É pelo sofrimento que a Providência lapida nossas almas. Onde há coragem de sofrer, ali está a alegria

Conversa durante chá no Eremo Praesto Sum, 17 de janeiro de 1989

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

Ilustrações: Para mais informações sobre a vida e o processo de beatificação do Padre Reus https://padrereus.org.br/padre-joao-batista-reus/ . Foto da coroa do Rei Luís XV de França: Wikipedia, trabalho pessoal de G. Garitan CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=126644673 

 

Os sofrimentos na terra, meu filho, são os mais diversos possíveis. A vida está organizada por Deus de um modo que, depois do Pecado Original, ela funciona como oficina de lapidação de pedras. Imagine uma oficina enorme de lapidação de pedras. Então tem pedras de todo tamanho, de todo formato, de toda espécie de resistência, toda espécie de consistências; e, por causa disso, também tem aparelhos, instrumentos, etc., que servem para cada pedra, em cada circunstância, etc.
Assim também são as nossas almas. Em princípio, as nossas almas são de pedra. Mesmo quando aparecem almas muito moles, almas muito sem energia, quando se trata de um certo ponto interior, o homem é uma fera. O mais preguiçoso, o mais mondrongo, o mais nulo dos homens, ele é nulo enquanto não se toca num ponto que ele considera fundamental. Não quero nenhum pouco dizer que seja fundamental, mas ele considera fundamental. Quando se toca ali, ele vira uma fera! Em geral é um ponto de apego, e de apego ruim. E esse apego ruim é uma coisa que precisa lapidar.
* Todos temos pedras a lapidar
Então, a Providência permite que aconteçam coisas, às vezes manda acontecer coisas que pedem à pessoa sacrifício daquilo, e a pessoa tem que sacrificar-se naquele ponto. Que pontos são?
São as coisas mais variadas. São coisas internas, interiores, são coisas exteriores, isso varia por assim dizer ao infinito. Um, por exemplo, será vaidoso em extremo, e ele não pode consentir na idéia de que alguém seja mais do que ele, em qualquer terreno. Em qualquer ambiente onde está, conforme forem as capacidades dele, ele procura ser o primeiro. Então é o primeiro, por exemplo, porque procura ser o mais informado. Então sabe coisas que é um colosso. Outro procura ser o mais engraçado, conhece piadas e faz todo mundo rir. Outro procura ser o mais gentil. Outro procura ser o mais sério, mais imponente. Outro mais inteligente, ou mais sábio. O que quiserem! Numa roda de gatunos, um procura ser mais gatuno do que os outros, para os outros acharem bonito. Até lá chega.
* Os sofrimentos que a Providência permite
Então, a Providência permite que aquilo seja lapidado com sofrimentos. De que maneira o sofrimento lapida isso? Vamos supor duas hipóteses: Uma alma boa, que está em estado de graça, e uma má, que vive habitualmente fora do estado de graça.
Na alma boa a coisa apresenta o seguinte. A pessoa diz: “Não, eu estou disposto a fazer tal coisa, tal, tal, por amor de Deus, tal coisa, tal outra, tal outra”. Aparece uma circunstância em que ele, que se julga um colosso, para satisfazer a necessidade de apostolado, vai ser obrigado a não sobressair naquele ponto. “Tout court” [propriamente assim]!
Vamos dizer, um homem se julga letradíssimo. De repente recebe uma carta do Superior Geral da Congregação dele dizendo o seguinte: “Comunico a V. Reverência que no último Capítulo, V. Reverência foi mandado para ser bedel no grupo escolar das Ilhas Fiji, onde nossa Congregação tem uma casa”. Ele estava esperando ser Provincial… Mais ainda. Ele, nas vésperas, passou por uma sala, e viu um religioso que não gostava dele dizer: “Eu já posso lhes anunciar que o Capítulo vai transferir o Padre tal, ou Irmão tal, para as Ilhas Fiji”. Então ele está vendo ali o dedo daquele que não gostava dele. Mas ele fez voto de obediência.
E, então, ele tem que ver naquela permissão que a Providência deu que acontecesse aquilo, um desígnio da Providência para ele, pelo qual ele tem que lapidar o orgulho dele, sendo bedel nas ilhas Fiji. Ele sabe que em toda Congregação, nos primeiros dias do ano se distribui um boletim com as novas nomeações. Então, ele foi até aquele momento professor na Universidade de Louvain, ou no “Angelicum” de Roma, na [Universidade] Gregoriana de Roma, qualquer coisa. Depois, ilhas Fiji… Ahhh!
E toda a sua Congregação pergunta: – O que é que aconteceu para esse homem ir para as Ilhas Fiji? O que é que ele fez? – Fulano, por que é que você vai para as Ilhas Fiji?
– Porque mandaram os nossos Superiores.
No dia seguinte, ele é visto na biblioteca procurando livros sobre ensino primário, porque há tanto tempo que foi o ensino primário dele, que ele já não sabe como é, e ensino primário é entre selvagens, para poder lecionar aos índios das ilhas Fiji. Ele vai lá, se dedica, etc., na paz da alma dele! É o esmeril que foi posto em cima do brilhante.
* O esmeril da obediência
Eu conheço o caso de uma religiosa, que já morreu, e morreu há bastante tempo. Ela fez para a Congregação dela uma fundação de uma importância extraordinária. Mas tudo parecia exigir que ela continuasse mais alguns anos na direção desse estabelecimento que ela fundou, para encaminhar tudo direito. E para isso ela tinha dotes excepcionais.
Ela me contou que ela recebia – era um dos ofícios dela – ela recebia as cartas da Provincial dela para a Superiora Geral. Recebia aberta, para ela fechar o envelope, porque ela fechava os envelopes todos da correspondência importante. E que era uma carta aérea, e naquele tempo – não sei se ainda é assim – os envelopes de papel aéreo eram um pouquinho transparentes.  E ela não leu a carta – aliás, cometeria pecado mortal se lesse – ela molhou aquilo direitinho, mas na hora de fechar, de fazer uma certa pressão para a cola aderir bem, ela viu através do papel, na parte transparente, o seguinte: “Já que a Madre tal vai sair de São Paulo…”
Ahhh! A obra vai cair por terra! Vai haver isso, vai haver aquilo, vai haver aquilo outro, etc., etc. De fato ela foi mandada para uma cidade secundária na França, onde se apresentou à Superiora, e a Superiora disse: “Ah, Madre, a senhora estava nos fazendo falta aqui. Nós estávamos precisando de uma Irmã muito simples, muito modesta, e que lavasse as panelas”. E foi lavar as panelas!
Eu a vi anos depois disso. Ela estava… A gente via que ela tinha levado um baque medonho! Mas tinha se reconstituído, e ia ser mandada para o Rio Grande do Sul, para fundar outra coisa como ela tinha fundado em São Paulo. Para, provavelmente, depois ser mandada lavar panela em outro lugar. Esmeril, esmeril, esmeril! É um sofrimento!
* Os mais variados sofrimentos que nos envia a Providência
Mas outros sofrimentos são diferentes. Nossa Senhora manda, por exemplo, uma consolação enorme. A pessoa pensa que está no Céu na terra. Reza, o tempo passa depressa. Abre um manualzinho de oração qualquer: “Oh, meu Jesus…! Ahhh! As palavras parecem falar! “Meu Jesus! Jesus é meu e eu sou de Jesus, que coisa maravilhosa!” E é mesmo. Pode dar ocasião e é bonito que dê ocasião a grandes reflexões, grandes considerações.
Depois: “Ó – exclamação de alegria – ó, Salvador, minha alma inteira vos diz ohhhh’!” Em três palavras: “Ó meu Jesus”.
Um dia a pessoa amanhece, vai correndo para a capela para poder rezar um pouquinho, antes da Comunhão… Árido. Não tem nada. Comunga na aridez, ação de graças na aridez, retira-se na aridez. Impressão: “Estou decadente”. Vem o demônio: “Está claro! Eu há tempo estava dizendo para você. Você estava decaindo, você resistiu ao que eu dizia, porque era eu que estava dizendo. Era eu! Mas dizia para o seu bem… Agora veja, você está decaindo.”
Mas, meu Deus, eu procuro no que é que eu estou decaindo ou não estou. Como é que é isso, ó Deus! Tá, tá, tá.
Bem, anos de aridez. Esmeril!
Outra coisa. A pessoa tem um defeito real, verdadeiro, e consentido. O demônio se aproxima dele: “Está vendo esse defeito assim? Você já prestou atenção como é feio? Olha aqui, esse é você. Você pensa que é digno de estar no meio dos seus irmãos? Que petulância! Ao menos tenha pudor e retire-se, vá embora! Não macule com a sua presença a morada dos justos. Saia, saia logo!”
– Não, eu vou resistir etc.
O demônio faz um dia a pessoa sentir o calor do dia, mas anomalamente. A pessoa vai e abre a janela. O demônio sabe que em frente daquela janela tem uma “fassura” [mulher de má vida]. O sujeito olha para a “fassura”, não tem certeza se ele consentiu ou não no olhar. O demônio: “Está vendo? Você já caiu em pecado mortal. E agora, como é que é?!”
– Não, não caí!
– Presunçoso, orgulhoso!
– Bom, então vou me confessar.
– Também não pode, porque não pode acusar um pecado que não fez. Você não tem certeza…
– Então como é que vou fazer?
– Ah, ahahah! Não tem saída. Venha comigo. Eu te dou uma solução. Volte para ver a “fassura” na janela…
Assim, olhe, há pencas de coisas! Ou então, de repente é uma doença. Uma doença longa, aborrecida, que faz sofrer, que humilha etc. A doença não passa. São as coisas mais variadas que pode haver.
* Vida do Padre Reus
Os senhores já ouviram falar do Pe. Reus?
(Sr. –: Não senhor.)
É um padre que era jesuíta, aqui no Rio Grande do Sul. Jesuíta alemão, ele foi educado no Brasil, veio menino para o Brasil, mas ele era alemão. A cara mais simpática que uma pessoa possa ter. Mas vê-se na cara simpática dele um homem de alta ascese, de princípios muito firmes e reto. Posto num colégio dos jesuítas contemporâneo, meninos de praticamente –  os senhores não alcançaram, mas são homens que hoje devem estar com 50, 60 anos. Esses meninos “pintavam o caneco”. O padre disciplinava. Os meninos reclamavam, o diretor do Colégio dava razão aos meninos.
– Pe. Reus, a gente não apanha moscas com vinagre mas com mel! O senhor quer atrair esses meninos para Nosso Senhor, seja a imagem da doçura de Nosso Senhor. Então não aperte. Não insista nas coisas que são duras…
– Pe. Superior, isso eu não posso. É contra a minha consciência, porque a Doutrina Católica manda outra coisa.
– O senhor não compreende? Os tempos mudaram!
– Mas, Pe. Superior, mudou a doutrina?
– Insolente! Querendo discutir com seu Superior. O senhor não serve para esse cargo, vai para outro lugar. O senhor vai ser Capelão das irmãzinhas de não sei o quê, que têm convento aqui próximo.
Vai lá, repete a cena com as irmãzinhas, porque por toda parte se encontra esse espírito. Ele acabou inteiramente inútil, em plena fase de produção, trancado no seu quarto, recebendo continuamente as mais admiráveis visões de Nosso Senhor e de Nossa Senhora! A respeito das quais o Superior lhe deu ordem de registrar todas e de não contar a ninguém. E como eram visões extensas, passava horas escrevendo, fechava o caderno, terminou o dia.
Assim foi mais ou menos até a morte dele, o resto da vida. Hoje está com processo de canonização adiantado. Mas, ele não sabia.
* Mais tétrico do que o quadro da vida religiosa…
Bem, os senhores dirão: “Mas, Dr. Plinio, o quadro da vida religiosa então é tétrico”.
Eu digo: É. Mais tétrico do que ele só o quadro da vida não religiosa! Porque os filhos das trevas que andam trotando por aí são exímios nisso: em esconder o que sofrem. Mas o que no mundo se sofre é uma coisa medonha! Mas medonha!
Na minha condição de leigo, eu passei a vida inteira não dentro do mundo, mas a dois passos, olhando, como os senhores também, olhando e vendo como são as coisas. São coisas inenarráveis.
Por exemplo, um casal muito elegante, muito fino, os dois muito bem apessoados, dinheiro, boa situação social, unidos. Um dia a mulher, a senhora, anuncia ao marido que ela tinha concebido uma criança. E o marido: “Ah, é? Sei.”
Mas foi para o banheiro, era de manhã cedo, levantou-se para tomar banho na hora normal, e não saía do banho. Começaram a achar esquisito, bateram na porta, se ele tinha alguma coisa. Ele não respondia. Afinal de contas, mandaram arrombar a porta. Estava ele sentado dentro da banheira, perfeitamente sadio, e dando risada.
– Mas, por que você fez uma coisa dessas?
– Eu queria ver se ela, diante do susto de minha morte, abortava essa criança!
Agora, por quê?
– Porque eu tenho medo que ela conceba a criança, e que passe alguns meses com essa criança no corpo dela, parecendo uma vaca! E eu tenho vergonha disso. E prefiro que aconteça contra essa criança qualquer coisa, menos que a criança venha a lume e seja ocasião dessa história.
Bem, ela continuou rica, bonita, com vida social muito intensa, ele também. Mas a partir disso uma separação, por onde ele começou a chegar cada vez mais tarde… Os senhores entendem o que quer dizer “chegar mais tarde”, o que é que um homem faz quando chega às 4 ou 5 horas da manhã em casa… Chegar cada vez mais tarde, e no fim das contas praticamente muitas noites não dormir em casa.
Bom, ela arranjou um “fassur”. E para arranjar o “fassur”, ela não encontrou nada de melhor do que tomar como “fassur” o noivo de uma prima-irmã dela. Quer dizer, escangalhou aquele lar. Bem, e a menina que afinal nasceu, não abortou, a menina foi o desespero e o espavento deles. O que eles sofreram, por pecados próprios, por culpas próprias, é incomparavelmente maior do que sofre qualquer religioso.
E assim eu conheço outros casos, outras situações, que não tem palavras, da crueldade do mundo para com aqueles que estão dentro. E o que é pior é o seguinte: especialmente no mundo, a crueldade dos ruins para com os bons, na medida em que haja bom dentro do mundo.
* A vida é um vale de lágrimas
Bem, quer dizer, a vida é um vale de lágrimas, e tem que a pessoa sofrer. Mas dos modos mais inesperados possíveis, mas tem que sofrer.
Dr. Edwaldo contou-me uma vez uma coisa espantosa. Um médico amigo dele contou. Ele, médico, tinha cronicamente um defeito qualquer na vista. E ia normalmente de tempos em tempos ao oculista para ver como estava aquilo. Quando chegou a vez dele ir ao oculista, ele foi para fazer-se examinar. Sentou na cadeira, o colega dele, oculista, examinou e disse a ele simplesmente o seguinte:
– Fulano, eu tenho uma notícia para dar a você que não é boa.
– Mas, qual é?
– Você está com um câncer em cada uma das vistas!
Não imaginava aquilo! Pummm! A explosão! Os senhores estão vendo o que é: é cegueira, e a loucura, porque sobe até pelos miolos, etc., os desfalecimentos, desmaios, defeitos circulatórios, etc., e a morte! É assim, é assim! A vida de todo mundo é essa, essa é a vida quando a gente quer olhar de frente.
* Onde há coragem de sofrer, ali está a alegria! Querem pegar os felizes dessa terra, não escolham entre os que não sofrem, porque estão na véspera do sofrimento
Não sei, meu filho… Está trágico o que eu estou dizendo! Mas a vida só tem uma beleza: é quando a gente enfrenta essas coisas como um herói cheio de fé! “Agüento! Seja o que for, eu agüento! E vou!”
Eu li, outro dia, uma palavra de Santo Ambrósio, que trabalhou na conversão de Santo Agostinho, citada num discurso de João XXIII: Ubi patientia, ibi laetitia. Onde está a paciência – mas a paciência em latim não é essa paciência de não ficar bravo quando os outros aborrecem, é outra coisa: é a coragem de sofrer, a paciência; isso é que quer dizer – onde há a coragem de sofrer, ali está a alegria.
Querem pegar os felizes dessa terra? Não escolham entre os que não sofrem, porque estão na véspera do sofrimento. Procurem uma outra coisa. Procurem aqueles que enfrentam o sofrimento com força: é ali! Ainda são os que sofrem menos.
Isso é a resposta… Tinha mais algo a responder na sua pergunta?
* Sofrer por amor à Santa Igreja Católica
  (Pergunta: inaudível)
É exatamente isso. A coroa de espinhos é o fato de nós sofrermos, e não sofrermos só por razões individuais, porque deu uma doença, porque tá, tá, tá, mas sofrermos por amor à Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, pela causa da Civilização Cristã. Quer dizer, nós poderíamos nos subtrair a esse sofrimento, sair de dentro desse sofrimento como uma ovelha sai de dentro de um carrascal de espinhos, e andar pela estrada.
Mas, não saímos, porque nós queremos lutar por Ela, ainda que seja na dor, e até com preferência na dor. E é isso que nós devemos fazer, não é verdade?

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