A conjuração do demônio visa levar os homens à heresia gnóstica
Em geral, os tratadistas que falam de forças igualitárias, revolucionárias, colocam-se muito devidamente no plano da Providência. E tratam de estudar porque, dentro do plano da Providência, Deus permite esta conspiração, até onde querem chegar. Contudo, eles também tratam de outra questão, mas muito menos profundamente: onde é que o demônio quer chegar quando faz isto?
Porque não devemos perder de vista que, se bem que o governo de todo o universo e de todos os seres seja de Deus, Ele quis que os homens fossem livres, e deu também uma inteligência e uma vontade aos Anjos. E o demônio, apesar de estar precipitado no inferno e condenado às penas eternas, conserva uma inteligência angélica, e é um ser dotado de vontade. Então, é o caso de sabermos, com os dados intelectuais que temos, por que o demônio quer fazer tal conjuração?
Se o demônio é o elemento motor da conjuração revolucionária, é da maior importância sabermos para onde esse motor se dirige
Em primeiro lugar, o que ele vê e, em segundo lugar, o que ele quer, o que o move a fazer toda essa conjuração.
Parece-me que o estudo desta questão é muito importante para nós, porque a priori se poderia afirmar o fato de que, se afinal de contas o demônio é o elemento motor da conjuração, para sabermos onde uma conjuração vai ter, é da maior importância sabermos para onde esse motor se dirige.
Mas isto é sobretudo importante para compreendermos bem que a gnose – entendida a expressão gnose no sentido em que ela deve ser entendida -, a gnose é o polo, por assim dizer, necessário para onde tende e tem que tender a conjuração do demônio. E que ele, por uma decorrência lógica e inelutável das circunstâncias nas quais ele se encontra, de fato, tem que querer que a humanidade seja gnóstica. Não interessa tanto a ele que a humanidade caia numa heresia qualquer, mas que a humanidade caia nesta heresia, a gnóstica.
A “psicologia” do demônio: o eterno derrotado
Naturalmente, para compreendermos bem isto, temos que nos colocar diante de uma preliminar: o demônio é um anjo. Mas um anjo ruim e derrotado, colocado numa situação sumamente contraditória consigo mesmo. Ele é, propriamente, a contradição, o fracasso e a derrota; é o esmagado. Foi precipitado por Deus do alto de seu trono até o fundo do inferno; continuou a existir, mas a sua primeira contradição é esta: ele sabe que Deus é Deus, que é digno de toda homenagem e adoração, mas ele não quer prestar sua homenagem, levado por um amor desregrado de si mesmo. Então, ainda que Deus permitisse a ele de adorá-Lo, ele não quereria adorá-Lo. É verdade que Deus não permite. Ele não quer adorar a Deus. Está no inferno por livre e espontânea vontade, porque não quer aceitar uma realidade que lhe entra pelos poros, antropomorficamente falando.
Ora, um ser assim colocado está como que retorcido, está desviado daquilo que é seu fim reto e verdadeiro, e voltado para uma coisa que ele sabe não ser seu fim. Ele sabe que aquilo não é direito, que ele não merece aquela adoração de si mesmo, mas ele quer aquilo porque quer. Percebe-se, portanto, uma formidável contradição que existe dentro do demônio.
É em função desta situação contraditória que devemos procurar uma explicação para o plano que o anjo tem em relação a todo o movimento conspiratório do universo.
Por que um ser colocado na situação contraditória deseja fazer toda essa heresia e toda essa coisa, e como é que se liga o desejo dele de fazer todo o seu plano em função da profunda contradição em que ele está?
Para compreendermos bem isto, devemos começar lembrando-nos de que o demônio sabe perfeitamente que tudo quanto ele faça, em última análise, redunda na glória de Deus. E que na partida que ele joga contra Deus, ele é o eterno derrotado.
Não seria mais inteligente se o demônio se mantivesse numa perpétua inação?
Ele é incapaz de um pensamento, de uma volição, de uma ação incapaz de um efeito que não redunde, de um modo direto ou indireto, na glória de Deus. Então, é o caso de perguntar se ele se move por ódio a Deus. E [devemos responder que] ele é incapaz de se mover a não ser por ódio.
Mas se ele se move por ódio, seria o caso de perguntar se ele não agiria mais inteligentemente mantendo-se numa perpétua inação, num perpétuo não mover e não fazer as coisas. Essa perpétua imobilidade não seria, por acaso, um meio de diminuir a glória de Deus? Como é que se explica que ele entenda estar trabalhando contra a glória de Deus por meio desse plano conspiratório?
Os “sonhos de olhos abertos”
Para entendermos isto, achei interessante desenvolver uma coisa que tem muita relação com esta competição enquanto ela se realiza no homem, que tem muita relação com todo o plano do demônio, e que é o que chamamos a teoria dos “sonhos”. Não é explicação dos sonhos do homem de olhos fechados, porque isto não vem nenhum pouco em linha de conta.
O que chamamos aqui “sonho” é uma coisa que o é apenas por analogia. É o sonho que o indivíduo tem de olhos abertos. É essa mania que têm as pessoas de sonharem de olhos abertos, conhecendo pessoas que não conhecem, vivendo uma vida que não vivem, de fazer coisas que não fazem, ou de imaginar as pessoas que conhecem como elas não são; de imaginar as situações em que elas se movem como de fato elas não são; e de funcionar num mundo irreal, que não é o delas. Há uma porção de situações que podem determinar isto.
Por exemplo, o sujeito reconhece que é pobre, ou que é burro, ou que é sem graça. Ou então acha o contrário: que é um gênio, que é engraçadíssimo, interessantíssimo, mas vive no meio de pocas, de tolos que não dão a ele o devido valor. Então, temos aí uma espécie de “gênio ignorado” que vive no meio dos nabos e das cebolas, e que sonha com um mundo onde o compreendessem, vive com a cabeça no mundo da lua. Então, a alma irmã em todas as suas gamas; vem o amigo perfeito, até a esposa perfeita etc.
– “Se meus círculos sociais fossem de outro jeito! E, sobretudo, se encontrasse uma moça que me entendesse, que se integrasse inteiramente comigo etc.”
Ou, se o indivíduo tem mania por dinheiro, vai se imaginar numa Bolsa dando tacadas, ganhando milhões, rodeado de homens admiradíssimos. Um super gênio!
Se não é isto, ele é grande orador. Então, plateias e galerias aplaudem!
Ou então é finíssimo, elegantíssimo, nobilíssimo. Ele dá um olhar, e todas as multidões caem aos seus pés.
Há todas as espécies de manias. Há misérias dessas em todas as gamas.
E acontece que o sujeito começa a sonhar, a sonhar uma vida que não é a vida real.
O sonho é uma fantasia para escapar de uma desventura grave e durável
Esses sonhos do que decorrem em geral? Esses sonhos decorrem, em geral, de uma desventura que tem que ser grave e durável. As desventuras que não são graves não produzem sonhos. O indivíduo, em geral, quando sonha, é devido a uma desventura grave, ainda que seja uma desventura irreal. E é preciso que seja uma desventura durável. Porque quando ele percebe e que vai passar logo, ele não faz sonho daquilo. Ele pensa na realidade. Mas quando ele está entalado numa situação ruim e que ele vê que vai durar, então, para muitos sujeitos, a saída é sonhar.
Poderíamos imaginar um homem assim colocado na linha dos sonhos, mas que dá vazão a estes sonhos por uma série de meios diferentes. Por exemplo: podemos imaginar um que comece a sonhar com coisas bem articuladas. Mas podemos imaginar um outro que sonha, por exemplo, uma música. Não há nada de articulado. Mas ele vai e compõe uma coisa que é o sonho dele. É o jeito que ele tem de escapar a uma determinada situação que ele não quer aceitar. É uma situação dada, que foi posta para ele e que ele não quer aceitar, mas quer recusar. Então, ele cria uma fantasia dentro da qual ele vive.
Exemplo de quem, por não desvendar o sigilo de confissão, é sentenciado à cadeia
Podemos imaginar um caso mais ou menos assim. Um leigo que passe perto de um confessionário e, involuntariamente, ouça um trecho da confissão de alguém. Resultado: ele fica preso pelo segredo sacramental. Por uma circunstância qualquer – por causa desse sigilo – ele fica na impossibilidade de desvendar um crime, do qual ele vai ser acusado. O resultado é que ele vai para a cadeia.
Estamos aqui diante de um homem colocado ante um mal muito grave: ele é sentenciado, perdeu sua liberdade individual, foi sujeito ao regime de penitenciária, perdeu sua honra aos olhos de todos. Por fim, ele está sujeito ao travesseiro, ao colchão e à comida da penitenciária. Tudo lhe é inconveniente na situação em que se encontra.
Qual é a reação sadia e quais são as reações mórbidas que um homem pode ter neste caso?
A verdadeira atitude face ao infortúnio
A reação sadia é a seguinte: em primeiro lugar, este homem só poderá ter esperança de sair na medida em que as circunstâncias concretas autorizem esta esperança. Se houver, nas circunstâncias, alguma razão para esperar, ele esperará. Se não houver, ele não vai manter uma esperança maior do que aquela que sua situação permita. Por causa disto, ele tem uma capacidade de adaptação à nova situação em que se encontra:
– “Caiu-me isto sobre a cabeça. Sendo inocente, vou viver como sentenciado. Uma vez que é improbabilíssimo que eu vá sair daqui, devo me conformar com esta situação, e me conformar varonilmente. Caio na cadeia, levo algum tempo pensando o que devo fazer para sair. Se houver alguma coisa para fazer na ordem do razoável, eu faço. Se não, eu compreendo que minha situação não tem remédio, e eu tiro proveito de minha situação. Sou um sentenciado injustamente. Então, aceito esta realidade, me conformo com ela, assumo este papel, e não vou estar deitado no meu catre, imaginando….
O “sonho de olhos abertos” é fruto de uma inconformidade com a realidade
Imagine que bonito eu ver agora funcionar as alavancas e é o diretor da penitenciária: “Ah, mil perdões! Aqui estou em nome da justiça do Estado para lhe conferir a medalha de grande benemerência e de não sei o que. Aqui está sua família. Sua honorabilidade foi reconhecida e o senhor vai sair”. Vou para casa, mesa com doces, amigos, retratos nos jornais…
Compreendem qual é a miséria de um sonho desses. Eu sonho tudo isto, depois toca o sinal e é hora de eu ir lavar o chão. Ninguém entrou, ninguém me fez justiça…
Os anos passam, meu sonho vai crescendo, vai se enriquecendo de pormenores cada vez mais rocambolescos e, no fundo, eu não aceito a vida de cadeia e passo fantasiando uma doidice, profundamente infeliz de ser sentenciado. É minha revolta e minha inconformidade com meu próprio estado…
A reação de quem não sente a desgraça por que passou
Bom, aqui qualifiquei as duas atitudes: um realismo sadio e o sonho. Entre essas duas atitudes localiza-se a da pessoa que tem uma espécie de realismo míope e imediatista.
– O realismo sadio e de altas vistas é o que pintei no começo: “Vou dar um alto sentido à minha vida. Vou sofrer como inocente, mas isto vai ser uma grande vida”.
– A outra é um imediatismo de desesperado.
– No meio termo, o sujeito que não faz nem uma coisa nem outra. Ele entra como um bicho na prisão e não raciocina no que está acontecendo para ele. Ele não sente muito a desgraça por que passou.
Na mentalidade do homem moderno convivem essas três atitudes
Essas três atitudes, em geral, são as atitudes que o homem toma perante a vida.
A maior parte dos homens, a meu ver, não toma inteiramente nenhuma dessas atitudes. Os desequilibrados tomam a atitude do irrealismo e vão longe. São muito raros os que tomam uma atitude de aceitação sadia.
A maior parte das pessoas têm uma aceitação sadia numa [certa parte da alma]. Depois, um bom trecho onde aceita sua situação sem raciocinar muito, e depois um bom pedaço de sonhos e de coisas irreais. E eu vou dizer logo que muito do desequilíbrio moderno, muito da doidice moderna vem exatamente do fato de haver uma espécie de zona de sonho dentro de inúmeras cabeças.
O verdadeiro contra-revolucionário deve despovoar sua cabeça de sonhos deste gênero
Eu creio que não há coisa mais importante para a vida espiritual do que despovoar a cabeça de qualquer espécie de sonhos. Enquanto o sujeito tem sonhos dentro da cabeça, não tenha a ilusão de ter vida espiritual séria, porque não tem. Os sonhos precisam ser todos eliminados como quem elimina o próprio demônio. Temos que nos colocar dentro de uma visão ao mesmo tempo realista, mas de altas vistas das circunstâncias concretas em que nos achamos.
Digamos, por exemplo, o “ultramontano” [o contra-revolucionário, n.d.c.], de certo modo, é um [discriminado] na vida de hoje. […] [Mas] ele encontra o sentido profundo disto, aceita isto de frente, sem imaginar, sem sonhar.
As três fases do sonho
Em todo caso, podemos dizer que na história de um sonho há uma primeira fase que é a desventura. Segunda fase é o sonho que se forma como remédio para essa desventura. E a terceira fase que é a mais dura, é quando o sonho se põe em [marcha]. Então, saem as besteiras.
Sonha, por exemplo, com negócios. Imagina que é presidente de uma sociedade anônima. Então, quando vai fazer a sociedade anônima dele, a primeira coisa em que pensa não é fazer a sociedade, mas fazer palco de quem é presidente da sociedade. Então, compra móveis e roupas, toma todos os ares de presidente de sociedade anônima, e monta o palco. Na segunda parte ele vai fazer a sociedade. Então ele toma o negócio que dá mais dinheiro, que fica melhor para uma sociedade anônima, mais os companheiros com quem fica melhor brincar de sociedade anônima. E depois o lucro vem em último lugar.
Resultado: como é só ele que brinca e os outros lá estão para depenar o besta [cretino, idiota, n.d.c.], acontece depenações monstruosas e depois o fracasso…
O sonho de ser engraçado
Por exemplo, uma outra ordem de sonhos. O sujeito conheceu alguém que é muito engraçado, achou bonito e resolveu também ser engraçado. Vai ser engraçado porque percebe que há vantagem em ser engraçado.
No primeiro momento ele admira, no segundo ele inveja, no terceiro ele sonha, e no quarto ele põe em marcha. Resultado: o vácuo em torno dele; ele que vai atrás dos outros. Isto porque é um sonho que se pôs em marcha.
Todo sonho parte de uma não aceitação da própria situação
Para que o sonho do homem tenha uma certa vitalidade é preciso que ele tenha uma pequena possibilidade de realizar. Ele nunca sonha as coisas completamente irrealizáveis. É preciso ao menos ser [metafisicamente] possível.
Por que razão o homem sonha?
Quando ele não quer aceitar a situação em que está, por uma espécie de movimento que vem do fundo dele para realizar aquela felicidade para a qual ele tende de todas as maneiras, ele prepara uma espécie de sonho, de castelo, de ilusão dentro da qual ele se sente em segurança.
O sonho do demônio não tem nenhuma possibilidade de se realizar
A desgraça do demônio é tão profunda que nem isto propriamente ele pode ter.
O demônio é um espírito angélico lucidíssimo, e ele sabe perfeitamente que não consegue iludir-se a respeito de suas próprias condições. Não consegue iludir-se a respeito da situação que foi criada por ele. Mas, de algum modo ele pode – também ele – ter o seu sonho. E esse sonho consiste no seguinte: quando ele percebe que conseguirá, por meio de suas astúcias e fraudes, fazer com que muitas pessoas acreditem naquilo que ele gostaria que fosse o universo, e ver muitas pessoas viverem para ele em função de toda essa idéia que criou.
De algum modo, aquilo a que ele tenderia se realiza por esta forma.
(Dr. Paulo Brito: De fato, eles tendem à revolução total, enquanto intenção, em função daquele sonho do demônio. Mas, enquanto ação, eles percebem que nunca conseguirão.)
Sim, mas se eles puderem fazer com que todos os homens de um país usem roupas da mesma forma, embora a diferença de forma não estabeleça hierarquia, eles preferem. Porque se trata exatamente do ideal de, o quanto possível, chegar a uma uniformização. E a gnose é um processo pelo qual na outra vida isto acaba sendo conseguido. Tudo acaba reduzido ao uno primitivo, que é o abismo etc.
(Aparte: O sujeito da revolução igualitária tem que ser sempre o demônio, nesse sentido…)
Não só o demônio, mas também seus asseclas.
(Aparte: Sim, mas principalmente o demônio. Nesse sentido se pode dizer que ele quer a revolução horizontal, se bem que os asseclas nem sempre queiram inteiramente essa revolução. Mas o sujeito principal, que é o demônio, sempre quer.)
Sim, se bem que se deva admitir que os graus altos das [forças igualitárias, revolucionárias] querem os homens inteiramente iguais, na medida do possível.