Almoço no Eremo do Amparo de Nossa Senhora, 12 de agosto de 1988
A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
(…) Constituía um traço dominante da alma dela uma seriedade muito séria – com o elemento de força que a palavra seriedade comporta –, mas ao mesmo tempo paradoxalmente uma seriedade muito suave, que era feita do modo pelo qual as certezas se apresentavam no espírito dela.
Ela era uma pessoa muito certa, muito segura do que ela via, do que ela achava, e como espírito ela era muito pão-pão, queijo-queijo — quer dizer, quando uma coisa é de um jeito, quando ela viu de um certo jeito, é aquilo e ela não tem dúvida nenhuma –, o espírito dela era muito pouco sujeito a dúvidas nas matérias mais altas.
* Amor à perfeição em tudo
Nas matérias pequenas ela até às vezes era até hesitante, por exemplo como ornar um bolo, como fazer um bordado, ou como resolver um caso de um empregado, ela era hesitante, não propriamente por ser muito hesitante, mas porque ela gostava de fazer na perfeição tudo quanto ela fazia; e por causa disso, às vezes, operativamente ela não encontrava logo o caminho que correspondesse ao que ela julgava ser a perfeição naquele ponto. Então às vezes perguntava etc., etc.
Por exemplo, coisas insignificantes, uma vez eu a vi no meu apartamento, onde hoje é o quarto do Sr. Amadeu, tinha assim uma espécie de living mais especialmente usado por ela e por meu pai, porque eu quase sempre estava fora, na rua, e quando estava em casa estava no escritório ou então nos salões, e uma vez andando lá pelo apartamento passei por aquele living, pelo lado de fora e vi que a porta estava aberta e ela conversando com meu pai. Meu pai sentado, numa atitude que era habitual na velhice dele, num grande repouso nordestino e ela diante dele em pé, e disse: “João Paulo, você acha que tal menu estaria bem para Plinio, para o jantar, ele gostaria de comer tal coisa assim?”
Eu me lembro da resposta que ele deu a ela. Eu andei um pouco mais devagar para ouvir, porque eu percebi que os dois não tinham notado que eu estava lá, e estava querendo ver a ela, a resposta dele não me interessava, a atitude dela me interessava.
Ela perguntava assim quase com uma espécie de minúscula aflição para acertar o menu que eu poderia querer, tratava-se de acertar o que eu poderia querer. E ele ouviu aquilo assim, ele era sempre amável, ele tinha um bom gênio, disse: “Eu acho que está bom, sim”, mas sem mais refletir. Ela disse: “Mas tal coisa, ou tal outra coisa, o que é que Plinio gostaria mais de comer?” Ele respondeu: “Olha, é preciso não complicar as coisas. Esse negócio de menu se fosse comigo eu diria a ele: Rapaz — esse é um modo muito pernambucano de dizer “rapaz” – rapaz, o que tem aqui para comer é assim, assim, se você quiser está à sua disposição, se não quiser vá comer num restaurant”.
Era bem exatamente o que ela não queria, que eu fosse comer num restaurante. Ela queria ter-me ao lado dela. Eu saí de lá com essa reflexão: “Pai é pai, mas mãe é mãe”.
Eles resolveram uma coisa qualquer, que fazia parte dessa comida caseira brasileira. E para mim era mais ou menos a mesma coisa que fizesse, mas eu fiquei vendo cada coisa dela como era pensada, refletida até o último pormenor. E nestes pormenores ela era hesitante.
* A certeza calma e lúcida de quem via logo, com muita nitidez, o “verum, bonum, pulchrum”
Mas nas grandes linhas gerais da vida, nas convicções, no modo de tocar as coisas etc., ela não tinha um pingo de hesitação, ela era feita de certezas; umas certezas calmas, lúcidas, de quem via logo à primeira vista e com muita nitidez o que era verdade e o que era o erro, o que era o bem e o que era mal, o que era o feio e o que era bonito, e que aderia inteiramente ao “verum, bonum, pulchrum”, do fundo da alma dela com uma honestidade, com uma limpidez, fazendo aquilo uma espécie de um só com ela, numa sinceridade, de maneira que ela não queria a não ser o “verum, bonum, pulchrum”. Aquilo ela queria mesmo e o que não fosse isso ela rejeitava. Era ali! A aceitação era aceitação, e a rejeição era rejeição, a convicção era convicção, a negação era negação: Não! E está acabado.
* Uma inflexibilidade suave
Mas não pensem — e isto eu não estou conseguindo exprimir bem — não pensem que, por exemplo, dizer que para ela o pão-pão, queijo-queijo, o sim-sim, não-não, para ela se dava com uma certa dureza. Dava-se numa espécie de inflexibilidade verdadeiramente inflexível, mas suave. De maneira que ao afirmar ela afirmava a primeira linha gentilmente. Se apertassem, ela afirmava demonstradamente, se fosse preciso ela acabava afirmando quase proclamadamente, mas com intensidades sucessivas de reação, das quais a última podia chegar a ser bem categórica. Levava às vezes meu pai a me dizer de algumas coisas dela, opiniões dela, me dizer baixinho: “Hi, esta senhora é espanhola!” Mas assim muito espantado com o categórico dela. Ele que era o menos categórico dos homens.
* Com uma tendência a ver tudo pelo seu lado maravilhoso e seu mais alto aspeto
Agora, acrescentem a isso uma tendência de espírito a ver as coisas sempre pelo maravilhoso e pelo seu mais alto aspecto. Ela tinha um espírito nesse sentido — especialmente nesse sentido — o espírito muito elevado. Quando se conversava com ela sobre determinado tema, ela tendia logo a colocar aquilo no mais alto, que o feitio intelectual dela, de senhora não universitária, compreendia.
Eu achava um encanto especial não ser universitária. Eu me teria sentido muito mal à vontade com uma mãe carregando uma série de diplomas debaixo do braço e que me respondesse com uma citação de um autor que ela leu.
Ela não citava, ela dizia o que a alma dela tinha, o que ela tinha visto, era uma senhora e mãe de família; não era outra coisa senão isso, não queria ser outra coisa senão isso, lhe bastava inteiramente ser isso e mais nada.
Ela tinha, sobretudo em moça, tinha lido o seu tanto em inglês, em francês, ela tinha lido seu tanto; mais em francês do que inglês, mas ela gostava da língua inglesa. Com espanto para mim e sem muita aprovação de minha parte, tinha lido uma boa tonelada de Shakespeare. Mas não havia perigo de ela vir dizendo: “Como disse Shakespeare”. Não. [É] como disse a alma dela, como disse o coração dela, posta na suavidade da vida de família da São Paulinho de então, isto era o modo dela ser, o modo dela se comunicar, as ideias dela etc., etc.
* Junto com muita alegria de viver, e muita tristeza, cumulados
Junto com isso ela era uma pessoa que tinha ao mesmo tempo muita alegria de viver e muita tristeza cumulados. Ela tinha uma ideia de como deveria ser a vida, e tinha ideia de que a vida era um vale de lágrimas, que não era como devia ser, e que, portanto, normalmente as pessoas deviam sofrer e deviam sentir aquilo que as fazia sofrer. Uma certa forma de superficialidade de espírito pela qual as pessoas, passado o sofrimento, procuram se esquecer e continuar na sarabanda moderna, não tinha.
Ela contava, às vezes, por exemplo mortes de parentes e desventuras na família, ou alegrias na família, e coisas boas que tinham acontecido, ela contava coisas que tinham acontecido há 30, 40 anos atrás, mas que ainda pesavam para ela, porque o passado tinha um grande peso, o futuro também, e o presente também. Cada coisa tinha seu peso. Então ela contava às vezes cenas e episódios do passado que eram tão antigas que eram uma outra vida, mas que para ela tinha vida.
* Por exemplo, os colibris de Pirassununga
Os srs. sabem que ela nasceu na cidade de Pirassununga onde o pai dela advogava no começo da vida, e ela — é um fato insignificante, minúsculo — ela esteve na cidade de Pirassununga mais ou menos até mocinha. Depois o pai dela mudou-se para São Paulo, fundou um escritório de advocacia em São Paulo e prosperou em São Paulo.
Bem, ela se referia a Pirassununga — ela com 70, 80 anos, perto de 90 — ela se referia a Pirassununga como se fosse o dia de ontem, e contava coisas de Pirassununga que eram já de um outro tempo. Mas calculem isso: Ela contava com verdadeiro “ravissement”, com verdadeiro encanto o número de colibris que tinha em Pirassununga. A cidade de Pirassununga tinha muito colibri — beija-flor, não é? –, os srs. sabem que os colibris são verdadeiras joias aladas, é uma verdadeira maravilha. E há colibris no interior do Brasil que são verdadeiramente extraordinários.
Então ela contava que tinha tantos colibris que numa sala da casa do pai dela havia duas oleogravuras — não é uma coisa cara, é uma coisa “plutôt” [mais bem, n.d.c.] barata — grandes, representando “bouquets” de flores, e os colibris se iludiam pensando que eram flores, e entravam dentro da casa e iam pegar as flores, e batiam com o bico no vidro que separava as flores. Então instintivamente saíam depressa correndo.
Ela tinha uma tia solteira que morava com ela, que estava uma vez com ela na sala quando entrou um colibri e bateu com tanto ímpeto no vidro que caiu no chão. Então ela contava com todos os pormenores — cinquenta, sessenta anos depois, setenta anos depois, nem sei quantos anos depois, ela contava com todos os pormenores — os cuidados da tia para reviver o colibri.
Então ela punha o colibri na mão, e nem me lembro mais bem como ela fazia entrar no biquinho do colibri um pouquinho de água com açúcar, e o colibri foi se recompondo, etc. Ela descrevia o carinho da tia com o colibri. Quando, com muita paciência, o colibri se reanimou, a tia passou junto à janela e abriu a mão. O colibri levantou voo, estava consertado o caso.
Isso para ela tinha assim um alcance simbólico. Era de uma parte a delicadeza e a beleza do colibri, de outro lado o que há de bonito nas criaturas muito frágeis e que exigem cuidados especiais para viverem, e depois o que havia de bonito no carinho da tia. Era no fundo uma apologia da tia.
* Um espírito muito elevado, capaz de se entreter com as coisas mais miúdas, por seus aspetos simbólicos, morais e religiosos
Mas os srs. estão vendo que ao lado de um espírito tão elevado, um espírito capaz de descer aos últimos pormenores e se entreter com a forma da pétala de uma flor, o ruído de um homem que está vendendo tecidos na rua, com uma negra que em tal coisa fez uma coisa engraçada assim, e que ta-ta-tá, como também em contar recordações dela em Paris, recordações na Alemanha, recordações no Rio de Janeiro, episódios da sociedade no tempo em que ela era solteira e que frequentava a sociedade, uma porção de coisas assim ela gostava de contar, que revelava uma variedade da alma dela, e adaptabilidade a todas as circunstâncias, e como tudo isso para ela tinha um aspecto simbólico, um aspecto moral e um certo fundo religioso.
* O baile do Conde Álvares Penteado
Eu me lembro que ela contava por exemplo um baile que houve no tempo dela em casa do maior potentado econômico de São Paulo naquele tempo, que era o Conde Álvares Penteado. Faziam naquele tempo baile com cor: baile cor de rosa, baile não sei o quê — hoje é tudo cor de poluição, não é? Naquele tempo baile com cor. Então, era um baile branco, todas as moças vestidas de branco e todos os srs. iam de casaca, mas levando uma flor branca na lapela, que naturalmente tinha que ser uma flor muito bonita etc. e tal.
Então ela descrevia a casa do Conde Álvares Penteado como estava toda ornamentada, isso ela se lembrava com todos os pormenores; e depois as festas daquele tempo inteiramente diferentes de hoje. Começavam bem mais cedo, começavam pelas 8 horas da noite, interrompiam lá pelas 10, 11 horas, e numa outra sala havia um banquete para todos os convidados, banquete sentado, nada de comer “sanduichinho” de pé; é jantar mesmo, banquete sentado.
Então o dono da casa devia oferecer o braço a uma das convidadas e entrar para a sala. E quando entrava, depois algum dos convidados que se julgava mais em condições oferecia seu braço à dona da casa.
E tinha quase todas as Sras. altamente qualificadas no que era, na relatividade das coisas, a aristocracia de São Paulo naquele tempo, e algumas delas muito bonitas. Estavam todas sentadas e criou-se uma expectativa. Quem é que o Conde Penteado iria escolher, iria distinguir em primeiro lugar para levar pelo braço para a mesa. Então ele entrou discretamente, as pessoas conversavam, mas estava todo mundo prestando atenção, atravessou o salão inteiro e quando chegou do outro lado do salão inclinou-se diante da mãe dela e deu o braço para a mãe dela para entrarem. A mãe dela era uma senhora realmente muito bonita e muito cheia de donaire. Ela mesma descrevia a mãe entrando com toda naturalidade, conversando com o Conde Penteado, e depois entrando os outros casais, todos para a mesa etc.
* Dona Lucilia contava tudo na linha Ambientes, Costumes, Civilizações, com um aroma de formação moral
Então, desde isso até o caso de uma preta velha em Pirassununga, tudo isso ela gostava de contar. A visita que tinham feito a Neully-sur-Seine, à Princesa Isabel, como foi toda a história, tudo, tudo muito na linha “ambiente e costumes” sem explicitar. Na linha “ambientes e costumes”, e fazendo marcar isso com o aroma de uma formação moral no fundo.
Também ela, que vivia inteiramente para a família e que se interessava muito pouco pela política brasileira, da república eu não me lembro de ela ter tomado partido por uma só dessas brigas da república do Brasil, que se comentavam na casa dela como se comentava por toda parte.
Um dos temas da conversa de toda família é política. Mas eu não me lembro dela ter tomado uma vez partido. Houve presidentes muito discutidos. Por exemplo, um dos presidentes que houve aqui chamado Hermes da Fonseca. Por razões que eu não conheço bem era objeto de uma máfia intensíssima e muito caçoado, mas também havia admiradores dele. Ela ouvia aquela conversa e não entrava na conversa.
* I Guerra Mundial: a indignação de Dona Lucilia quando o bombardeio da Catedral de Reims
Arrebentou a I Guerra Mundial, e a Alemanha invadiu a França. Aí ela saltou. Não pode. Invadir a França não! Quando foi demolida a Catedral de Reims por um bombardeio alemão ela tomou aquilo como se que tivessem demolido a casa dela com o bombardeio. Eu perguntei — tão pequenino — porque, o que que era aquilo que tinha esse valor assim. Ela me explicou, mas deve ter explicado como se explica para uma criança, que era uma catedral muito bonita onde se coroavam os Reis da França, qualquer coisa assim. Eu nem entendi bem, mas eu vi pela emoção com que ela ficou que era uma coisa que não devia ter sido feita. E ela tomava ao pé da letra completamente. E por isso também, quando os aliados venceram, o entusiasmo, porque a França – país de uma beleza perfeita, alegria do mundo inteiro – não podia ser tocada.
E também eu me lembro dela, ela, meu pai, toda minha família, foi sempre gente de deitar tarde e levantar tarde. Meu pai nem tanto, mas ela e a família dela. Durante a Guerra, ela acordava, creio eu, que às 7 da manhã para ver os jornais, para ver a guerra como é que tinha ido. Eu me lembro dela sentada e meu pai deitado, e ela tomando café e ouvindo a notícia dos jornais. Eles dois comentavam, mas eu não entendia. Ela tomava parte naquilo, mas a fundo.
* Nunca ela era tão ela mesma como quando rezava: do Sagrado Coração de Jesus vinham todas suas qualidades
Eu nunca achava que ela era tão ela mesma do que quando ela estava rezando. Aí eu tinha impressão que as qualidades dela, todas, ainda cresciam, e que se estabelecia — não que eu achasse uma coisa que era visão, nunca vi que ela tivesse nada disso, milagre, revelação, nada — mas se estabelecia uma espécie de vínculo entre o Sagrado Coração de Jesus e ela, uma espécie de relacionamento onde eu percebia que toda essa bondade dela, todo esse modo de ser, era em parte produto da tradição brasileira, mas era muito mais fruto da devoção dela ao Sagrado Coração de Jesus que comunicava a bondade dEle a ela, as qualidades dEle, inefáveis, em alguma medida Ele comunicava a ela e enchiam a ela, e estabelecia uma consonância entre ela e todas as coisas da Igreja.
Por mais que eu quisesse bem a ela eu, quando entrei no Colégio São Luís e ficando mais velho, compreendi perfeitamente pelo natural desenvolvimento do espírito de todo menino, eu compreendi que ela podia significar uma alta coisa na minha vida, mas que ela não era a norma de minha vida, e eu compreendi que a norma de minha vida era a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana.
E cheguei a fazer uma comparação. Aqui está minha mãe, aqui está a Santa Igreja, como os jesuítas ensinavam.
Ensinavam muito bem naquele tempo, ao menos segundo o meu intelecto de criança compreendia falavam muito do Papa, da devoção que se deve ter ao Papa, falavam da devoção a Nossa Senhora, não falavam como São Luís Grignion fala, mas falavam bem, adequadamente, promoviam a devoção a Nossa Senhora, Congregação Mariana etc. falavam dos adversários da Igreja, combatiam os adversários da Igreja e combatiam no duro. Por exemplo, um movimento de insurreição dos liberais italianos contra os Estados Pontifícios no século XIX, e a conquista de Roma que foi arrancada ao Papa, e Garibaldi, e essas coisas todas eles falavam, ensinavam isso tudo bem, e eu estava compreendendo a Revolução diante de mim.
* A “Inquisição” de Dr. Plinio quanto à Dona Lucilia
E eu via, portanto, dois valores diferentes. Primeiro a Igreja, fonte da verdade; depois a Revolução da qual, em última análise ,a ignominia essencial era de se atirar contra a Igreja. Portanto, não podia, devia ser derrotada etc., etc. E por outro lado eu olhava minha mãe.
Eu me lembro de ter feito essa comparação: “Em última análise quem é que vale mais: é a Igreja ou mamãe?”
E a resposta foi logo no meu espírito: as coisas não se dissociam. Tudo quanto há em mamãe ela recebeu da Igreja, mas agora está sujeita ao crivo da minha análise como católico. Para esta pergunta: é tudo conforme a Igreja? Porque se algo nela não for conforme a Igreja eu prefiro a Igreja a ela, porque a Igreja foi fundada por Deus etc.; ela é minha mãe, eu a quero muito bem, mas é uma criatura humana que pode errar como eu posso errar, como outro pode errar, e, portanto, cuidado. E, por assim dizer, reexaminei-a, mas ponto por ponto. Inclusive fazia perguntas a ela etc., para ver bem como ela pensava etc. Ela passou por um “Santo Ofício” [Inquisição, n.d.c.] aqui. Eu fui o “inquisidor” dela. “Inquisidor” afetuoso, “inquisidor” respeitoso, “inquisidor” meticuloso, “inquisidor inflexível”. Não preciso lhes dizer que ela passou no exame com nota cem.
Mas a resposta a todas as perguntas era invariavelmente a seguinte: “Isso é bom porque é conforme a Igreja, não é bom porque é conforme mamãe senão enquanto mamãe representa como uma boa mãe de família deve representar, representa a Igreja. Mas o bem é a Igreja”.
* Um exemplo, quando da revolução em São Paulo
Eu me senti bem filho dela, por exemplo numa ocasião que eu também já contei aqui em que eu tinha um tio, irmão dela, que fazia parte do governo de SP, era Secretário de Estado, e arrebentou uma Revolução e o governo começou a convocar os jovens para ir para a Revolução, mas a la maneira brasileira nenhum jovem ia, ninguém tomava Revolução a sério.
Um dia meu tio estava se despedindo dela, ele foi em casa e ela foi acompanhá-lo até a porta e ficaram assim por acaso ele, ela e eu. Ela ficava entre ele e eu. Eu fui acompanhar também. E quando chegou na porta da rua, ele era um homem alto e ela era baixa, ele fez assim uma piscada por cima dela que ela não percebeu. (vira a fita)
“…E dispor tudo para que o Plinio pegue em armas e siga para a frente de combate, não é?” Ela disse: “Não, não vai não. Meu filho não vai combater!”. Ele fingiu-se de zangado: “Mas como não, é um dever da pátria”. Ela se levantou assim, ele chamava Gabriel: “Gabriel! Fique bem sabendo, o Plinio não vai entrar nesse negócio!” –– Ele sabia que eu não ia. Ele disse a ela: “É, vocês são assim, hein? É isso, mas se fosse para defender a religião ia. “Aí naturalmente era o primeiro…”
Ele saiu, despediu-se, assim amolando a ela e falando de fanatismo religioso etc., etc. Ela nem se incomodou com o negócio de fanatismo religioso, nada, não existe, está compreendendo? E entrou toda [ufana, porque tinha defendido o filho].
Também eu não expliquei a ela que ele tinha piscado nem nada, deixei o caso parado, porque ela estava tão segura de seus direitos que ficou fazendo tricô dentro de casa e o assunto estava liquidado, não tinha mais problema.
* O último sinal da Cruz rumo à eternidade: com toda serenidade, decisão e força
Bom, esses e outros traços minúsculos eu poderia contar. O último eu não tive o gozo, a alegria de assistir, Dr. Duncan me contou. Dr. Duncan estava amavelmente prestando assistência médica a ela, eu ainda estava doente de uma diabete muito grande que tinha tido, não tinha podido passar a noite em claro. Dr. Duncan passou a noite em claro junto a ela, e quando chegou mais ou menos pelas nove da manhã veio me avisar no meu quarto que ela estava com uma crise cardíaca fortíssima, mandou a empregada me avisar que ela estava para falecer. Eu então me levantei e fui para o quarto dela.
Dr. Duncan assistiu a morte dela e contou que quando chegou o último instante ela fez o nome do Padre, grande, e imergiu na morte rumo a eternidade com toda serenidade, decisão e força.
Nota: Para outros documentos relativos à Dona Lucília, clique aqui.