São Luís IX, Rei de França – Exemplo de como é mais nobre governar através de senhores feudais do que por meio de governadores
Resumo das aulas anteriores
Depois da descrição da desigualdade existente nos vários reinos da Criação, ou seja, a desigualdade entre os Anjos, entre os homens etc., afirmei, na última aula que, segundo Santo Tomás, assim como existem Anjos com a virtude cognoscitiva mais desenvolvida, há outros com a virtude operativa preponderante. Entre os que possuem virtude cognoscitiva mais desenvolvida existe uma hierarquia de autoridade, de mando, determinada pela própria natureza das coisas, que faz com que os que têm virtude cognoscitiva mais alta dominem sobre os que têm virtude cognoscitiva menos alta. Assim, os que têm virtude cognoscitiva preponderante dominam sobre os que têm virtude operativa preponderante. E dominam porque o conhecer e o ordenar são coisas intrinsecamente superiores ao operar e ao executar.
Depois, há um domínio daqueles que têm virtudes operativas, na ordem em que essa virtude operativa é maior. Mas isto acompanhado de uma virtude cognoscitiva também maior, isto é, o Anjo que tem maior virtude operativa tem, em relação ao que tem menor virtude operativa, uma maior virtude cognoscitiva.
A autossuficiência do homem é uma quimera
Em seguida entra a intercessão dos Anjos entre os homens. Santo Tomás mostra que por causa da debilidade do intelecto humano, o homem nem sequer poderia tocar seu destino para diante e conhecer as verdades que deve conhecer, sem o auxílio dos Anjos. Esta ideia do homem perfeitamente autossuficiente, que se dirige inteiramente por si mesmo, que não recebe conselho de ninguém, que se basta pelo menos dentro da ordem da natureza, ideia esta tão cara à Revolução Francesa, não é verdadeira.
A expressão direta de Santo Tomás sobre este assunto é a seguinte: “propter debilitatem intelectualis hominis notitiam eorum…
Quer dizer, “eles [os homens] não têm as luzes necessárias para saber aquilo que compete ao homem saber, e eles só adquirem essas luzes em virtude da comunicação dos espíritos superiores, que são os Anjos”.
Portanto, o homem para reger seu destino terreno está na dependência dos Anjos porque ele precisa dos Anjos. Estes exercem sobre ele uma verdadeira autoridade. Os homens, por causa disso, devem obedecer aos Anjos.
O governo dos homens: uns foram criados por Deus para mandar, outros para obedecer
Como a preeminência da virtude cognoscitiva é aquilo que dá a hierarquia em todo o universo, acontece, por causa disto, que como todos os homens têm virtudes cognoscitivas desiguais, aqueles que têm uma maior virtude cognoscitiva, por natureza devem mandar naqueles que têm virtude cognoscitiva menor, ou que têm virtude operativa. Há homens que foram criados, por Deus para servir outros homens; sua natureza consiste em servir. E é bem a justificação daquela pitoresca e bonita instituição dos germanos bárbaros, que se chama “trust”.
Quando se apresentava aos germanos um guerreiro capaz, valoroso, com qualidade de líder, era ele seguido por outros guerreiros que formavam com ele uma espécie de “compagnonage”, um grupo. Este guerreiro central era o modelo dos outros, a honra e o chefe dos outros. Em torno dele formava-se um grupo solidário; a alegria dos membros daquele “trust” era de servir ao chefe, e de se sentirem unidos por uma verdadeira fraternidade.
Isto se explica no plano teológico muitíssimo bem. Os homens de um engenho maior foram feitos para serem servidos pelos outros; os homens de uma maior capacidade operativa foram feitos para mandar naqueles que, na ordem da ação, têm uma virtude operativa menor. E há uma negação na ordem natural das coisas, há um princípio revolucionário quando os homens negam isto.
Uma curiosa expressão desse espírito revolucionário consiste em dizer: “Obedeço a X desde que ele tenha sobre mim uma autoridade jurídica. Eu obedeço, porque isto não é contrário à minha dignidade. Eu compreendo que há uma lei que preside a isto, mas não posso aceitar que uma pessoa, que não tenha sobre mim nenhuma autoridade jurídica, mande. Isto seria admitir a superioridade pessoal; seria admitir uma autoridade dentro da ordem da influência, e isto é contrário à minha dignidade”.
Este é um modo de ver perfeitamente revolucionário. A verdade é que o vínculo mais profundo pelo qual um homem manda no outro não é o vínculo jurídico. O vínculo jurídico é a expressão de um vínculo natural. O vínculo mais profundo pelo qual um homem manda no outro é a superioridade da virtude cognoscitiva sobre a operativa, e a superioridade da virtude operativa.
Exemplo de Napoleão
Por exemplo. Napoleão e seus guerreiros. Mandava ele em seus guerreiros porque era imperador, ou era ele imperador porque mandava em seus guerreiros?
Ele se tornou imperador porque mandava. De tanto mandar, e de tanto ter uma autoridade natural sobre aqueles homens, e uma autoridade que vinha de sua superioridade pessoal que os homens reconheciam, isto acabou tomando fórmula no título imperial. O título nasceu da autoridade.
Esta é a verdadeira ordem das coisas.
Exemplo de Carlos Magno
Carlos Magno mandava em seus pares porque era imperador? Em relação aos pares o título imperial podia ter muita importância, mas havia uma coisa que estava além disso. Se Carlos Magno perdesse o trono, se Carlos Magno caísse na desgraça, esses homens o seguiriam em sua desventura. Isto vinha do fato de haver entre eles um nexo de caráter vital, de caráter natural.
Um princípio profundamente contra-revolucionário: a desigualdade entre os homens
Estamos aqui, portanto, diante da afirmação de um princípio profundamente contra-revolucionário. Esse princípio nega radicalmente a igualdade entre os homens. […]
As superioridades pessoais dão lugar a uma verdadeira autoridade. É uma inversão completa do que poderíamos chamar o regime estadista moderno, em que o indivíduo, pelo protocolo, vale quando ele tem uma autoridade do Estado. E quando ele não tem essa autoridade, não se reconhece valor pessoal, prestígio, posição pessoal etc., porque são coisas que não caem no domínio jurídico.
A jurisdição dos Anjos e dos homens sobre o universo material
Mostramos depois como Santo Tomás apresenta a superioridade dos homens sobre os animais e os outros seres; [os animais] não têm essas faculdades cognoscitivas como o homem, mas mostra ele também que os animais têm uma certa superioridade sobre os outros seres.
Diz ele também uma coisa curiosa: não é supor que o homem tem o domínio das zonas da natureza que estão abaixo dele, porque nem isto é verdade. Os Anjos dirigem o universo material em seus movimentos mais amplos e profundos, enquanto os homens têm apenas uma parte na direção do universo material. Há uma jurisdição dos Anjos sobre o universo material, a par de uma jurisdição dos homens.
Todo poder e toda a grandeza que vem de Deus, tem a categoria de “Anjo” em relação à categoria inferior
Podemos concluir daí mostrando que Santo Tomás diz que a palavra “Anjo” quer dizer enviado. Por isto o Anjo tem tal nome porque é enviado por Deus para reger os coros inferiores e usa os coros inferiores para reger os outros graus da criação. E a palavra Anjo é empregada muitas vezes na Sagrada Escritura para designar um homem que é mandado para dirigir e orientar os outros homens. Por exemplo, o Anjo da Igreja de Esmirna, o Anjo da Igreja de Laodiceia, comparados a Anjos, não figurativamente, porque eram parecidos com Anjos, mas porque como bispos são enviados de Deus para reger essas igrejas e, portanto, eles se chamam propriamente “Anjos”.
Teríamos então, a partir de todo o poder, de toda a força, de toda a grandeza que vem de Deus, por uma série de causas descendentes, teríamos que cada categoria é “Anjo” em relação à categoria inferior. Cada categoria representa Deus ao governar e executar a Providência de Deus em relação à categoria que vem abaixo.
Como da capacidade de inteligir decorre a faculdade de ordenar e o dever de dirigir
Santo Tomás de Aquino pergunta como essa superioridade natural gera um direito de mandar.
Existe a superioridade: como é que ela gera um direito de mandar? Como é que do fato de um ser superior ao outro se deduz o direito de um mandar no outro? Ela é uma explicação tão bonita quanto interessante.
A fonte do governo do universo é a Providência de Deus, e aqueles que têm um intelecto mais alto participam mais plenamente da Providência de Deus; e participando mais plenamente da Providência, é justo que mandem naqueles que estão em baixo. Inteligir é ser capaz de ordenar. Portanto aqueles que são capazes de ordenar devem dirigir aqueles que são capazes de executar. De onde a superioridade intelectiva, cognoscitiva, gera o direito de mandar.
Também no operar: aqueles que são mais operosos devem ser coadjuvados pelos menos operosos. E como a ação de coadjuvar é de subordinação, é claro que aquele que tem mais poder e que é coadjuvado manda no que é coadjuvante.
A noção de “ser intermediário”
Tendo em vista aquele quadro com a ordem dos Anjos, podemos perguntar: em vista disto, Deus no mais alto dos Céus, depois os Anjos de acordo com sua hierarquia, os homens e esses governos que vêm do alto, tudo isto nos causa uma impressão de beleza, de ordem, de grandeza. E qual é a razão disto? Santo Tomás dá uma explicação muito interessante sobre este assunto, mas para o entendermos bem é preciso conhecer a noção de ser intermediário.
Ele mostra que um ser intermediário é aquele ser que, quando comparado com um lado, é parecido com o outro.
Por exemplo, a água morna é uma coisa que, como temperatura, está colocada entre a água quente e a fria. Quando comparada com a quente, a água morna se parece com a fria; quando comparada com a fria, ela se parece com a quente. Eu estou na água quente, e passo para a morna, posso me resfriar; estou na água fria e passo para a morna, posso transpirar. Quer dizer, comparada com aquilo de onde vem, parece com outra. Portanto, tem em si um duplo aspecto, conforme o ponto de vista sob o qual nos colocamos.
Isto é a característica do ser intermediário.
Beleza do feudalismo estabelecido por Deus na ordem criada
Isto posto, Santo Tomás mostra qual é a beleza que há nesse esquema assim todo entrosado de autoridades que mandam e que obedecem; qual a beleza desse verdadeiro feudalismo do Céu.
Enuncia ele o seguinte: deve haver uma certa proporção no modo pelo qual a Providência de Deus chega às coisas ínfimas. Há uma certa proporção nesse modo de descer. Por isto, assim como as criaturas supremas são governadas por Deus imediatamente, assim as inferiores são governadas pelas superiores. Falando antropomorficamente quer dizer: a distância do primeiro grau imprime uma similitude com todo o resto. É como uma escada onde o primeiro degrau dá todo o desenvolvimento da escada. Assim como Deus governa as coisas superiores, assim há analogia no modo como as coisas superiores governam as que lhes são inferiores.
Tudo isto em obediência ao princípio de que o último proceda do supremo por degraus proporcionais.
Decorre daí uma ideia da beleza e da harmonia que devem estar nas relações humanas; há uma proporção pela qual as coisas descem de Deus até o que há de mais baixo, repetindo-se sempre a si mesmas; e repetindo-se por meio dessas coisas intermediárias que, por sua natureza, participam de uma e de outra.
Os extremos unem-se harmonicamente por esse meio. Há uma verdadeira lei de beleza do universo.
Não há verdadeira beleza numa organização social quando não existem graus intermediários
Quando se vê certo tipo de monarquistas que se regalam com nobreza, com Idade Média, feudalismo etc., vê-se que parece que eles se encharcam com uma espécie de beleza ideal que existe em tudo isto, de uma espécie de perfeição que está acima dessa perfeição utilitária, e é uma espécie de honestidade que há nisso, e é intrínseca a isso. Vê-se que é porque a organização da Idade Média aplica bem precisamente esse princípio. Quer dizer, do mais alto até as escalas mais baixas, é uma proporção que se repete e pela qual as escalas mais altas chegam ao ínfimo.
Por exemplo, eu tenho uma medíocre simpatia por uma concepção tzarista. O tzar, naquele grande (….), que é um colosso, valendo de fato para ele nada; nem mesmo a nobreza tem alguma consistência para ele; uma plebe de mujiques enorme, uma plebe farta seria uma plebe feliz, dirigida por um bom monarca. Para mim isto não tem verdadeira beleza.
A verdadeira beleza está em não haver este buraco entre o rei e o plebeu, mas haver uma porção de graus que, pelo sistema dos intermediários, acabam chegando ao outro extremo. Nisto está a harmonia, a honestidade, a beleza dessa organização.
A beleza da organização da Igreja, instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo
Vemos, aliás, que Nosso Senhor Jesus Cristo organizou assim também a sua Igreja. Nada impedia a Nosso Senhor que organizasse somente Papa e fiéis, ou Papa e bispos. Mas, ao contrário, vemos toda uma hierarquia. Além disso, vemos na Igreja as diferenças de honra do Papa para os Patriarcas, dos Patriarcas aos Bispos etc. Há os Cardeais que não são Patriarcas; depois Arcebispos, Bispos, cinco categorias de Monsenhores, dois de Cônegos; e os Padres, que podem ainda ser o Pároco, os assistentes do Pároco etc., até o simples Padre de paróquia.
Há toda uma gradação, uma harmonia de uma coisa que vem muito do alto, e que se espraia para o que está mais baixo.
É propriamente a honestidade e a beleza da ordem da criação, que é reproduzida pela ordem política e pela ordem eclesiástica. E é isto que constitui o lado de idealismo político. É por onde a política pode ser um idealismo. Aqui é que há o ideal e o princípio, porque isto é verdadeiramente um princípio.
Aplicação prática: é inadmissível não querer para o próprio Estado uma organização gradativa e feudal – o condenável do “espírito republicano”
Fixemos agora isto. A meu ver, aqui está o ponto falho do [espírito republicano].
É admissível que um determinado Estado, por uma singularidade de conformação social, possa não ter uma organização dessas. Mas é inadmissível que uma pessoa não considere isto como o mais bonito e o mais desejável, e não tenha uma verdadeira simpatia por isto. E ser republicano […] por uma antipatia para com isto é ter espírito anticatólico, porque é odiar a perfeição que Deus introduziu no universo para que o universo tivesse harmonia de acordo com o Criador. E aqui está o traço propriamente condenável do “espírito republicano”.
Eu compreendo que um indivíduo me diga: “Meu país tem uma conformação social que não se presta a isto; é uma pena, terá uma organização muito menos bonita”. Aqui não se trata de beleza estética, mas do belo honesto.
Agora, não compreendo que um diga: “Graças a Deus foi proclamada mais uma república, estabeleceu-se mais uma igualdade, caiu mais uma nobreza, foi feita mais uma organização social sem essa beleza”. Isto é ter especificamente o espírito contrário àquilo que Deus quis fazer na criação. Pode-se dizer, não usando o termo anticatólico, que é um espírito diabólico. Quem vê isto e não gosta, é porque tem espírito do demônio.
Dois misticismos enfrentados, o da Revolução Francesa e o da Vandéia, no ataque às Tulherias
Então, temos bem aqui os dois misticismos: o misticismo da Revolução Francesa e o misticismo da Vendée [Vandéia].
Eu sempre me impressionei com a cena do ataque às Tulherias. Dentro, os fidalgos; fora, a plebe. Os fidalgos ainda representam a Idade Média; todo aquele espírito de hierarquia. São fidalgos de todas as categorias sociais; são plebeus também que vieram morrer pelo rei. Mas não vieram morrer pelo (…) de Luiz XVI, mas vieram morrer por aquela gradação e aquela hierarquia que eles representam até na hora de morrer. E aquela gente que veem lá fora cantando, aquilo é uma outra coisa que vem.
Aquela coisa obedece às leis do meio termo, comparado com hoje, ela ainda parece realeza. […]
O modo de governo de Deus no universo: o governo das causas segundas
Gostaria de mostrar agora algo interessante.
Podemos ver o governo de Deus no universo, em dois aspectos diferentes: primeiro aspecto, Deus; depois, os Anjos. Imaginem uma coisa que vai ficando menor, com uma qualidade mais alta que, como qualidade, vai ficando menor até [chegar a]o homem. Porque Santo Tomás diz que os Anjos são incomparavelmente mais numerosos que os homens, mais numerosos do que todos os homens criados. E isto, diz ele, em razão da perfeição do universo. Exatamente porque o universo é uma alta coisa, convém que os seres mais altos sejam mais numerosos, do que o contrário.
Temos aqui um governo de Deus que se exerce através das causas segundas.
Então há uma ação de Deus, que não é direta, mas é indireta.
A ação direta de Deus sobre a criação: criar, conservar, fazer participar da vida sobrenatural
Mas, ao mesmo tempo que Deus tem uma ação direta, em que o universo fica colocado diante dele, não nesta situação, mas nesta [o expositor refere-se às anotações no quadro negro]. Temos aqui: Anjos, homens, animais, etc. Qual é essa dupla ação?
Há certas coisas que pertencem a Deus fazer, e Ele faz diretamente e não utiliza intermediários. É uma ocupação especificamente divina.
1º) Por exemplo, criar. Deus não cria uns Anjos por meio dos outros, porque criar é próprio dEle.
2º) Deus não conserva os seres na existência (no sentido mais profundo, ontológico da palavra) por meio uns dos outros, mas é Ele que conserva.
3º) A vida sobrenatural da graça também é um dom criado por Deus, uma participação da vida divina, e a graça é uma ação direta de Deus.
Podemos dizer, então, que nessa tríplice [ocupação] – criar, conservar, [dar a] vida sobrenatural – a ação de Deus sobre os seres é direta. Aqui no “etc.”, naturalmente não há vida sobrenatural, mas a ação de Deus nas coisas de que elas são capazes, é também uma ação direta.
Então, temos duas ações de Deus: uma ação direta no criar, no conservar, no chamar à ordem da graça; e uma ação indireta neste [esquema] que acabamos de ver.
Similitude com a organização da Igreja
Extraordinariamente análogo, neste sentido, com a organização da Igreja, em que há algumas coisas em que o Papa exerce uma autoridade através dos canais competentes, mas, ao lado disto, o Papa tem autoridade direta sobre certas coisas. E foi porque alguns organismos medievais não seguiram esta regra que eles erraram.
Por exemplo, a monarquia francesa concedeu demais um poder indireto aos reis. E os reis ficaram quase sem terras e sem elementos para poderem se impor pessoalmente. O resultado foi que a monarquia passou a ser nominal durante muito tempo. E foi o defeito do Sacro Império Romano Alemão, enquanto não apareceu a Casa d’Áustria e um poder para se impor por si mesmo. Mesmo assim, alguns poderes diretos os reis e imperadores deveriam ter conservado.
Eu sei que a analogia entre o Papa e essa situação, o imperador e essa situação, é uma analogia apenas remota. Eu mostro que ela existe.
Deus estabeleceu causas segundas no seu governo, por causa de sua grandeza
Depois de termos visto uma das razões pelas quais Deus governa o universo pelas causas segundas, vamos indagar se Santo Tomás de Aquino tem alguma outra razão.
Então, ele dá a seguinte: há outras razões pelas quais Deus estabeleceu esta hierarquia. Notem bem que acabamos de estar na presença de uma noção especial de hierarquia. Não tomo aqui o sentido etimológico da palavra, que é “poder sagrado” – que é propriamente o que quer dizer hierarquia -, mas estou tomando no sentido da gradação perfeita dos seres na ordem de sua natureza e na ordem de seu poder em vista do fim estabelecido por Deus.
A razão dada por Santo Tomás é a seguinte: é inspirada na grandeza de Deus.
Ordenar é conceber a ordem e executá-la
Diz ele que ordenar é pôr ordem. É uma ação que se compõe de partes. Em primeiro lugar, é preciso conceber a ordem e, em segundo lugar, é preciso executá-la.
Por exemplo, se eu recebo vários móveis que são díspares entre si, e eu vou pôr esses móveis em ordem, eu concebo uma certa ordem possível entre esse móveis, e depois executo. Empurro os móveis, e constituo aquela ordem dentro da sala. Portanto, ordenar compõem-se de duas partes: conceber a ordem – o ordenar é propriamente conceber a ordem – e depois executar.
Quanto mais perfeita é a capacidade cognoscitiva, mais é capaz de entrar nos pormenores
Diz ele que, quanto a conceber a ordem, que é uma faculdade cognoscitiva, essa faculdade é tanto mais perfeita quanto mais ela entra nos pormenores. Realmente, o meu conhecimento de uma coisa é tanto mais perfeito quanto mais eu, do geral consigo chegar até o particular. Conhecer coisinhas não é próprio de uma faculdade cognoscitiva perfeita; mas, partindo do geral, chegar a conhecer todas as coisinhas em função desse geral. Isto é ter o conhecimento perfeito.
Eu dou uma imagem com o olho humano: quando é que eu vou dizer que um fulano tem uma vista penetrante? É quando, por exemplo, olhando ele para uma sala é capaz, não só de ver a sala, mas também todos os seus pormenores. Ver é, exatamente, a mais cognoscitiva das faculdades. Quer dizer, perceber os pormenores, mas situados dentro de uma vista geral; é o sumo da cognição.
Diz ele que, por causa disto, na ordem do conceber, é próprio de Deus ver todos os pormenores.
Quanto mais elevada é a capacidade operativa, mais deixa as coisas menores para serem feitas por outros seres
Mas na ordem do agir é o contrário: a virtude operativa grande não é aquela que faz as coisinhas, mas a virtude que faz as grandes coisas. Enquanto na ordem da cognição é bom que Deus veja tudo, para a grandeza de Deus. Na ordem da operação não convém que Ele faça tudo, mas que deixe as coisas menores para os outros fazerem.
Eu diria, por exemplo, um Chefe de Estado deve conhecer todos os pormenores de seu reino? Se ele tiver cabeça para isto, deve. Mas dizer que ele deve fazer tudo, nunca. As coisas grandes sim, mas as pequenas deve deixar correr. Na ordenação do universo, as coisas grandes Deus as faz diretamente. As coisas que podem ser feitas por outros seres, são feitas por esses seres.
É próprio da grandeza de Deus conceber tudo e depois, outras coisas que outros seres podem fazer, manda. Só faz diretamente aquilo que nenhum outro ser pode fazer.
Quanto mais uma causa é poderosa, tanto mais difunde ao longe seus efeitos
Santo Tomás dá um outro argumento. Diz ele que quanto mais uma causa é poderosa, tanto mais ela difunde ao longe seus efeitos. Dá ele o exemplo do fogo: quanto mais o fogo é quente, tanto mais espalha ao longe o calor. Ora, as causas muito poderosas, e que agem ao longe, agem atuando sobre o que está mais próximo, porque o que está mais próximo atua sobre o que está mais remoto. Assim, o fogo põe calor nas camadas de ar mais próximas, para que daí o calor se transmita às mais remotas.
Então, convinha a Deus – causa infinitamente forte – não atingir diretamente os seres, mas criar uns por meio dos quais atingisse outros. Por isto convém a Deus, que é o sumo Rei, ter um grande número de ministros, ou de causas segundas por meio das quais Ele age.
É mais nobre governar através de senhores feudais do que por meio de governadores
O mais bonito, contudo, não é isto, mas o fim, que é propriamente a justificação do feudalismo por oposição ao sistema de governadores.
[De um lado] Napoleão – e também Luiz XIV – com governadores que podem nomear e demitir à vontade.
[De outro] São Luiz [IX, Rei da França], [com] um conjunto de senhores feudais com jurisdição própria, e que dão movimento a seus feudos.
Por que é mais “grand seigneur” um Rei que governa senhores feudais do que um Rei que governa governadores?
A resposta está em Santo Tomás.
A causa é sempre algo de mais nobre do que o efeito. Porque a causa é mais forte do que o efeito, ela o produz. Ora, no universo temos duas espécies de ordens: a ordem das causas e a dos efeitos. A ordem dos efeitos existe quando existe uma só causa que produz todo um conjunto de efeitos, que não são causa um do outro, vários efeitos produzidos simultaneamente por uma mesma causa. Diz ele que isso é muito menos nobre do que uma série de causas que são causas entre si, porque a ordem das causas é mais nobre do que a ordem dos efeitos. Por isto, é mais nobre da parte de Deus ter uma porção de seres livres e inteligentes que se governam, do que Ele propriamente dirigir tudo.
Para mim isto é o ápice desta exposição de Santo Tomás, e por onde o feudalismo triunfa de todas as outras formas.
E eu concluo, já que é dia de Fátima, com esta observação: sempre que o demônio promete alguma coisa, estejam certos de que ele também vai tirar. O que o demônio prometeu a Luiz XIV como prêmio da supressão dos senhores feudais? Ser um grande rei. Ora, precisamente foi o que ele não foi. Não esteve ele à cabeça de uma ordem de causas, mas de uma ordem de efeitos. Luiz XIV foi “pé-rapado” porque atendeu às sugestões do demônio.