Plinio Corrêa de Oliveira
Comentários ao “Tratado da verdadeira devoção a Nossa Senhora”
I – Introdução
1951, Conferência
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A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio, em 1951, para os futuros sócios-fundadores da TFP brasileira. Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito: “Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”. As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959. |
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Cópia da Virgen del Apocalipsis, Escuela quitenha, Equador, sec. XVI
Descoberto em meados do século XIX, o “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem“, de São Luís Maria Grignion de Montfort, exerceu e exerce ainda poderosa influência nos meios católicos. Julgamos, por isso, que interessará aos que se empenham na defesa das tradições da civilização ocidental, o conhecimento desta obra. Esta a razão porque difundimos os comentários que a respeito dela fez o Prof. Plinio. Uma vez que são inapreciáveis esses comentários referentes ao livro marial por excelência, formulamos nossos votos de que os leitores possam tirar alto benefício desse substancioso material para estudo e reflexão. Apresentação Estas conferências foram pronunciadas em 1951 para futuros sócios-fundadores da TFP brasileira, precisamente aqueles que se reuniam então no n° 665 da Rua Martim Francisco, em São Paulo. Circulou, desde essa época, um fascículo mimeografado contendo a anotação dessas conferências. Sob vários aspectos, o texto que ora se publica completa em muito o contido naquele fascículo, pelas seguintes razões: 1) quase uma quarta parte da presente matéria é inédita, isto é, por motivos circunstarciais não consta do fascículo mimeografado a que aludimos acima. 2) O texto antigo não foi objeto da indispensável adaptação da linguagem falada para a escrita. O que ora difundimos foi cuidadosamonte adaptado por uma equipe experimentada, que teve o especialíssimo cuidado de não ultrapassar, na revisão, o âmbito da tarefa que lhe foi confiada, não fazendo modificações supérfluas. * * * Não nos será difícil atribuir uma grande importância a esse trabalho, de alimentarmos em nós o desejo ardente de que a devoção a Nossa Senhora esteja sempre no foco mais central de nossa atenção; de que nossas almas cheguem um dia a respirar Nossa Senhora como nossos corpos respiram o ar; de que, como disse o Prof. Plinio, esta devoção seja de longe a maior de nossas virtudes, à maneira de hélice que precede o avião, arrastando-o atrás de si. Notas 1. Os títulos aqui utilizados inteiramente com letras maiúsculas, pertencem à edição-tipo do “Tratado da verdadeira Devoção”. 2. A abreviatura “top.” refere-se aos tópicos do “Tratado da Verdadeira Devoção“. Esse sistema de números progressivos, correspondentes à sucessão das idéias, consta não só das edições em língua portuguesa, mas também da edição-tipo francesa. 3. Os negritos são nossos. 4. Os “Comentários” intencionalmente não abrangem todos os tópicos do “Tratado da Verdadeira Devoção”. Muitas passagens foram analisadas de maneira geral; outras não foram comentadas ou por não apresentarem particular necessidade, ou por pertencerem ao patrimônio de conhecimentos mariológicos correntes. Pois há muitas passagens no livro de São Luis Maria Grignion de Montfort que dispensam explicações, como, por exemplo, o modo pelo qual se deve rezar a Consagração (Cap. VIII), as novenas e as orações que a devem preceder. 5. É muito conveniente, necessário mesmo, ter em mãos o “Tratado da Verdadeira Devoção a Santíssima Virgem“, para ir com ele acompanhando, pari passu, estes comentários. Estátua de São Luís Maria Grignion de Montfort, que se encontra na Basílica de São Pedro, em Roma INTRODUÇÃO No “Tratado da Verdadeira Devoção” interessam-nos alguns aspectos principais, que convém destacar no início de nossos comentários. Em primeiro lugar, podemos notar o aspecto estritamente teológico da obra, na qual São Luís Maria Grignion de Montfort analisa a devoção a Nossa Senhora, os meios de A honrarmos, de Lhe darmos graças pelos benefícios recebidos, etc. Em segundo lugar, podemos destacar o papel de Nossa Senhora na luta contra o demônio e os inimigos da Igreja. São Luís Grignion adota e enriquece a idéia, já exposta por Santo Agostinho e desenvolvida posteriormente por Mons. Henri Delassus, sobre a existência de uma luta entre duas cidades – a Cidade de Deus e a cidade do demônio – como sendo o âmago de toda a História. Em seguida apresenta o papel de Nossa Senhora na Cidade de Deus. No que se refere ao papel da Virgem Santíssima na luta contra os agentes da Revolução, ele não fala explicitamente nem uma só vez. No entanto, toda a teologia dessa luta encontra suas raízes no livro de São Luís Grignion. Ora, é muito importante acentuar tudo isto, por ser este livro uma confirmação da mentalidade da família de almas de “Catolicismo”, e portanto uma garantia de que seguindo estas idéias permanecemos unidos ao espírito e à doutrina da Igreja. Em terceiro lugar, interessa-nos a obra a título histórico. Como sabemos, São Luís Grignion viveu no tempo de Luís XIV, que, sob certos aspectos, representa um ápice da História, a partir do qual a Humanidade não fez outra coisa senão descer. Ele faz uma descrição da sociedade do seu tempo, na qual se vêem já ferver os germens da Revolução Francesa. Vemos então um grande santo, que foi ao mesmo tempo um grande contra-revolucionário, apontando, já naquela época, a existência da mesma Revolução que então se formava nas entranhas da sociedade francesa. O nexo entre São Luís Grignion e a Revolução é, aliás, muito interessante. Ele foi vítima de uma oposição irredutível dos bispos jansenistas franceses. De excomunhão em excomunhão, de suspensão de ordens em suspensão de ordens, acabou reduzido a pregar apenas em duas dioceses da França. Essas dioceses foram justamente aquelas em que mais tarde não penetraria a Revolução Francesa; em que o povo lutaria ao lado do clero contra os insurretos; em que os católicos marchariam de encontro às hostes revolucionárias ao cântico de hinos religiosos, que seus antepassados tinham ouvido de São Luís Grignion. Pode-se assim delinear no mapa da França: a parte vacinada contra a Revolução foi a região por ele evangelizada; na zona dominada pelos jansenistas, que resistira à sua evangelização, a Revolução teve livre curso. Por último, interessa-nos o “Tratado da Verdadeira Devoção” pelo aspecto profético que o santo lhe imprimiu. São Luís Grignion é profeta no sentido restrito que esta palavra tem depois de encerrada a Revelação oficial, isto é, as suas profecias não são oficiais e obrigatórias como as da Escritura. Mas sem dúvida ele é dotado por Deus do carisma da profecia, e isto se percebe pela leitura de seu livro. Ele profetiza acontecimentos que fazem antever a Revolução Francesa e a crise de nossos dias, e afirma também com antecipação a imensa vitória da Igreja Católica através de uma nova era do mundo, que será uma era marial. São Luís Maria Grignion de Montfort previu um reino de Maria que virá, e este reino será a plenitude do reino de Cristo. Entretanto, São Luís Grignion não escreveu quatro tratados sobre estas quatro matérias, mas um só. E os tópicos referentes a estes quatro aspectos não aparecem na ordem em que os mencionamos, mas estão dispersos pela obra. Na medida das possibilidades, explicaremos segundo estes quatro critérios cada capítulo que formos comentando. Finalidade do “Tratado da Verdadeira Devoção” Encontramos no tópico 13 do “Tratado” o fundo do pensamento contido na sua introdução: “Meu coração ditou tudo o que acabo de escrever com especial alegria, para demonstrar que Maria Santíssima tem sido até aqui desconhecida, e que é esta uma das razões por que Jesus Cristo não é conhecido como deve ser“. Eis a razão de ser da introdução e de todo o livro: Maria Santíssima é desconhecida; Maria Santíssima deve ser conhecida; e, sendo conhecida, virá o reino de Cristo. O livro destina-se, pois, a propagar a devoção a Nossa Senhora, para que venha o reino de Cristo. Trata-se, portanto, de uma obra de larga visão e de alcance histórico muito amplo, fixando-se no desejo de trazer o reino de Cristo para um mundo que não o possui, fazendo-o preceder, em certo sentido, pelo reinado de Maria Santíssima. A razão teológica pela qual o reino de Cristo será precedido pelo reinado de Maria, São Luís Grignion a coloca no tópico 1: “Foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo“, isto é, se Maria Santíssima não tivesse vindo ao mundo, Jesus Cristo não teria vindo; “e é também por meio d’Ela que Ele deve reinar no mundo“, ou seja, a devoção a Jesus Cristo deve vir ao mundo por intermédio de Maria Santíssima. Espalhar a devoção a Maria Santíssima é, pois, nesta perspectiva, a maior obra a que um homem pode se dedicar. Devoção a Nossa Senhora e preparação do reino de Cristo Este objetivo de São Luís Grignion presta-se desde logo a um comentário. O santo profeta propõe-se a preparar o futuro reino de Cristo fazendo o que lhe parece ser o mais essencial, o mais importante, o mais urgente, o que, na ordem concreta dos fatos, produzirá quase que automaticamente o resto: espalhar a perfeita devoção a Maria. A derrota do espírito do mundo e a restauração da civilização sobre os princípios da Igreja Católica não se começam, portanto, por meio da política, das obras, do talento ou da ciência. Na época mesma de São Luís Grignion, Bossuet encantava e deslumbrava Versailles e Paris com seus sermões; entretanto, para evitar a derrocada religiosa da França, não foram decisivos. O começo da regeneração de todas as coisas está na piedade, no afervoramento da vida interior, está propriamente nos fundamentos religiosos da vida de um povo. O apostolado essencial é de caráter estritamente religioso: afervorar, formar na piedade, formar o caráter. O mais são conseqüências, são complementos. Importantes, é verdade, mas complementos. E a grande lição que São Luís Maria Grignion de Montfort fixa já no início do “Tratado”, e desenvolve mais longamente depois, é a de que na formação do caráter é condição básica e indispensável a devoção a Nossa Senhora. Possuindo-se verdadeiramente esta devoção, o caráter terá todos os meios sobrenaturais necessários para florescer, com a correspondência da vontade. Não se formando esta devoção, o próprio regime de expansão da graça na alma fica comprometido, e nada será possível conseguir. Portanto, a devoção a Nossa Senhora é condição necessária para tudo quanto diz respeito à salvação individual, à salvação da civilização e à salvação eterna de todos quantos constituem, em dado momento, a Igreja militante. São Luís Grignion tinha pois em mente, com esse livro, uma obra da mais alta importância para a renovação dos séculos futuros. A nós cabe, portanto, ser sôfregos em possuir esta devoção a Nossa Senhora, por ele pregada. Em outros termos, fomos chamados a uma obra definida, com objetivos definidos, e só a realizaremos se tivermos em nosso espírito esta devoção. Se ela é, como vimos, indispensável para que o mundo se regenere em Nosso Senhor, e se queremos trabalhar para isso, é necessário ir em busca desta devoção. O “Tratado da Verdadeira Devoção” não é, pois, um livro qualquer de piedade, apresentando uma devoção a algum santo, boa por certo, mas que se pode indiferentemente ter ou não ter. A devoção a Nossa Senhora é uma devoção essencial, “conditio sine qua non” para nosso trabalho. E só a atingiremos no mais alto grau com a forma e os fundamentos desenvolvidos por São Luís Grignion de Montfort. D. Chautard explana a tese de que a vida interior é fundamental para o desenvolvimento das obras, e de que o apóstolo deve possuí-la para que sejam fecundas. Explica, ainda, o que é a vida interior e quais os meios para obtê-la; entre estes, refere-se à devoção a Nossa Senhora. São Luís Grignion pressupõe todas estas afirmações (que já eram doutrina da Igreja, e que seriam desenvolvidas por D. Chautard) mostrando, porém, que a viabilidade delas está na dependência de uma grande devoção a Nossa Senhora. Pressupondo o essencial – a vida interior – ele toma um caminho que é de algum modo o essencialíssimo: a devoção a Maria Santíssima. É este o canal por onde passam todas as graças necessárias para vivificar toda a estrutura da vida interior e da vida de apostolado. Maria Santíssima é insuficientemente conhecida Como vimos, no final da introdução São Luís Grignion diz: “Meu coração ditou tudo o que acabo de escrever com especial alegria, para demonstrar que Maria Santíssima tem sido até aqui desconhecida” (tópico 13). Portanto, já na introdução ele inicia esta demonstração, e a desenvolverá depois através do livro. Por “desconhecida” deve-se entender “muito menos conhecida do que Sua excelência e Seus admiráveis predicados exigem”. Assim, pois, na introdução estão ditas muitas coisas que devem causar surpresa aos leitores. Vejamos se em nós elas causam alguma surpresa. Servirá de teste para ver se conhecemos, nós também, a Nossa Senhora. Tópico 1: “Foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo, e é também por meio d’Ela que Ele deve reinar no mundo“. Esta verdade, nós não a encontramos no comum dos autores hoje em voga. E sobretudo não a encontramos afirmada com esta incisão, com esta clareza, com esta perfeição. Ela é conhecida pela maioria dos fiéis, é certo, mas de modo difuso, vago e inconsistente. É raríssimo que a encontremos explicitada com esta clareza lapidar, com esta riqueza de sentido condensada em poucas palavras. Em São Luís Grignion esta verdade é um ensinamento preciso e básico, que ele ainda desenvolverá ao longo da obra. Tópico 2: “Toda a sua vida Maria permaneceu oculta; por isso o Espírito Santo e a Igreja a chamam “Alma Mater” – Mãe escondida e secreta. Tão profunda era a sua humildade, que para Ela o atrativo mais poderoso, mais constante, era esconder-se de si mesma e de toda criatura, para ser conhecida somente de Deus“. Esta verdade é geralmente mais conhecida. Tópico 3: “Para atender aos pedidos que Ela Lhe fez de escondê-La, empobrecê-La, Deus providenciou para que oculta Ela permanecesse em Seu nascimento, em Sua vida, em Seus mistérios, em Sua ressurreição e assunção, passando despercebida aos olhos de quase toda criatura humana. Seus próprios parentes não A conheciam; e os Anjos perguntavam muitas vezes uns aos outros: `Quæ est ista? ‘… – Quem é Esta? (Cânt. 3, 6; 8, 5), pois que o Altíssimo lhas escondia; ou, se algo lhes desvendava a respeito, muito mais, infinitamente, lhes ocultava“. Não é também uma verdade nova para muita gente. Sabemos que, devido a uma prece de Nossa Senhora, os Santos Evangelhos quase não se referem a Ela; e que, por sua vez, a Teologia teve que fazer um admirável trabalho de dedução das verdades contidas na Escritura, para formar através dos séculos a Mariologia. Tópico 4: “Deus Pai consentiu que jamais, em Sua vida, Ela fizesse algum milagre, pelo menos um milagre visível e retumbante, conquanto lhe tivesse outorgado o poder de fazê-los. Deus Filho consentiu que Ela não falasse, se bem que lhe houvesse comunicado a sabedoria divina. Deus Espírito Santo consentiu que os apóstolos e evangelistas a Ela mal se referissem, e apenas no que fosse necessário para manifestar Jesus Cristo. E, no entanto, Ela era a Esposa do Espírito Santo“. É de se notar que o Espírito Santo, ao ditar os Livros Sagrados, calou-se sobre Ela, tal a força da prece que Nossa Senhora dirigira a Deus, para permanecer oculta. Até aqui a doutrina não é nova, por referir-se à humildade de Nossa Senhora. Ao tratar a seguir da Sua grandeza, contudo, veremos que Ela é muito menos conhecida. Deve-se isto a uma espécie de complexo que há em acentuar sempre o aspecto humilde e pobre, mostrando apenas a sombra e a penumbra em que Ela quis se ocultar, sem mostrar aquilo que constitui o contraforte luminoso e muito legítimo de seu ser. Excelências das faculdades da alma de Nossa Senhora Tópico 5: “Maria é a obra-prima por excelência do Altíssimo“. Ao olharmos uma noite de céu estrelado, em lugar de considerarmos apenas as grandezas de Deus – pensamento aliás muito louvável – saberemos nós contemplar também Maria Santíssima, incomparavelmente maior e mais formosa do que cada um dos astros que estão no céu, e de todos eles no seu conjunto? Sendo Ela a obra-prima da criação, toda a beleza, toda a grandeza, toda a excelência que Deus pôs no firmamento é pequena em relação à que pôs n’Ela. O céu que vemos não é senão uma imagem, uma figura da grandeza de Nossa Senhora. Apesar de ser mera criatura, tudo quanto n’Ela há excede muito, em perfeição, todas essas belezas criadas, e isto de um modo inexprimível. Inteligência incomparável – Quando nos deparamos com um homem muito inteligente, podemos ter o pensamento salutar de que ele, comparado a Nossa Senhora, é mais ignorante que o mais primário analfabeto comparado ao maior dos sábios. São Tomás de Aquino, comparado a Ela, era um ignorante, tal a plenitude e a perfeição de Seu conhecimento. Sua inteligência não tem somente toda a perfeição de uma inteligência humana à qual nada há que acrescentar, mas possui ainda o conhecimento de todas as coisas que à mais alta das criaturas é dado conhecer. Aquilo que no mundo pode haver de mais inteligente, comparado a Nossa Senhora, é zero, é cisco, é nada. Toda a inteligência possível a uma criatura tão excelsa, alargada pela plenitude das graças do Espírito Santo, Ela a tem. É algo, portanto, excelente e sumamente inconcebível. Quando rezamos a Ela, devemos ter presente esta excelência que lhe é própria – a de ter uma inteligência incomparável. Assim como há dados misteriosos da natureza que escapam totalmente ao nosso conhecimento – não sabemos, por exemplo, quantos grãos de areia existem em todas as praias da Terra – assim também não temos termo algum de comparação para compreendermos a riqueza da inteligência de Nossa Senhora. É algo que está fora do nosso alcance, e que não nos é possível imaginar. Pois bem, esta é uma verdade que deve estar sempre muito presente no cabedal dos conhecimentos que sobre Ela possuímos. Vontade Heróica – Passemos às perfeições de Nossa Senhora no que se refere à Sua vontade. Tomemos alguns fatos de heróica e sobrenatural força de vontade: 1) São Lourenço, que, colocado sobre uma grelha, suporta heroicamente o fogo até que, ao cabo de algum tempo, desafia: “Podem virar do outro lado, pois deste já estou assado”; 2) Um mártir da Tebaida, que, amarrado a uma mesa, foi tentado de todas as formas por uma mulher; e não tendo mais como resistir à tentação, mordeu a própria língua e cuspiu-a fora, a fim de evitar o consentimento. São fatos que demonstram um verdadeiro e admirável heroísmo. Mas nada são, comparados ao heroísmo de Nossa Senhora, que os supera acima de qualquer proporção. Não passam de um grão de areia, comparado ao globo terrestre. O sofrimento que Ela teve consentindo na Paixão de Nosso Senhor, desejando até o último instante sua consumação plena e tudo sofrendo com Ele, é algo que não pode ser comparado a nada de humano, nem sequer ser expresso em linguagem desta Terra. Perto de sua “com-Paixão”, os exemplos dados tornam-se insignificantes. Ela não é uma grande santa apenas por ser a Mãe de Deus. É bem verdade que este é o título essencial de Sua santidade, a razão pela qual recebeu toda as graças. Mas é preciso notar ainda que Ela correspondeu à graça e se tornou uma grande santa pela perfeição insondável de sua correspondência, perto da qual toda a generosidade de todos os santos nada é. Santo Anselmo no-lo exprime lapidarmente: “Aquilo que todos os santos podem conVosco, Vós o podeis só, e sem nenhum deles. Se Vós guardais o silêncio, ninguém rogará por mim, ninguém me ajudará, mas falai, e todos rogarão por mim, todos se apressarão a me socorrer“. Isto porque Ela é a Mãe de Deus, Medianeira de todas as graças, e Sua virtude transcende numa proporção inconcebível a de todos os demais santos. Destas afirmações, nem uma vírgula se poderá tirar. E é preciso reconhecermos que não temos disto uma noção digna; ficamos, em geral, em figuras de retórica: “Tu, a mais bela, a mais formosa…”. Embora verdadeiras, é mister aprofundá-las. Sensibilidade harmoniosa – Falamos da inteligência e da vontade de Nossa Senhora. Falemos da Sua sensibilidade. Nada há de mais desregrado no homem do que a sensibilidade, como efeito do pecado original. Sentimos, por exemplo, inclinação para muitas coisas que moralmente não poderíamos querer. Conseqüentemente, precisamos manter uma luta acesa entre a tendência que temos para o bem e a nossa inclinação para o mal. Em Nossa Senhora, concebida sem pecado original, não havia esses desequilíbrios. Sua sensibilidade, de uma delicadeza e de uma força perfeitas em todas as suas vibrações e em todos os seus movimentos, era inteiramente ajustada a tudo quanto a razão e a vontade podiam desejar. Era um ser todo de harmonia, no qual não havia nenhuma das incontáveis misérias provocadas em nós pelo pecado original. Ela foi imaculada desde o primeiro instante de Seu ser. As perfeições de Maria Santíssima ultrapassam a capacidade humana de conhecimento. Retomemos o tópico 5: “Maria é a obra-prima por excelência do Altíssimo, cujo conhecimento e domínio Ele reservou para Si“. Que belíssima noção! Maria Santíssima é tão grande que o próprio São Luís Grignion, que não é senão um seu pequeno menestrel, já é quase inesgotável quando fala d’Ela. Ele afirma ser Nossa Senhora tão enorme, tão colossal – e o que são estes adjetivos, que de longe Ela transcende? – que só Deus A conhece em toda a extensão das Suas perfeições. Nós não podemos sequer ter disto uma pálida idéia. Há n’Ela belezas, há culminâncias, há encantos, há perfeições, há excelências que escapam e sempre escaparão completamente ao nosso olhar, e que são somente por Deus contempladas. Imaginemos esses universos, essas constelações imensas de estrelas, que o homem não conhece e possivelmente jamais conhecerá, e cujas belezas ficam reservadas à exclusiva contemplação de Deus. Assim é Maria Santíssima. Há n’Ela coisas que nunca homem nenhum conhecerá, reservadas que são ao conhecimento exclusivo de Deus Nosso Senhor. N’Ela há esta nota de incognoscibilidade: paramos extasiados a Seus pés, compreendendo, após ter compreendido muito, que o mais que se compreendeu é que quase nada compreendemos. Estamos sempre no Seu pórtico, um pórtico para nós demasiadamente grande, tal a Sua excelência. Continuemos o tópico 5: “Maria é a Mãe admirável do Filho, a quem aprouve humilhá-La e ocultá-La durante a vida para Lhe favorecer a humildade, tratando-A de mulher – “mulier” (Jo 2, 4; 19, 26) – como a uma estrangeira, conquanto em Seu coração A estimasse e amasse mais que a todos os anjos e homens“. São Luís Grignion desenvolveu neste parágrafo a idéia de que, durante a vida, também Nosso Senhor A manteve ignorada; apenas Ele a conhecia. “Maria é a `fonte selada’ (Ct 4, 12) e a esposa fiel do Espírito Santo, onde só Ele pode penetrar“. Retorna aqui a idéia de Nossa Senhora como criatura reservada ao conhecimento de Deus. “Maria é o santuário, o repouso da Santíssima Trindade, em que Deus está mais magnífica e divinamente que em qualquer outro lugar do universo, sem excetuar seu trono sobre os querubins e serafins“. Sabemos que os Anjos da guarda ocupam os graus inferiores na hierarquia celeste. Tendo certa vez aparecido a uma santa o seu anjo da guarda, ela ajoelhou-se, pensando estar na presença do Altíssimo. A grandeza dos anjos é tal que, no Antigo Testamento, em várias aparições, os homens julgavam que fossem o próprio Deus. E no Céu há miríades de Anjos. Em que assombro ficaríamos, se os víssemos a todos e ao mesmo tempo! Nossa Senhora, contudo, está acima de todos eles reunidos. Assim, diante de Sua insondável alma, nós nos deparamos novamente com termos imperfeitos de comparação, e o melhor que podemos dizer é que são totalmente insuficientes. “… e criatura alguma, pura que seja, pode aí penetrar sem um grande privilégio“. Existe, pois, uma categoria de criaturas privilegiadas que podem penetrar no conhecimento de Nossa Senhora. Essas criaturas privilegiadas – São Luís Grignion no-lo explica – são aquelas a quem Deus dá, por liberalidade, o dom que o comum das pessoas não têm, de conhecerem e praticarem a devoção a Nossa Senhora do modo especial por ele ensinado. E os “apóstolos dos últimos tempos”, de que ele nos fala, terão esse dom. Por isso serão terríveis no combate ao mal e eficacíssimos na defesa do bem. Serão almas elevadíssimas, que terão a graça de penetrar neste umbral da devoção a Nossa Senhora. Outras qualidades de Maria Santíssima Tópico 6: “Digo com os santos: Maria Santíssima é o paraíso terrestre do novo Adão“. O paraíso terrestre era de encantos, de delícias, de perfeições. São Luís Grignion diz que Nosso Senhor estava no ventre puríssimo de Maria Santíssima com a excelência e a perfeição com que Adão estava no paraíso; Nossa Senhora, durante a concepção, era o paraíso do novo Adão, Jesus Cristo. Quando recebemos na comunhão este mesmo Jesus Cristo, acostumado que está a tais paraísos, perguntamo-nos: o que achará Ele da nossa hospitalidade? Oferecemos-Lhe ao menos – a Ele que condescende em descer à nossa choupana – o modestíssimo luxo de uma casa limpa? “… no qual Este se encarnou por obra do Espírito Santo, para aí operar maravilhas incompreensíveis“. Nosso Senhor, durante a Sua vida em Maria Santíssima – e esta é uma belíssima idéia que São Luís Grignion desenvolverá mais tarde – quando Ela era o tabernáculo no qual Ele habitava, já aí operou maravilhas. São Luís Grignion compôs uma oração dirigida a Nosso Senhor enquanto vivendo em Maria Santíssima: “O Iesu, vivens in Maria“. “… É o grande, o divino mundo de Deus, onde há belezas e tesouros inefáveis. É a magnificência de Deus, em que Ele escondeu, como em Seu seio, Seu Filho único, e n’Ele tudo que há de mais excelente e mais precioso. Oh! Que grandes coisas escondidas Deus todo-poderoso realizou nesta criatura admirável, di-lo Ela mesma, como obrigada, apesar de Sua humildade profunda: `Fecit mihi magna qui potens est’ (Lc 1, 49) “. O sentido inteiro deste canto do Magnificat, só o compreenderemos se considerarmos quem é Nossa Senhora. Realmente, é preciso lembrarmo-nos do poder de Deus, para compreender que Ele possa ter operado essas maravilhas que n’Ela operou. “… O mundo desconhece estas coisas porque é inapto e indigno“. São Luís Grignion referiu-se a uma raça (no sentido teológico, e não biológico) misteriosa, à qual Deus concede o favor único de poder penetrar nos umbrais desta devoção. Ele nos fala agora de uma raça má, que por sua maldade, por sua impureza, por sua indignidade, detesta tudo isto. É o reverso da medalha. Devoção a Nossa Senhora: característica da santidade Tópico 7: “Os santos disseram coisas admiráveis desta cidade santa de Deus; e nunca foram tão eloqüentes nem mais felizes – eles o confessam – do que ao tomá-La como tema de suas palavras e de seus escritos“. Este trecho evidencia-nos uma verdade muito importante. Não se deve pensar que a devoção a Nossa Senhora é um estilo de santidade inaugurado por São Luís Grignion ou levado por ele ao último grau de intensidade. A devoção especialíssima e intensíssima a Nossa Senhora é característica de todos os santos. Embora não se possa dizer que todos a tenham levado ao ponto a que a levou São Luís Grignion, estudando a vida de piedade de qualquer deles notamos sempre uma devoção ardentíssima a Ela, que é a dominante logo abaixo do culto a Deus Nosso Senhor. Essa devoção, contudo, se reveste em cada um de aspectos particulares. É raro, neste sentido, encontrar algum santo que não tenha encontrado um aspecto novo de piedade em relação a Nossa Senhora. E não há um só que não conheça dever à intercessão d’Ela não só o seu progresso espiritual, mas até mesmo a sua perseverança. Todos passaram por duras provas espirituais, das quais se viram livres por uma intervenção especial d’Ela. São Francisco de Sales, por exemplo, teve em sua juventude uma terrível crise, relativa ao problema de sua predestinação. Estudando o assunto, ficou como que tragado pelo abismo do problema, e foi duramente assediado pelo demônio, que lhe insuflava qua a predestinação não era para ele. Isto lhe causou uma tremenda depressão. Começou a emagrecer, a perder a saúde, nada havia que lhe restituísse a paz à alma. Certo dia, rezando diante de uma imagem de Nossa Senhora, pediu-Lhe que, ainda que tivesse que ir para o inferno, mesmo assim lhe fosse dado não ofender a Deus na Terra, pois o que o apavorava do inferno não era o tormento, mas a idéia de ofender eternamente a Deus. E recitava “Memorare, o piissima Virgo Maria“, que estava escrito embaixo da imagem. Ele mesmo nos conta que, logo após o término da oração, restabeleceu-se em sua alma uma paz admirável. Viu então claramente todo o jogo do demônio, de que estava sendo vítima, e recuperou aquela serenidade que viria a ser a nota dominante de toda a sua vida espiritual. Encontramos na vida de todos os santos esta constante, de uma particular devoção a Nossa Senhora. Ela é, pois, uma característica segura da verdadeira piedade, e devemos absolutamente duvidar da santidade de alguém que não a possua. Seria sofisma dizer algo que é especial para todos, por isso mesmo não o será para ninguém. Uma mãe de muitos filhos tem, para com cada um, carinho especial; e cada filho ama a própria mãe de um modo particular. Assim, devemos cada qual amar Nossa Senhora de maneira inteiramente própria, especial e inconfundível. Ela, por sua vez, terá para conosco um carinho que não será um carinho genérico, de quem dissesse: “toda aquela gente, eu a amo”; mas um carinho todo particular, que pousará sobre cada um de nós, individualmente considerados, como se só nós existíssemos na face da Terra. Maria Santíssima é a Onipotência Suplicante “…E depois, proclamam que é impossível perceber a altura dos Seus méritos, que Ela elevou até ao trono da Divindade; que a amplitude da Sua caridade, mais extensa que a Terra, não se pode medir; que está além de toda compreensão a grandeza do poder que Ela exerce sobre o próprio Deus“. Por ser este Seu poder tão grande, que se exerce até sobre o próprio Deus, os teólogos têm-Na chamado de “onipotência suplicante”. Parece haver, à primeira vista, uma contradição nos termos, pois quem suplica, nada pode. Ela, porém, é de fato a onipotência suplicante, porque Sua súplica pode tudo sobre Aquele que é onipotente. Desta maneira Ela pode, na prática, absolutamente tudo. Todo o exposto nesta introdução não nos deve ficar como tiradas piedosas e ocas. É preciso que fique compreensível, razoável, como tudo que brota da razão com base na Fé. Devemos encontrar nisto substancioso alimento; deve servir-nos de combustível, e não apenas de incenso. Estas afirmações não devem ficar no vácuo. É preciso sabermos aplicá-las concretamente em nossa vida espiritual, nas dificuldades, nos problemas, nas lutas. É preciso lembrarmo-nos de que Nossa Senhora é a onipotência suplicante, e termos n’Ela uma confiança ilimitada. Mas nem sempre a temos tão arraigada no espírito quanto desejaríamos. Imaginemos, por exemplo, que Deus apareça à nossa mãe terrena, e lhe dê a possibilidade de nos fazer todo o bem que quiser. Ficaríamos radiantes, evidentemente, pois tudo conseguiríamos facilmente. Ora, Nossa Senhora nos ama imensamente mais do que todas as mães terrenas reunidas amariam seu filho único. Por isso deveríamos ficar muito mais contentes em saber que Ela no Céu olha para nós, do que com a idéia de uma proteção eficacíssima de nossa mãe terrena. Segundo princípio: Deus quer servir-se de Maria na santificação das almas Capítulo II – Verdades fundamentais da devoção à Santíssima Virgem Capítulo II (continuação): Mediação Universal de Nossa Senhora na obra de São Luís Grignion Capítulo III – Escolha da verdadeira devoção à Santíssima Virgem Capítulo IV – A perfeita devoção à Santíssima Virgem ou a perfeita consagração a Jesus Cristo Capítulo V – Motivos que nos recomendam esta devoção Capítulo VI – Figura bíblica desta perfeita devoção: Rebeca e Jacó |