O itinerário da traição de Judas – É na hora da aridez que provamos nosso amor a Nosso Senhor

Santo do Dia, 10 de agosto de 1985 — Sábado

 

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

blank

A traição de Judas (Giotto, Capela degli Scrovegni, Itália)

Há muitos, muitos anos, por necessidade de estudo, eu sempre inimigo de leitura de romances, tive que ler, entretanto, o romance de um autor francês que eu cito, aliás, na RCR, Paul Bourget. O romance era “Le sens de la mort”: “O sentido da morte”.
Apresentava a história de um médico famoso que tinha chegado às culminâncias da ciência médica mundial e que, como tal, tinha curado muitas pessoas da mais alta sociedade francesa. Num tempo em que – se tratava de pouco depois da I Guerra Mundial – essa alta sociedade era composta de elementos da antiga aristocracia, elementos dos mais altos da classe intelectual, do mundo diplomático, do exército, enfim, o escol de tudo quanto a França tinha; certos elementos do alto clero etc., formavam um conjunto de sumidades que eram a alta sociedade daquele tempo.
Esse médico estava numa reunião social brilhante. Em certo momento, como era costume na Europa daquele tempo, anunciaram que era a hora do jantar e os senhores se apresentaram e deram o braço às senhoras, e entraram em fileira na sala de jantar. Ele ficou a uma certa altura da fileira, com uma senhora com quem foi conversando.
Mas ele estava, por uma coincidência qualquer, num dos últimos [lugares] da fileira. Então, ele via aquele longo cortejo de pessoas atravessando várias salas do apartamento apalaciado em que estavam, tendo tempo, assim, de olhar as pessoas por detrás. E com um diagnóstico agudíssimo que ele tinha, ele olhava para as pessoas e percebia em cada um – era um jantar de pessoas de mais de 50 anos, para 60 anos, e daí para fora – ele percebia em cada um do que é que ia morrer. Sinal de apoplexia, este, provavelmente vai morrer de repente, está conversando no meio dos seus etc., cai e cai morto. Outro, é um pescoço muito cheio, muito gordo, este vai morrer de gordura no coração, a doença vai evoluir assim, assim e assim… E assim cada personagem que passava, ele via aqueles homens de casaca com condecorações; aquelas senhoras com grandes trajes faziam uma volta e iam-se colocando; e ele ia vendo não com um grau de certeza absoluta, mas com um grau de grande probabilidade, que se com aquele ou aquela outra as coisas corressem normalmente, o fim seria este, o fim seria este, o fim seria este.
Então, pegou nele a pergunta seguinte:
“Do que é que adianta viver? Porque se todos nós que estamos aqui nos esforçamos de tal maneira para nos manter, ou para chegar a esta culminância que temos aqui, a esta alta categoria em que estamos, mas nós trazemos para quem sabe ver, trazemos escrito no rosto o atestado de óbito que vamos ter; à medida que nós fomos vencendo na vida, nós fomos gastando as nossas energias, e nós fomos esculpindo em nós a cara da nossa tragédia final. Qual é o senso de vida? Qual é o sentido da morte?”
Me parece a pergunta, posta pelo romancista Bourget, uma pergunta muito interessante.
* Do mesmo modo pode-se ver o por onde cada um pode trair a vocação
E acontece que, por vezes, quando uma pessoa tem a experiência da vida, quando tem a experiência de nossa vocação, faz-se também uma pergunta assim. Já não é sobre a doença mortal que pode atacar uma pessoa. Olhando, olhando, olhando… percebe bem: aquele está firme enquanto tiver tal virtude. Se essa virtude decair, ele derrapa! Aquele está ameaçado porque ele está concedendo a tal vício e se nele se acentuar, ele cai. E aquele outro está em tal situação. Aquele outro em tal, e tal e tal… e a gente percebe no alto da correspondência da vocação o penhasco por onde aquela alma, em concreto, pode cair.
Eu me lembrei do Paul Bourget, do “Le sens de la mort”, quando os senhores me fizeram este pedido aqui de que eu falasse a respeito de como cai, possivelmente uma alma, como pode descer do píncaro da vocação correspondida para os baixios da apostasia e para os infernos da punição final – se Nossa Senhora concede uma graça que à última hora não é correspondida, então é a perdição… Por uma sucessão curiosa de fatos, vós me fizestes esse pedido e eu olhei para esse auditório cheio de gente. Naturalmente, olhei para os que estão mais próximos de mim, mas dá para olhar também e ver os que estão mais longe. E quantas e quantas fisionomias a gente pega e a gente diz: aquele pode cair assim, ele pode cair de tal outro jeito.
Não se espantem: “Plinio, tu que estás com 76 anos, e és falível e mortal, tu olha para ti mesmo: como podes cair?”
Porque enquanto o homem está vivo, ele corre o risco de perder a sua alma; enquanto o homem está vivo ele tem a possibilidade de salvá-la; enquanto o homem está vivo, ele corre o risco de perdê-la.
Então, a pergunta emerge trágica do exemplo que foi dado aqui. Os senhores entenderam bem o exemplo, um exemplo clássico na história das almas. O menino que serviu de São João Evangelista para Leonardo da Vinci para pintar “A Ceia”, trinta anos depois – Da Vinci durante esse período ele pintou muita gente, mas nunca encontrou um com a cara de Judas, bastante infame para representar aquele papel em “A ceia”. Faltava só essa cara para completar o quadro, mas bandido igual o Da Vinci não tinha encontrado. Um dia, passando por uma rua, ele viu um e disse: “Venha cá, eu te dou tanto…” o resto da cena, os senhores viram. Era o antigo, de olhar puro, de aspecto virginal, que tinha representado S. J. Evangelista, era esse que representava Judas. Como caiu.
Como pode ter caído? Por onde pode ter caído? Como são essas coisas?
São tantos os lados por onde uma pessoa cai, são tantos os lados por onde uma pessoa pode rolar e despencar-se, são tantos os lados que o importante é a pessoa mais ou menos, perceber por onde pode cair, porque tem uma coisa interessante: se ele quiser agir em sentido oposto à linha por onde pode cair, ele encontra a linha por onde deve subir. Ele encontra a linha de sua ascensão na reta da sua decadência. Mas é verdade também o contrário: se ele quer saber o por onde ele pode cair, ele abra os olhos: foi por onde ele subiu. Não pense que aquele é o ponto mais firme dele e que ali ele não precisa tomar cuidado, porque muitas vezes é por lá que ele cairá.
Não sei se estou claro? (Sim.)
* Impostação para a vida espiritual: cuidado, que por nós mesmos nós caímos
Isso leva a uma impostação em matéria de vida espiritual. Essa impostação é que eu queria fixar aqui.
Até o fim da vida nós nos devemos lembrar disso. Todos nós somos frágeis e a única força que nós temos é a confiança em Nossa Senhora, o recurso a Nossa Senhora. Porque nós, por nós mesmos, não merecemos alcançar nada de Deus, porque o homem é ruim! Nós somos ruins! E não merecemos alcançar nada de Deus. E se Ela não pedir nós não obteremos nada. Mas como Ela é Santíssima, insondavelmente Santa, indizivelmente Santa, e Ela obtém tudo de Deus; e, como de outro lado, ela tem de nós pena, porque Deus é nosso Pai e nosso Juiz, mas Maria Santíssima que é nossa Mãe não é nossa juíza – Ela não nos olha para nos julgar, Ela nos olha para nos amar e para nos salvar, devemos dizer a Ela:
“Se Vós tivésseis em relação a mim uma função de judicatura, era melhor de uma vez, que Vós me tirásseis desta terra no momento em que estou no estado de graça, porque eu não saberia [viver], eu não me  sustentarei. Mas como Vós sóis Vós, e como Vós podeis tudo, e Vós quereis dar tudo, aí sim, ó Mãe e Senhora, eu tenho coragem de viver e vos digo: tende pena de mim!”
Mas para isso, meus caros, é preciso que cada um tenha um olhar implacável para si mesmo. Cada um de nós que está aqui é implacável para consigo mesmo?
* O que é ser implacável para consigo mesmo
Eu não sei bem se nas tão jovens idades que estão aqui, se sabe o que é “implacável”.
Eu acho que pelo tom da voz, os senhores entendem mais ou menos o que é implacável. Mas que vale a pena explicar. Aplacar alguém não é prender uma placa em alguém. (Risos). Nós estamos de novo na etimologia, mas é um modo de se analisar as palavras…
Dar prazer, comprazer… nós, em português dizemos prazer, com “p” e “r”. Noutras línguas derivadas do latim é com “p” e “l”: “plaisir”; “piacere”. E daí para diante. Vem exatamente de aquele que tem prazer, que tem comprazimento no outro, este está aplacado, está prazeroso, está bem disposto, bem orientado em relação àquele. Quer dizer, aquele a quem eu alegro, este eu aplaquei! Tinha cólera comigo, mas eu fui bom com ele, eu andei bem na presença dele, e eu amansei a cólera dele; dei-lhe “plaisir”, dei-lhe prazer; ele ficou aplacado comigo.
Os senhores veem como é bonito conhecer a história das palavras. Quando ela não é dada seca numa aula, mas é dada a propósito de uma coisa viva, que se tem no momento palpitante de vida (é um problema dos senhores, é um problema de todos os homens na terra): aplacar a Deus. O que é aplacar? Compreender, dar prazer, dar gosto a Deus; depois de ter dado desgosto, dar gosto. Ele então ficou aplacado.
Os senhores podem ouvir falar de aplacar uma tempestade. A tempestade estava furiosa: Nosso Senhor ordenou que se fizesse paz. A tempestade se aplacou, o mar ficou aplacado; o ar ficou aplacado. Por quê? Porque a palavra do Divino Salvador disse: “faça-se a paz!”
Então, nós devemos ser conosco – qual é a tendência que temos conosco mesmos: é a tendência de ser implacáveis conosco ou sermos sumamente (se a palavra se pudesse empregar) “placáveis” conosco?
(Silêncio).
Era normal que eu ouvisse um brado partir do auditório [Somos implacáveis, Dr. Plínio!]… mas não estou ouvindo esse brado, o que mostra que nós não somos implacáveis! Porque todo o homem tem tendência a ser mole consigo mesmo. Todo homem tem tendência a formar um bom juízo a respeito de si mesmo. Todo homem tem tendência a julgar-se com atenuantes exageradas. E poucos homens têm um empenho sério, limpo, honesto e vivo de se julgarem exatamente como são.
Esses que se julgam exatamente como são, sem escrúpulos, mas vendo a verdade como é – o escrupuloso imagina defeitos que a pessoa não tem. Eu não preciso imaginar defeitos que eu não tenho para eu ser humilde. Basta eu olhar quais são os pendores normais com que eu, concebido no pecado original, nasci. Basta olhar para a verdade para mim, que eu deito sobre mim mesmo um olhar implacável:
* Olhar sobretudo para as agravantes e não para as atenuantes.
“Plínio, Plínio! Tu tens por tua natureza, por tuas inclinações, tais e tais pendores. E se prestas alguma coisa é porque tens os olhos postos sobre esses pendores e os agarras aqui pelo [cangote]. Não tenhas um momento de falsa indulgência para contigo. Não procures saber quais são tuas atenuantes. Procures saber quais são tuas agravantes!”
        Erraste? Analisa bem que agravantes tiveste. Analisa bem o tamanho do teu erro. Mede o ilogismo de teu pecado. Execra até o fim a má ação que cometeste, ou para a qual, simplesmente, de longe sorristes. Ou nem isso, antes de sorrir para ela, sentistes notar em ti um certo comprazimento para com essa má ação. E já aí tu tens que te olhar com severidade. Severidade contigo mesmo, honesta, proba. Não precisa ser furiosa, mas precisa ser indignada.
Se cada um se olha assim, o que é que acontece? A primeira coisa é que ele tem paz na sua alma. Os senhores talvez não calculem, mas é possível que nas jovens idades dos senhores, os senhores sintam as suas almas agitadas, de vez em quando, sintam as suas almas inquietas, perturbadas. Os senhores não sabem por que… Muitas vezes é porque não se analisaram de um modo implacável. E porque não se conhecem bem a si próprios, sentem uma falta de identidade entre a figura que os senhores fazem de si mesmos e aquilo que são. Uma coisa que não cola.
Um, por exemplo, pensa que ele é, não sei, de uma retidão à toda prova. Mas ele, de repente, se surpreende passando rasteira em quem ele não deveria passar. Então, vem aquela coisa: é verdade… mas é que ele me fez tal coisa assim. Eu, então, não tive outro jeito senão descontar sendo desleal com ele. “Uma deslealdade com outra deslealdade, Dr. Plínio: menos vezes menos, dá mais…”
Não senhor, porque ali não está presente só você e o outro, está presente Deus! E tu não podias fazer isto, porque desagrada a Deus. Ainda que seja com o pior dos homens, Judas que seja, tu poderias e deverias ter em relação a ele toda a execração. Caluniá-lo, atribuindo-lhe uma ação que ele não fez, essa não! Porque não se tem o direito de fazer isso! E tu o caluniaste! Ele era um tal miserável, um tal lixo, um tipo tão infame… como se não bastasse isso para ele você ainda carrega a mísera reputação dele com uma coisa ainda pior. Até lá a justiça de Deus não chega. Deus pode condená-lo ao inferno, mas não o condenará por um pecado que ele não cometeu. Deus será justo com ele até o último instante, porque assim é Deus. Tu não foste justo com ele!
Qual é a tua atenuante? Tu não tens atenuante! Dobra o joelho em terra e pede perdão!
“Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordiam tuam et secundum multitudinem miserationum tuarum, dele iniquitatem meam – Tende compaixão de mim, ó Deus, segundo a Vossa misericórdia e segundo a multidão das vossas compaixões, tende pena de mim!”. Assim deve rezar o homem na hora que olha para os seus próprios defeitos. Para este, Deus sorri. A sinceridade e a limpeza com que ele se analisou, inclinam Deus ao perdão. Nossa Senhora rezou por ele e obteve uma graça por onde ele foi honesto no se julgar. E por causa disto, Deus foi benigno com ele. “Vem meu filho, volta para a casa de Teu Pai !”.
É magnífico! Mas para isso é preciso olhar bem direito as agravantes que a gente tem.
Alguém dirá: Dr. Plinio – isto eu vou dizer para algum fariseu que ouça esta fita; ele que aprenda a se olhar a si próprio e a compreender como ele é farisaico: “Dr. Plinio, não é verdade que o homem deva olhar só as suas agravantes e não deva considerar as suas atenuantes. Porque um homem para se confessar bem precisa saber quais são as suas agravantes e as suas atenuantes. Do contrário, ele faz uma confissão errada, ele se confessa de um modo como não foi. A confissão tem que ser verdadeira. O Sr., portanto, não está dizendo uma coisa conforme com a doutrina católica. E, agora, afinal eu lhe peguei!”.
– Não, fui eu que te peguei! Porque é evidente que eu estou falando uma linguagem acomodatícia. Eu não estou dando uma aula, eu estou fazendo uma exposição. E uma exposição na intimidade. Evidente que eu empreguei a expressão com a acomodação que é legítima nela, numa exposição desta natureza. O que eu quero dizer é o seguinte:
O homem deve ter uma noção sumária de suas atenuantes, é claro, mas ele tome cuidado no procurar suas atenuantes, porque ele rapidamente as incha, rapidamente ele as estufa. E se eu fiz um exame de consciência em que eu pensei muito mais nas minhas atenuantes do que nas minhas agravantes, o que é que eu vou fazer? Uma confissão de péssima categoria. Por quê?
Porque todo homem gosta de pensar nas suas atenuantes, ele não gosta de pensar nas suas agravantes. E para ele ser sério, ele tem então que corrigir a disposição de sua alma, a má tendência de sua alma, deitando um cuidado muito maior em pegar as suas agravantes do que as suas atenuantes. Porque as atenuantes, o amor de um indivíduo a si mesmo leva-o a ter logo uma noção. A agravante, não. A patifaria dele o leva a não querer olhar. E como todo homem concebido no pecado original tem dentro de si um patife – não tenham dúvida -, é preciso agarrá-lo e levá-lo a reconhecer: “na minha confissão, eu devo declarar assim!”.
Quando, às vezes, não é matéria de confissão, mas uma imperfeição, uma coisa que não é uma matéria necessária de confissão, eu devo apesar de tudo olhar e dizer: “Veja a minha tendência qual é, veja o pecado original que forma de devastação fez em mim. Ainda bem que Nosso Senhor Jesus Cristo me remiu do alto da Cruz, e que eu tenho a possibilidade de me salvar. Ainda bem que Nossa Senhora reza por mim, para que se aplique sobre mim, se despeje sobre mim a misericórdia de seu Divino Filho. Ainda bem… ainda bem…! Mas, ou eu presto atenção nas minhas agravantes, ou a coisa leva à breca.”.
Meus caros, isto está claro ou não?
(Sim)
* A causa das apostasias pode-se entender pelo itinerário da traição de Judas
Então, eu dou um passo para a frente. O passo para a frente consiste no seguinte: os senhores considerem aqui este auditório, quantas e quantas gerações eu tive [ocasião de ver pessoas] que tinham as boas disposições que os senhores têm! E dessas, quantas apostataram? Por que chegaram a apostatar?
As causas são as mais diversas, mas eu posso dar uma causa que se dá com uma certa frequência. Posso, para atender ao pedido que os senhores estão fazendo ou fizeram há pouco – o que eu fiz até agora é uma introdução, uma larga introdução –, eu posso fazer o seguinte: imaginar uma história de Judas.
O Evangelho nos conta alguma coisa sobre Judas, mas nós não sabemos a história dele qual é. Nós podemos imaginar uma história de Judas, que é pura imaginação. Não é coisa real, é pura imaginação. Mas nessa imaginação que não contunde, que não entra em atrito com o Evangelho em nada, nessa imaginação nós podemos conceber como é que pode cair uma pessoa e como, portanto, podemos cair nós.
Iscariotis é uma palavra que ficou hedionda. Iscariotis… Judas já é uma palavra medonha. O nome Judas… parece que a palavra está carregada de uma maldição que não se pode ver nela nenhuma forma, nenhum grau de beleza. Há um Apóstolo São Judas Tadeu. O nome Judas é frequente na [Sagrada Escritura]. Uma das tribos era a tribo de Judá etc. Mas Judas engarrafou o nome dentro da hediondez para todo o sempre.
Iscariotis…. A palavra iscariotis é horrorosa. E a gente tem a impressão de que ela forma um complemento com Judas, é como o rabo do monstro. É uma coisa horrorosa. Dá a impressão de um bicho torpe, imundo e que leva atrás de si um rabo comprido que ele agita de um modo desordenado. Judas Iscariotes…
Iscariotes, de fato, é uma palavra inócua, quer dizer nascido em tal cidade da Judéia, Ischariot, se não me engano, não me lembro bem…, iscariotes quer dizer, natural de tal cidade. Os antigos não compunham os nomes deles como nós os nossos. Por exemplo, um dos nossos pode chamar-se, não sei, José da Costa e Almeida. Pela composição brasileira do nome seria assim: José, o nome pessoal; Costa, o nome da família da mãe; Almeida, o nome da família do pai. É o modo tradicional de compor o nome de família no Brasil. Ou só põe o nome do pai. O meu caso por exemplo, a família do meu pai tem o nome que eu uso, Corrêa de Oliveira. Por essas ou aquelas razões, eu não levo o nome de minha mãe. Só ponho Plinio Corrêa de Oliveira. Muito simplesmente falando, o nome Ribeiro é um nome frequentíssimo, se encontra com cem nomes. Não quer dizer nada. Para eu me chamar Plinio Ribeiro só, como a família de minha mãe era muito conhecida em São Paulo, começariam a me chamar só de Ribeiro. Eu não sou Ribeiro, sou Corrêa de Oliveira. Para que meu nome não fosse deformado pelo uso, eu achei melhor não pôr esse nome. Plinio Corrêa de Oliveira. Minha mãe achou que estava bom e está acabado.
Naquele tempo, a maior parte das pessoas não fazia assim. Era fulano, filho de Sicrano de tal lugar. Como eram cidades pequenas, todo mundo se conhecia, dizendo, por exemplo, João, filho de Pedro, nascido em tal cidadezinha, já sabe que é o Pedro daquela cidade, porque há um só. Está identificado e não é preciso mais nada. Ele era Judas Iscariotes.
* Imaginando uma história de Judas jovem e seu encanto primeiro com Nosso Senhor
Nós podemos imaginar a vida de Judas assim: vamos imaginar que a cidade se chamasse Cariot. Cariot, uma cidadezinha agradável, risonha, relativamente confortável, situada num lugar alto onde se desvendasse um bonito panorama. Nessa cidadezinha se fizesse plantação de alguma coisa de belo e poético. Digamos, por exemplo, é uma das plantações mais bonitas que há, era uma coisa até profetizante do futuro de Judas: houvesse lindos trigais e belas parreiras. Trigal é uma plantação linda. Parreira, quando dão os cachos de uva, uma plantação linda.
Judas, um menino como outro qualquer, que nasceu de seu pai e de sua mãe, que teve uma infância com a inocência da infância, que brincou e que aprendeu à luz dos trigais e à sombra amena, salpicada de luz, das parreiras; e que vivia contente no lugar onde ele existia. Mas, mas, ele vivia numa época de decadência. Uma época em que a imoralidade generalizada na cidade dele, e em toda a Terra Santa, era terrível. E ele, menino, foi estranhando aquilo. E em algo não lhe agradava o ambiente em que ele vivia, porque havia uma fricção entre esse ambiente e algo de muito profundo nele. Ele ainda não sabia dizer o que era, mas enquanto ele notava que todos estavam inteiramente encaixados no ambiente, ele se sentia meio desencaixado no ambiente. Ele aí não se sentia bem. Ele queria algo que era melhor, que era mais perfeito, que era mais alto. Ele não sabia o que era. Mas ele começava, cada vez mais, a sentir a necessidade de alma de conhecer outra gente, com outro ambiente, que lhe falasse de outras coisas e pusesse sua alma numa outra clave. Era Nosso Senhor que lhe falava de longe para ele. Ele não sabia que era Deus que lhe falava na alma, mas era de fato Deus que o chamava e que o preparava para esse dia, único na vida dele.
Um dia, ele se distanciou dos companheiros e começou a andar sozinho, tristonho pelo trigal. Exatamente por uma estradinha pequena que separava o trigal das parreiras. Entre uvas e trigo, ele passeava sozinho sem saber se aproximava dele Aquele que ia se simbolizar para ele pelo vinho e pelo trigo.
E, em certo momento, de uma anfractuosidade de umas pedras grandes que lhe tapavam um pouco a vista, ele vê passarem onze pessoas. Vêm a pé, tranquilos. Um vai na frente, fala, todos ouvem com muita avidez. Ele sente alguma coisa que ele não sabe. Ele vê se aproximando em direção dele, é Aquele que fala e todos os outros procuram ouvir. Ele começa a ouvir, ao longe, à distância, a voz dEle. E a sua alma inteira voa para Aquele Homem. Que voz, que alma! Era Ele quem eu procurava!
Ele começa a andar e mal ousa chegar perto. Aquele Varão passa perto dele e ele ouve palavras de desapego dos bens da terra. “Não sede apegados aos bens da terra, procurai os do Céu; pensai nos pássaros do Céu; olhai os lírios do campo: não tecem, nem fiam, entretanto nem Salomão em toda a sua glória não se vestiu como eles”.
Ele foi andando… ele foi andando… já era noitinha, quando todos chegam numa estalajadaria, se sentam para comer e há uma boca a mais…
Um dos apóstolos pergunta severo: “Quem lhe deu licença de vir aqui?” Aquele Homem diz com doçura:
– Deixa-o… ele daqui por diante vai conosco. Não queres, Judas?
– Quero!
Um outro Apóstolo objeta:
– Mas os pais dele… donde tu és? Como te chamas?
– Eu me chamo Judas Iscariotis.
– Bom, então você é Cariot?
– Sim!
– Mas como é com a família dele?
Nosso Senhor diz:
– O pai dele, daqui a pouco, vai passar por aqui, e vai passar com a mãe. Eu arranjo o assunto.
Realmente, começam a comer e o menino esquece de comer. Ele ouve apenas o tempo inteiro Nosso Senhor falando coisas admiráveis que ele não entende todas, mas coisa extraordinária, ele admira até o que não entende.
Ele fica encantado, ele fica encantado! Logo mais, o sono baixa sobre ele, precisam carregá-lo para uma cama, deitam-no e ele perde consciência de si. Ele nem pensa mais em Cariot. As idéias estão voando para outro lado….
O pai e a mãe, ele não os quer? Quer. Mas tudo o que pai e a mãe lhe davam, está em Nosso Senhor Jesus Cristo de um modo tão eminente, que ele sonha com Nosso Senhor.

 

De manhã, quando ele acorda, ele abre os olhos, ele vê Nosso Senhor, seu pai e sua mãe que sorriem para ele. As palavras que ele ouve da mãe para o pai: “não, vamos deixá-lo ficar… e o pai diz: está bom, pode ficar.”. E Nosso Senhor diz: “Vem comigo! Agradece a teus pais e vem comigo!”.
Ele se despede dos pais, a mãe tem uma lágrima nos olhos, o pai tem uma esperança nos olhos… ele vai, e vai seguindo pelo caminho. Tudo o que ele deixou ficou para trás: os trigais, as parreiras, os cordeiros com que ele brincava, o riacho em que ele tomava banho com os companheiros, este companheiro e aquele cuja companhia ele gostava. Tudo mais foi ficando para ele para trás. Ele também se vê livre daquelas coisas do ambiente que ele detestava. Ele está vivendo no céu. Ele está encantado. Ó Judas Iscariotis, como chegou a ser bela a tua alma, no momento em que tu tinhas vivas no espírito duas noções: o mal daquilo tudo que deixaste; o bem de tudo aquilo que pegaste.
* Em pouco tempo passa o entusiasmo sensível e começa a saudade de Carion, porque seu amor diminuiu
Mas, um dia nessa idade é longo. Uma semana custa para passar. Um mês é uma eternidade. Em pouco tempo, Judas começou a achar que o tempo transcorria devagar. Ele começa a se maravilhar menos. Ele começa a se entusiasmar menos. Por quê? Porque, porque, ele começa a amar menos. E por que é que ele começa a amar menos?
Enquanto aquilo tudo era novidade, era fácil prestar atenção. Enquanto aquilo tudo era novidade, tudo era um deleite para ele. Mas quando foi ficando habitual, aquilo para ele ficou com menos sabor. E ele começou a se lembrar de Carion. Ele olhava para Carion e olhava para si mesmo, sem procurar as agravantes.
“Lembra-se de Carion, quando você andava por lá e você corria dentro do riacho; e você saltava pelos caminhos e pulava pelas pedras, como você era liiivre! Ó Judas, como você era livre… como é agradável a liberdade. Lembra-se de Carion, quando você brigava com os seus amigos, saía uma discussão feroz e você vencia eles? Como é agradável vencer e esmagar os outros. Aqui não, tem uma regra. Aqui não, todo o mundo é cordial com todo o mundo. Não há o prazer ácido da contenda, da peleja. Não há o imprevisto delicioso da bofetada que se dá e que se recebe e dos dois que rolam pelo chão, e dos quais sai um futuro diferente. Aqui é tudo tão normal… tão suave. Tu amaste esta suavidade no tempo em que tua alma se sentia só. Hoje, tua alma não se sente mais só. Tu recebeste o afeto que tu querias. Tu tens saudades de tua solidão.
Ó Carion, ó Carion, tu te lembras, quando o teu avô te dava alguma moedinha e que tu ias fazer compra na cidade de Carion? Tu te lembras a delícia, quando tu conseguias levar escondido um pirulito a mais? A delícia, a delícia do pecado ilícito, do pecado cometido e que era uma aventura? Podiam até te levar para a cadeia, apanhar na certa. Mas teus dedos eram ágeis, teu gesto era brusco, você levava, punha dentro do teu hábito um pirulito a mais e saías contente. Lá fora, você ia lamber o teu próprio sucesso. Ó delícia! Ó Carion, ó saudades de Carion…
Eu estou claro? (Sim).
* Judas não foi implacável consigo mesmo e não olhou de frente seu erro
Judas não olhou de frente para a sua ingratidão. Judas não olhou de frente para o seu erro. Ele estava subestimando algo que valia mais do que tudo quanto há na terra; era um olhar que fosse de Nosso Senhor! Ele subestimava isto, dava um valor inferior ao real. Pelo contrário, Judas dava valor excessivo a bagatelas que ele tinha abandonado, que ele achava más, e das quais antigamente ele tinha fugido.
Os senhores estão vendo como a alma de Judas vai mudando?
Meus caros, os senhores estão me entendendo até ao fundo?
(Sim).
Judas começa a arranjar pretextos para pedir a Nosso Senhor para passear em Carion. E Nosso Senhor percebe, que se Ele der licença, Judas vai pecar em Carion. Aliás, percebe, não, Ele conhece, é diferente. Mas que se Ele não der licença, o pecado de revolta que Judas vai praticar, interno, é pior do que o roubo que ele vai fazer em Carion. Nosso Senhor o olha com tristeza e lhe diz: “Vai…”.
Ele se sente olhado por aquele olhar de Nosso Senhor, profundamente. Porque nem o sol tem a capacidade de penetração de um olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo! Ele se sente sem coragem, mas ele tinha um compromisso com um amigo e ele não quer que o amigo dê risada dele. E entre entristecer Nosso Senhor e ser ridicularizado pelo amigo, ele prefere entristecer Nosso Senhor. Ele vai… e vai depressa, e foge depressa, imaginando que se ele for devagar, Nosso Senhor ainda o chama. O seu coração quase que voa em sentido contrário ao do corpo, o seu coração teria vontade de voltar, ele tem um certo remorso, mas ele diz: “Não, eu vou, eu vou, eu vou!”.
Ao cabo de algum tempo, o olhar de Nosso Senhor não lhe diz mais nada! Também a isso ele está habituado, não estranha mais. Nosso Senhor o olha com tristeza e ele pensa: “triste estou eu, porque não consegui roubar mais ainda em Carion da outra vez. Eu já sei o que vou fazer: vou fazer uma política aqui para ficar o homem que recolhe as esmolas e toma conta do dinheiro, porque aí eu vou roubar também aqui dentro”.
– “Olha, mas Jesus de Nazaré vai te ver…”
“Ele que se arranje! Eu noto no divino equilíbrio dele, na perfeição dele, que Ele não tem o verme roedor do remorso que a mim me devora. O coitado sou eu, não é Ele! E por causa disso, eu vou roubá-lo a Ele.”. É a revolta que vem brotando de todas as infidelidades.
Um dia, o Evangelho conta a cena: Judas (o que eu vou dizer agora não é propriamente o que o Evangelho diz, mas eu direi daqui a pouco o que o Evangelho diz) ouve Maria Magdalena conversar. Ele sabia que Maria Magdalena era de uma família muito rica. E ouve Maria Magdalena dizer que ela quer fazer a Nosso Senhor um dom enorme, quer gastar um dinheirão com Nosso Senhor. E ele se acende. Ele diz: “Uma parte desse dinheiro eu vou roubar. Que maravilha! ”.
Há um banquete em casa de um fariseu, Nosso Senhor está reclinado como naquele tempo se participava dos banquetes, assim meio deitado. Os pés divinos estão de fora da túnica, entra uma mulher chorando os pecados que cometeu e quebra uma ânfora com um cheiro maravilhoso. Era Maria Magdalena. Ela quis ungir Nosso Senhor e Judas percebeu que aquele cheiro maravilhoso era o preço do perfume que ele não conseguiria roubar. E aí, ele fica indignado. Ele se sente roubado pela dona do perfume, e ele faz o comentário: “Não era melhor dar isso aos pobres? ” Para passar pelo bolso dele e poder abocanhar.
Nosso Senhor então explica que aquela mulher estava ungindo o corpo dEle porque iria ser morto e que aquilo era uma coisa simbólica. “Pobres Vós tereis sempre convosco. A mim, vós não me tereis sempre!”
[Judas] vai indignado. Vamos dar largas à imaginação: ele sai pelas ruas da cidade furioso, raivoso, ele percebe que alguém o segue. Esse alguém, nas ruazinhas estreitas da cidade, lhe corta o passo, de repente:
– Judas!
– Que é?
– Judas… eu sou seu amigo.
Judas pensa: “eu não quero amigos, quero dinheiro! ”
Diz a ele:
– Se tu és meu amigo tu tens que me ajudar.
– Mas eu estou aqui para isso, Judas. Eu sei que você é um homem que aprecia o dinheiro. Sei que você é um homem que gosta até do sabor especial do dinheiro que se tira dos bobos. Eu tenho dinheiro para te dar, olha aqui (saquinho de moedas de ouro): trinta!
E Judas, sem saber por que, sente um arrepio, quando ouve falar em trinta, ele não entende porquê. “Trinta! ” Mas uma apetência louca. Não é para gastar o dinheiro, não. É para guardar. Ter o dinheiro: é um sovina! Ele quer agradar aquele dinheiro, durante o dia e durante a noite. Ele quer ter aquilo debaixo do travesseiro não é só para que ninguém roube, mas para que o ídolo dele esteja ali. Ele é louco pelo dinheiro.
* Já não sabe viver com Nosso Senhor, mas não consegue viver sem Ele
Ele pergunta:
– Mas o que eu devo fazer para isso?
– Você sabe… você anda em má companhia… esse homem com quem você perdeu tanto tempo de sua juventude, o futuro dele já está traçado; ele vai ser liquidado e você não tenha dúvida nenhuma, hein, aqueles seus companheiros você conhece bem: vão abandoná-lo, hein… e você também vai abandoná-lo…. você nem mais gosta dele. Você está num estado assim: você ainda não sabe viver sem ele, mas você já não sabe viver com ele. Se os outros vão abandoná-lo à toa e você também vai (você é um poltrão, lembra-se de tal ocasião, tal outra, tal outra; quando o quiseram lapidá-lo, você fugiu), quando quiserem matá-lo, você fugirá também. Não é melhor você receber um dinheiro e fugir com dinheiro do que fugir sem o dinheiro? Se ele tem que morrer, que mal há? Ó Judas, meu amigo, que mal há em que você venda ele para mim, se ele de qualquer jeito será pego. Você facilita apenas uma coisa que acontecerá fatalmente. Para isso, você tem trinta dinheiros. Você não vai matá-lo. Ele está morto, está liquidado. Você vai apenas apressar a hora da entrega. Não é melhor para todo o mundo? Acaba com isso! Ele morre, os discípulos dele se dispersam, você também. Mas que vidão o seu, hein! Trinta dinheiros depois, hein! Veja bem, Judas, você não é um assassino. Você não é um deicida, nem sequer é um traidor, porque se fosse dizer que se você não desse o lugar onde ele está a tal hora de noite, nós não o pegávamos, você seria um traidor. Mas, não! Você sabe bem que se não o pegarmos à noite, pegamos de dia. Mas que o poder de Herodes, de Anás, de Caifás, ninguém contrasta esse poder. E que Ele está perdido. Você entrega o que já não tem remédio senão ser preso. Você dá um pouquinho, e por isso olha aqui.
Fôlego curto. Carion… quando ele for passear em Carion, olhe o quanto ele poderá se alegrar. Depois, afinal de contas, Nosso Senhor não teve pena dele em muitas ocasiões. Vendo que ele queria dinheiro para se divertir, ou dinheiro para gastar, Nosso Senhor poderia ter dito a ele: “Fica com o dinheiro dos pobres! ” Nosso Senhor nunca fez isso! Nosso Senhor ajudava ele de outra maneira: por meio de conselhos, por meio de carinhos, fazendo assistir milagres. Era assim que Nosso Senhor o ajudava. Mas não lhe dava o que ele queria, que era o dinheiro!
Resultado, ele tem bem gravames contra Nosso Senhor.
Judas diz para o homem:
– Está selado! Amanhã esteja comigo a tantas horas, que eu te levo ao lugar onde ele está.
Mas chega a Páscoa. E Judas que não sabe viver com Ele, não sabe viver sem Ele. Desagradado, aborrecido, ele não ousa recusar o convite para assistir a Santa Ceia. Ele vai.
E enquanto ele vai, ele vê toda aquela cerimônia. Enquanto ele vê aquela cerimônia, ele já não tem enlevo. Vai crescendo o ódio dentro da alma dele e a frieza. A noite é completa na alma dele quando Nosso Senhor se senta, e quando diz: “um de vós me trairá!”.
Ele vê todo o mundo dizer: serei eu, serei eu, Mestre? O quadro do Da Vinci pinta esse momento… serei eu, serei eu? Ele também pergunta: serei eu? Ele sabe que é ele.
Nosso Senhor olha para ele, digamos que seja nesse momento, imaginemos isso, Nosso Senhor faz uma cortesia para com ele, para atraí-lo, é uma cortesia do tempo: ele molha o pão no vinho, antes de ter consagrado, e dá a Judas. Judas come aquilo, bebe aquilo. Não se comove, porque ele já não entende Nosso Senhor, nem as amabilidades, nem as bondades de Nosso Senhor, nem nada, para ele não é nada. A questão é Carion: ser importante na rua importante de Carion.
Eu estou explicando bem?
(Sim)
O importante é isso… Judas come aquilo, bebe, São João Evangelista pergunta:
– Quem é o traidor? Nosso Senhor diz:
– Aquele a quem eu der o pão molhado no vinho. E dá para ele [Judas]…
Pouco depois, Ele diz a Judas uma coisa misteriosa que não se sabe o que é:
– O que tens que fazer, faze-o logo.
Judas se levanta e sai. O evangelho comenta de um modo tremendo: “Era noite quando ele saiu…” Era noite dentro da alma dele, noite fora, noite na cidade deicida que se preparava para o deicídio. Noite por toda a parte exceto em torno de Nosso Senhor.
Bem, o resto os senhores conhecem. Nosso Senhor, terminada a Ceia, foi cantando os hinos pascais até o Horto das Oliveiras. E no Horto das Oliveiras começa a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo: “Passio Domini Nostri Iesu Christi”.
Em certo momento, Judas chega para Ele, oscula, e Ele diz:
– Judas, com um ósculo tu trais o Filho do Homem?
Mas notem que a frase tem ao mesmo tempo um sentido de censura e um sentido de carinho que atrai. Esse “Judas”, conforme nós imaginemos a entonação pode ser: “Judas, meu querido Judas, Judas dos bons tempos, Judas a quem Eu amo tanto, não te lembras do tempo em que também me amaste? ” – pode querer dizer isto.
Como pode querer dizer: “Judas… nesse ósculo em que eu ponho tanto carinho… olhe você o recebe. Esse ósculo você escolheu como meio para me trair? Entretanto, veja, Eu tenho pena de você, Eu sou bondoso! ”
Como pode ser outra coisa: “tu usaste, levaste a tua infâmia a tal ponto que escolheste o sinal do carinho e do afeto para deste sinal fazer o símbolo, o sinal da traição! “Aquele a quem eu oscular, este o prendei! ”. Ó miserável, até onde caíste! ”
O resto da história os senhores conhecem: ele foi com o dinheiro; depois o remorso entrou por ele; ele começou a andar pelas ruas de Jerusalém como um louco. Ele acabou não querendo ter aquele dinheiro. Entrou no templo e jogou o dinheiro no chão e disse:
– Eu vendi o sangue do justo.
Os sacerdotes disseram:
– Isso é com você. Faça desse dinheiro o que quiser. Nós não vendemos o sangue do justo, foi você. Resolva o seu caso.
Ele não confia em Nossa Senhora que, certamente, está rezando por ele, com pena dele. Vai a uma figueira e se enforca.
O homem mais maldito da história, pendurado na corda mais maldita da história. O seu corpo caiu de podre e se jogou no chão, rompeu-se, e suas vísceras imundas se espalharam pelo chão.
É o caso de Judas.
* “Apóstata” no sentido estrito e no sentido lato (*)
Bem, meus caros, “christianus alter Christus”. Apóstata é uma palavra que só se pode dizer por excelência de quem saiu da Igreja Católica, Apostólica, Romana. Enquanto um indivíduo não saiu da Igreja não é um apóstata. Diz-se por uma acomodação, um religioso que sai da ordem religiosa a que pertence, sem as licenças adequadas, é um apóstata. Um sacerdote secular ou regular que se casa sem as licenças adequadas e que a Santa Sé antigamente não concedia a ninguém… Parece também que João Paulo II também não concede a ninguém (não tenho uma informação inteiramente exata, mas é o que me consta, vagamente). Então, apóstata é o padre que se casa contra o voto que ele assumiu, etc., contra aquilo que é a consequência normal de seu sacerdócio.
Mas, por extensão se pode dizer também apóstata, aquele que teve uma muito bela vocação e renuncia também. E talvez, a maior parte das apostasias que tenho visto tenham tido essa trajetória de Judas.
* Aplicação ao apóstata do itinerário de Judas
O indivíduo entra e se maravilha, etc., etc. Mas depois, a prática quotidiana, o dever quotidiano, aquilo deixa de produzir aquele entusiasmo da novidade. E por outro lado, por um fenômeno esquisito, a pessoa se esquece do mal que ele deixou. Aquilo que ele deixou passa a lhe parecer bonito. Aquilo que ele achava baixa de nível, ele começa a achar real, sólido, atraente. Tudo vai se mudando na cabeça dele. E ele fica com saudades dos trigais encantadores de Carion; ele fica com saudades das parreiras de Carion, ele fica com saudades disto, daquilo e daquilo outro; ele fica com saudades de não ser chamado por Nosso Senhor, de viver livre de Nosso Senhor, de viver só para si e não viver para Nosso Senhor. Ele “ensabuga” [fica tíbio]. E depois do ensabugamento passa para o roubo; e do roubo ele passa para o ódio; do ódio ele passa para a traição, e da traição.
Está explicada a história de Judas. Está atendido o pedido dos senhores. Está explicada a necessidade de uma análise implacável de si mesmo.
“Não, e só um pouquinho, estou pensando um pouco: que parreiras, hein! Que trigais, hein! Oh! oh!” Eu estou esquecendo a Nosso Senhor, que no dia da primeira comunhão me fez sentir tais coisas na alma. Que em tal outra ocasião, quando eu recebi na outra comunhão, me comoveu de tal outra maneira assim. Que em tal retiro me deu tal deliberação assim de nunca mais pecar. E eu me levantei um homem forte, eu que era um trapo e passei muito tempo sem pecar. E isto, e aquilo, e aquilo outro… E vai indo, vai indo.
Alguns têm a história do filho pródigo, voltam. Outros não têm a história do filho pródigo. Alguns têm a história do bom ladrão: arrependem-se à última hora. Outros têm a história do mau ladrão. Os senhores estão vendo o resto.
* É na hora da aridez que provamos nosso amor a Nosso Senhor
Meus caros, abramos os olhos. Pensemos neste processo de decadência que é o grande perigo para nós e saibamos, quando tudo é árido em torno de nós, nos lembrarmos que é nessas horas que nós provamos o nosso amor a Nosso Senhor. Na hora da aridez, na hora em que nós não sentimos nada na fidelidade com ele, em que a Igreja nos atrai pouco, em que a TFP nos atrai pouco, e que tudo dentro de nós, levado pelo demônio e pelas nossas inclinações pediria outra coisa. Se nós soubermos dizer: não, não e não! Mãe de Misericórdia, mantende-me fiel!
Ah… depois desse deserto, que prêmios, que ascensões e que glória!
Sejamos firmes na hora da aridez, aí Nossa Senhora será imensamente misericordiosa conosco na hora da consolação.

(*) A respeito de “apóstata”, consulte “Guerreiros da Virgem – A Réplica da Autenticidade. A TFP sem segredos” (Plinio Corrêa de Oliveira, Editora Vera Cruz, 1985, pág. 50 e segs., 250 e segs.).

Contato