar das reuniões. E pediram para ouvi-las. Comecei a lhes mandar as fitas e os artigos que escrevia para a “Folha de S. Paulo”; o “Catolicismo”, elas já recebiam.

Certo dia ela perguntou se poderia ser considerada membro da TFP. Enviei, então, a capa, distintivo etc., etc., e para outras religiosas também.

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Daí o fato dela – antes de ir a Europa; esteve nos visitando aqui – tirar uma fotografia com Dom Mayer e uma soror a quem era especialmente unida, Soror Encarnação e comigo também — na Sede do Reino de Maria, na sala dos Alardos. Dom Mayer sentado numa poltrona, Madre Letícia à direita, Madre Encarnação à esquerda, eu atrás, e todos com flâmula da TFP.

Mas nunca “legalizei” sua situação na TFP, mas ela se tinha firmemente em conta de um membro da TFP. Ela esperava com ardor a “Bagarre” [realização das promessas de Nossa Senhora em Fátima, n.d.c.] e o Reino de Maria.

Ela foi a Portugal [em 1973, n.d.c.], voltou, mas estava atingida já da doença que a levou à sepultura. Mas ela não sabia. Em certo momento, sentiu algo que a levou a consultar o Dr. Hadad.

A partir do momento em que se verificou que era um tumor enorme, gravíssimo, e muito mal colocado etc., com o senso animoso que tinha, ela começou a esperar um milagre. Rezava para tal e tinha a convicção de que o milagre ia dar-se. E enfrentou a doença assim. Nossa Senhora faria dela o que quisesse: se devesse morrer, aceitava com toda a humildade, mas ela pedia o milagre, porque não queria morrer sem ver o Reino de Maria.

De fato, não sei o que passou entre a Providência e ela… Talvez, em dado momento, Nossa Senhora lhe tenha pedido que, para o bem de Sua Causa, ela não visse o Reino de Maria: “Minha filha, teria dito Nossa Senhora, é a última mudança que Eu lhe peço. Depois de tanto mudar de convento, mude de planos. E, nos abismos sombrios da morte, antes de irradiar o meu dia, para que meu dia venha mais cedo para o mundo”. Quem sabe se foi isso o que se deu?

O fato é que, no dia de sua morte, ela disse que ia falecer naquele dia. E morreu, de fato, no dia. A doença estava gravíssima, as dores terríveis! Era um câncer no peito, que entrou pelo pulmão adentro e tocava não sei que nervos que dava uma dor pavorosa nos braços. Depois, dores de cabeça medonhas, que faziam o Dr. Hadad, que foi seu cirurgião, supor que o câncer tivesse penetrado no cérebro também. Ela sofreu pavorosamente!

Dias antes, eu ainda lhe telefonei e ela atendeu. Estava rachada de sofrimento, literalmente rachada de sofrimento! A gente tinha pena. Sempre, sempre, sempre falando da TFP com entusiasmo, que rezava para nós etc. O último desejo dela foi de ser enterrada com capa e no jazigo da TFP.

Para os senhores compreenderem o que isso significa de adesão até o fundo da alma, devem ter presente que o natural de uma freira, ainda mais quando é fundadora de um convento, é de ser sepultada com suas filhas, no próprio convento. E até, em muitos municípios, permite-se fazer a sepultura no próprio convento. Pois, apesar disso, ela quis ser sepultada no jazigo da TFP. E quando ela veio, foi aberto seu caixão e ela estava com o hábito de religiosa e, por cima, a capa da TFP. A capa foi tirada e eu mandei pôr outra. E ela dorme o sono eterno dela com outra capa. Sua capa entrou para aquilo que um dia se fará, e que é o museu da TFP. Enquanto se guardava aqui a capa, provavelmente sua alma já subia ao Céu.

Quem pode duvidar que essa narração está dando um momento acidental de alegria para ela? E quem pode duvidar que ela esteja rezando por cada um de nós, portanto, por cada um dos senhores?

(Aparte: O Sr. disse que ia contar um caso de Santa Teresa, a Grande, com relação a ela)

Ela era muito animosa. Uma vez me disse no Eremo São Bento. Eu me lembro que foi na biblioteca, Soror Encarnação, ela e eu. Falamos de várias coisas e ela, de repente, me disse, muito animada: – “Dr. Plinio, dizem que o senhor é um bom psicólogo. É impossível que o senhor esteja me olhando sem estar observando meus defeitos”… (Mas isso é que é uma pessoa valente!) “Eu queria que o senhor me dissesse quais são os meus defeitos”.

Eu não poderia dizer que não tem, porque “o justo peca sete vezes por dia”, diz a Escritura. Algum grãozinho, quem não tem? Os senhores conhecem a célebre visão das uvas, com Santa Teresa de Jesus.

Alguma coisinha talvez eu tivesse para dizer. Mas, por outro lado, era uma coisinha em comparação da muita admiração que tinha para com ela. Eu então fiz um apelo a Saint-Simon [o Duque contemporâneo de Luís XIV e famoso por suas memórias onde há numerosos ditos muito amáveis, n.d.c.] para essas circunstâncias difíceis, e “saint-simonizei” minha resposta: – “Madre, a senhora então me permitirá dizer que a senhora tem uma alma cujos reflexos me lembram Santa Teresa, a Grande”. Maior elogio não se pode fazer. E é o que eu pensava dela. “Agora, a senhora manda (precisavam ver o jeito animado dela!), eu digo: tem tal pontinho”.

Instintivamente estudei a fundo o reflexo do que eu dizia na alma dela. Tranquilíssima, calma. Vi que ela pensou um pouquinho e, provavelmente, pensou o seguinte: “Uma ponta de verdade tem. Eu preciso analisar melhor. Muito obrigado”.

Brincou um pouco a respeito do fato e a conversa continuou inteiramente pacífica. Num ou noutro encontro que depois tivemos, ela dizia, brincando: “Eu, que tenho tal defeito…”.

Aí está!

Nota: Vide também a matéria publicada em “Catolicismo” Revda. Madre Maria Letícia da Virgem Misericordiosa (* 10-3-1900 + 2-5-1974): “um dos baluartes da defesa da sã doutrina”

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