Conversa durante almoço no Êremo do Amparo de Nossa Senhora, 18 de dezembro de 1987
A D V E R T Ê N C I A
O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
[…] Vamos tocar a coisa da seguinte maneira: o senhor imagine que se faça uma exposição doutrinária para o Grupo – ou doutrinária de pura doutrina, ou uma exposição teórico-prática em que é exposta a doutrina e ao mesmo tempo exposta em função de uma certa situação concreta que a gente analisa e julga em função dessa doutrina.
As atitudes de alma podem ser duas: uma é: “a matéria interessante e eu tenho uma natural curiosidade em conhecê-la, então eu vou prestar atenção, e vou procurar compreender porque eu percebo que se eu não procurar entender eu não vou fruir aquilo que o conhecimento da matéria pode me dar”.
Outra é: “a matéria é interessante, ela é muito boa, verum, bonum e pulchrum, muito bonita, etc., etc., e ela me dá uma visão das coisas que me faz amar ou odiar as coisas. Bem, e por causa disso eu quero me aprofundar lá, porque quero servir uma posição e quero combater uma outra posição”.
Então há duas maneiras de uma pessoa se aprofundar numa reunião: ou é porque ela quer saciar, quer satisfazer uma curiosidade legítima, mas pura curiosidade, então é amor de si que ela está tendendo – ou é por um amor desinteressado de alguma coisa que em si é boa, em si é verdadeira, em si é bela, e que por causa disso a gente deve amar em si.
Há uma terceira posição: a pessoa não ama, nem se interessa e nem quer saber. Há muita gente que se ouvisse as nossas exposições, diria “eu não me interesso por esta matéria”.
– O que é que você quer saber?
– Eu quero saber, soube que em tal jornal publicou uma reportagem muito engraçada e eu quero ler essa reportagem porque me diverte, não tem outra coisa, e portanto é isso que me interessa”. É uma terceira posição.
Nessa terceira posição mais caracteristicamente não existe amor nenhum. Na segunda posição, da curiosidade, existe uma espécie de raiz de amor – nem é uma raiz, existe uma certa participação do amor, porque quando a gente tem a curiosidade de conhecer algo tem em via de regra, habitualmente tem uma certa atração por algo que se quer conhecer; ou se se quer conhecer para combater, tem-se uma certa repulsa inicial que leva a querer conhecer.
O mais alto grau de conhecimento é quando a pessoa conhece e admira. E admirando, quer servir. Isso é o amor. A disposição de espírito pela qual a gente conhecendo, admira – o que merece ser admirado, é claro – e admirando quer servir, essa se chama amor e essa é a melhor e mais alta disposição de espírito que a gente pode ter.
Por que? Porque vista a coisa nós compreendemos que só convém, eu quero viver, só me interessa a vida caso eu veja essa causa triunfante; logo, eu amei mais a causa do que a mim mesmo e aí foi o amor. Está claro isso?
Cada um de nós pode fazer um exame em que pé está em função desse assunto. Quer dizer, quais são as coisas que nós temos mais palpitação para conhecer: a opinião de um indivíduo a respeito da Igreja Católica ou mesmo a opinião de um indivíduo a meu respeito? No que eu palpito mais, eu fico mais na torcida para conhecer?
O que mais me atrai? É eu me vingar de um indivíduo que me disse um desaforo, ou que falou de mim pelas costas? Ou punir um tipo que falou mal da Igreja Católica? É evidente que num caso o que entra é o mero amor de si próprio, e no outro caso entra o amor de Deus, de uma verdade objetiva, sobrenatural, perfeita, etc., etc., que a minha inteligência iluminada pela virtude da fé alcançou, etc., etc., etc.
Eu acho que na maior parte das pessoas do Grupo deveria haver uma apetência enorme de ouvir as doutrinas. Mas de tal maneira que ainda que elas fossem expostas de um modo monótono houvesse vontade de conhecê-las. E um desejo enorme de servi-las, logo depois. De maneira que uma pessoa que tivesse bem na linha do Grupo, essa pessoa sairia de cada reunião mais apostólica do que era antes.
E começaria por fazer o apostolado dentro do Grupo. Porque o bem que a gente faz deve começar em casa e deve começar pelos que nos são mais próximos. E sendo o Grupo uma entidade do gênero que é, o bem deve começar dentro de casa. A nossa casa é a sede, aí nós moramos, aí nós comemos, mas sobretudo aí se forma a nossa alma. Então nós deveríamos ter um empenho de alma muito grande em fazer apostolado interno. A expressão do nosso amor, se é verdadeiro ou não, consiste nesse apostolado interno.
E diga-se entre parêntesis, entre nós o apostolado não consiste tanto em corrigir o outro, consiste em ter paciência com o outro.
Se nós tivermos uma paciência sem fim com os outros, a paciência tem sempre uma doçura que atrai enormemente. A alma paciente atrai; a alma impaciente repele, afasta. Ainda que seja uma pessoa muito bem educada, que nunca tenha uma grosseira, a gente sente aquele egoísmo, aquela preocupação consigo e aquela amargura quando alguma coisa não corre de acordo com as intenções da pessoa.
Pelo contrário, uma alma paciente que a gente vê que saca sobre si e dá de si sem se preocupar: tire o que quiser, abuse de mim como entender, eu estou aqui para isso, quero-o apesar disso, quero-o até por causa disso, quero-o até na medida em que você tenha abusado de mim. Veja que eu tenho paciência.
Para dizer tudo numa palavra só: Nosso Senhor que tinha todas as atrações possíveis e imagináveis, entretanto a paciência constitui um elemento fundamental da atração que Ele exerce sobre os homens.
Aquelas palavras dEle famosas: “vinde a mim vós todos que estais acabrunhados e fatigados, e Eu vos aliviarei e consolarei”. Depois, “aprendi de Mim que sou manso e humilde de coração e vós encontrareis paz para as vossas almas”.
Se nós fôssemos internamente no Grupo, uns com os outros, muito pacientes, o Grupo seria uma outríssima coisa. Os senhores querem gerar ardor nos outros? Sejam pacientes; querem ter uma TFP de primeira? Sejam pacientes; querem ter gente corajosa no Grupo? Sejam pacientes.
Aquele que é corajoso fora, dentro é paciente; aquele que é poltrão fora dentro é arrogante, é intransigente. Assim são as pessoas. Então, se as pessoas tomarem bem exatamente essa posição, pedir a Nossa Senhora a graça de serem assim dentro do Grupo, as almas todas entrarão numa ebulição nova, e o Grupo se atirará rumo ao seu ideal com outra força que não tem atualmente.
O que é que nos falta a nós nessa direção? É que nós temos uns lados de paciência, temos uns lados de bondade, mas temos cada lado noutra direção, cada impaciência, cada egoísmo, cada falta de bondade que é de espantar!… E por causa disso a gente nota que o Grupo muito freqüentemente não emite de si aquela luz maravilhosa que ele estaria em condições de emitir. É fora de dúvida.
Essa paciência, o que ela é? Em última análise eu provo o meu amor a alguém, o meu afeto a alguém, na medida em que eu sou capaz de um sacrifício por ele. E eu provo o meu afeto a Deus Nosso Senhor, a minha adoração – que é a palavra adequada – a Deus Nosso Senhor, na medida em que eu seja capaz de sacrifício por Ele. Por Nossa Senhora, eu amo a Ela na medida em que eu sou capaz de me sacrificar por Ela.
Qual é um dos melhores meios de provar isso? É a obediência. E é outra coisa que dá à alma uma capacidade de atração extraordinária, faz com que a alma brilhe. Quem é obediente na hora, recebe uma ordem e executa imediatamente, e ama o superior, com paciência, de maneira que o superior lhe dê uma ordem que não tem cabimento, meio errada, ele obedece imediatamente, ainda agradece e ainda faz uma gentileza para o superior, ele de fato fez isso por Nosso Senhor Jesus Cristo.
Por quê? Porque o superior representa Nosso Senhor Jesus Cristo junto aos súditos. E nessa representação, se o súdito for bom para o superior, inclusive quando o superior não é bom, e tiver pena dele, é mais ou menos como se ele encontrasse Nosso Senhor numa estrada, ferido, acidentado, sofrendo, e ele fosse bom para com Nosso Senhor…
A gente dirá: “bom, mas então é uma vida de sacrifício?” Meu filho… isso me faz o efeito de um soldado – não sei quem hoje me contou a história de um soldado que subiu uma montanha durante a guerra, se eu não me engano no Vietnã, e carregavam cada um 60 quilos de bagagem nas costas que eles tinham que transportar. Quando galgaram uma posição e pensaram que já tinham chegado, podiam armar as tendas e dormir, encontraram o inimigo instalado ali, e foi preciso começar uma batalha ali.
Esses soldados foram muito corajosos. Na medida em que eles foram corajosos, eles por assim dizer, tiveram pena de Nosso Senhor. Porque Nosso Senhor os recebeu naquela situação. Diz: “Meus filhos, Eu estou precisando desse sacrifício vosso, Eu preciso que vós sofrais isso para salvar outras almas a quem Eu quero resgatar; Eu vos peço, peço como um mendigo pede uma esmola, vós tendes coragem de combater por mim?”
Se nós formos generosos mesmo, “mas meu Senhor, nem precisava dizer, já estou saltando na trincheira do adversário”. Se nós não tivermos generosidade, no que é que dá? Não dá em absolutamente nada.
Entoa, se nós tivermos paciência, nós teremos castidade, e eu nem preciso falar, a paciência participa da humildade. Só são castos os humildes. Quem é arrogante não é casto. Eu não acredito na castidade de uma pessoa arrogante.
Se nós formos humildes, nós atrairemos as almas, nós seremos apostólicos, a TFP será a TFP.
Umas cerimônias mais bonitas que havia antes da Revolução Francesa, e um pouco depois da Revolução Francesa também, na Europa, era a coroação de um rei de França.
Os historiadores contam pormenorizadamente como se dava a coroação de um rei. Quer dizer, ele chegava de véspera à cidade de Reims, com a famosíssima catedral que é uma obra prima – alguns julgam que é mais bonita do que Notre-Dame, e eu confesso que uma vez ou outra eu tenho ficado na dúvida a respeito disso. É uma deliciosa dúvida…
O rei chegava de véspera e dormia numa casa, num palácio que adaptavam para ele, e logo no dia seguinte de manhã era a coroação. E a cidade toda começava a movimentar-se para efeito da coroação. Mas não era só a cidade, mas era a França inteira que mandava seus representantes para lá. E não era só a França, mas gente da Europa inteira que ia ver a coroação do rei de França, como hoje quer ver a coroação de um rei da Inglaterra que é filmada para o mundo inteiro.
Bem, e havia cerimônias realmente curiosas, como por exemplo – são coisas da Idade Média que a gente não sabe bem, nem que explicação tinham. O rei era acordado… de manhã ia uma comissão composta por um arcebispo, dois ou três bispos e uns tantos nobres, mas tudo marcados pelo cerimonial. O arcebispo de tal diocese, é um privilégio de tal outro bispo de tal outra diocese, etc., etc.
Então, iam acordar o rei, batiam na porta, e um dignatário de dentro perguntava “o que é?” Eles diziam: “nós viemos acordar o rei”. O dignatário respondia: “o rei está dormindo”. Se está dormindo, então é natural que acorde, não é? Eles entendiam que era para voltar mais tarde. Daí a uma meia hora mais ou menos, um tempo assim, voltavam, batiam de novo e diziam: “o rei ainda está dormindo?”.
“Está dormindo”. Então, voltavam mais tarde.
Na terceira vez, eles batiam e diziam: “O rei ainda está dormindo?”. “Não, o rei acordou, pode entrar”.
Então os lacaios abriam as portas dos dois batentes e encontravam o rei já trajado em traje de grande cerimônia, e deitado na cama. Mas com a coberta de tal maneira posta que uma das pernas ficava de fora e pela perna se via que o rei estava todo trajado, já estava de sapato, já estava de tudo.
Então, o arcebispo explicava que era a hora, ia ser coroado o rei da França, etc. Então está bom, eu vou… Mas ele já estava todo trajado para a coroação e saía o cortejo.
O traje dele era um traje esplêndido, os senhores viram gravuras a respeito desse traje na sala dos Alardos da Sede do Reino de Maria. Ele ia assim acompanhado até a catedral. Na catedral começava a cerimônia. A catedral estava toda ela, faziam uma arquibancada de madeira, estava toda coberta de tapeçaria e estava toda ela de alto a baixo, com arquibancadas, com pessoas do clero, da nobreza, a família real, a rainha – porque a rainha não era coroada, uma ou outra foi, mas habitualmente não era – a rainha, etc., etc., e a catedral representando, portanto, um aspecto imponentíssimo. Começava a missa, que era naturalmente uma grande missa cantada.
Bem, a missa ia se desenrolando, coisa e tal, até chegar o momento da coroação, o rei se adiantava rumo ao altar e se deitava de bruços no chão, sobre umas almofadas lilases. E aí vinha o arcebispo, cercado de todo o clero, abençoava: o eleito de Deus para governar o povo da Gália, que isso, que aquilo, ta-ra-ta-tá, e os sinos tocando, blam, blam, blam…
Do lado de fora o povo aclamando, porque o povo era informado da cerimônia e na medida em que as coisas iam acontecendo, ia aclamando, etc., e tal.
Bem, afinal, chegava o momento em que ele era posto de joelhos, e o rei – de joelhos… ou estava no trono não me lembro bem – o arcebispo vinha, ungia ele antes com o óleo sagrado, o famoso óleo trazido por uma pomba durante o batismo de Clóvis na catedralzinha de Reims antiga – ungia ele e depois então era coroado. E quando era coroado, levavam-no para uma espécie de arquibancada construída no meio da igreja, dividindo a igreja em duas partes.
E ali havia um trono e ele ficava sentado nesse trono. Depois dignatários civis e eclesiásticos ocupavam os vários degraus etc., etc. E aí então, com os sinos tocando mais do que nunca, abriam as portas da catedral e soltavam pombos. E os pombos começavam a voar de todos os lados, era a alegria geral, o reino todo estava em festa, a França tinha novo rei.
Essa cerimônia tinha muito de majestoso, de grandioso. O rei depois que saía, ia para a praça pública onde tinha doentes que sofriam de escrofulose. E ele tocava cada doente, vinha um padre perto dele e dizia: “Le roi te touche, Dieu te guérisse”, “o rei te toca e Deus te cura”, e havia muitas curas, muitos curavam.
Depois ia ao arcebispado, se não me engano, onde havia todo uma cerimônia, um banquete com o rei com a coroa, almoçava de coroa, etc., todos os nobres, várias mesas com bispos, com nobres, embaixadores., etc., um grande banquete no qual Luís XVI tomava uma parte feroz, ele tinha um apetite incomparável. E por fim, estava terminada a festa da coroação.
Bem, esse cerimonial era realizado antes da Revolução Francesa, mas depois da Revolução Francesa os Bourbons voltaram, e subiu ao trono Luís XVIII que era um ímpio e não se fez coroar. Mas depois de Luís XVIII que governou uns dez anos mais ou menos, ele não tinha filhos, subiu ao trono um irmão dele, Carlos X [1757-1836], que era católico praticante que quis fazer-se coroar.
Os conselheiros de Carlos X, de todos os modos o quiseram desaconselhar: “será uma loucura isso aí, o povo odeia essas coisas, foi uma das causas da Revolução Francesa, e agora vai haver eleições, daí a pouco, mais ou menos dentro de um mês – era marcado pela Constituição o período das eleições – vai haver eleições e vossa majestade verá que o partido realista vai ter um recuo muito grande por causa dessa coisa, pode até cair o trono”.
O rei disse: “de qualquer maneira eu quero”. Ele foi e se fez sagrar, voltou para Paris e começou a vida comum até o dia da coroação. Na coroação repetiu-se aquele cerimonial todo. Vem as eleições e [se dá] vitória brilhante dos monarquistas!
Comentário dos republicanos mais ou menos velados que haviam aconselhado o rei a não se fazer coroar: “É natural que havia de ganhar! Ele faz uma coisa desta, com esta festa, etc., etc., ganhou votos do povo que é ignorante e que não compreende que essas coisas não têm maior significação”…
Na realidade a coisa era outra: aquela cerimônia tocou aquelas almas; eles viram, entenderam, amaram e quiseram servir.
Com todas as coisas contra-revolucionárias dá-se assim. A gente não deve preocupar-se em ser popular ou impopular. A gente deve ser um contra-revolucionário inteiramente autêntico, que é contra-revolucionário porque ele está convicto, ele viu, entendeu, amou e foi. Quer dizer, ele realizou em si mesmo o ideal ao qual ele deu a sua vida.
Quando acontece isso é dificilíssimo a Contra-Revolução ser derrotada. Nós encontraremos uma série de chantagistas que nos dirão: “nunca, não pense nisso, isso é loucura, é uma imprudência”. Não se incomode e metam o pé, porque apresentada a Contra-Revolução na sua autenticidade, ela ganha a partida.
Quer dizer, portanto, a luta nossa com os nossos adversários é muito mais uma luta entre nós. Se os senhores quiserem a coisa inteira, é uma luta sobre nós. Cada um tem que vencer-se a si próprio; vencendo-se a si próprio, vence os outros. Não tem conversa. E a primeira batalha, portanto, da Contra-Revolução é termos a fisionomia inteira da Contra-Revolução. Se nós temos a fisionomia íntegra da Contra-Revolução, nesse caso, indiscutivelmente nós ganhamos a batalha.
No tempo em que governava a França um charlatão, Napoleão III [1808-1873], sobrinho do primeiro, os franceses o chamavam “Napoleon le petit”. Porque em comparação com o satanismo do tio, ele era pequeno.
A imperatriz era uma espanhola, Eugênia de Montijo, de uma nobreza…, era nobre, mas de uma pequena nobreza, sobretudo com mésaliances e porcarias desse gênero. E, entretanto, uma senhora muito bonita, ela se dava por muito católica.
Napoleão III, um aventureiro de aventuras impuras, qualquer número, já muito antes de ele ser aclamado imperador dos franceses ele levava uma vida totalmente devassa, totalmente impura.
Além do mais, uma figura com lados ridículos, incríveis. Já uma vez ele tinha tentado uma restauração monárquica na França, tentou invadir a França a partir de uma guarnição de fronteira que se levantou do lado dele. E ele achou que ficava bonito, como o símbolo de Napoleão I era a águia, ele se apresentar ao povo francês levando consigo uma águia.
Uma águia é uma ave possante, e para levar uma águia pelos pés, ela se debate, ou dá um sedativo para a águia, mas ela aí entra como uma águia cansada e bêbada, não serve aos fins dele, ou então ele tinha que agarrar aquela águia com força. E ficava ridículo um homem entrar com uma águia e segurando a águia. Então ele arranjou um expediente: disseram a ele que o modo de prender a águia era de pôr a águia perto de algo que estivesse cheiro de queijo, as águias eram loucas por queijo. E ele entrou com um bicórneo como de Napoleão e pôs um pedaço grande de queijo na cabeça. Aquela cabeça cheirando a queijo é o que pode haver de mais “deplaisant”, de mais “despiaccevole”, de desagradável numa palavra. É isso.
Bem, ele e a águia dele não conseguiram nada, ele nem comeu o queijo, porque ele foi para uma guarnição, foi se apresentar para os soldados se rebelarem, fez um discurso com a águia dele, com o queijo na cabeça, etc., e a guarnição se levantou e o prendeu. Aí ele foi preso, foi julgado, e foi mandado prisioneiro para um forte de Han onde ele esteve uns anos, parece que depois foi transferido para Vincennes. Bem, ele esteve lá preso um certo número de anos e depois relaxaram a prisão dele.
Mas, isso é para verem como era o homem. E ele viu aparecer na corte dele essa nobre espanhola, muito bonita, ela era de uma beleza rara, apaixonou-se por ela. E ela foi convidada para passar uns dias com a corte no castelo de Fontainebleau, ou no de Compiègne, não me lembro.
E ele, “fassur”, conversando com ela, sem pensar em se casar, fez uma proposta indecente. Ele não fez a proposta, mas deu o primeiro passo, ele disse para ela: -“Mademoisele, como é que se faz para ir a seu quarto? Passa-se por ali ou por lá?”
Diz ela: – Sir, para se ir a meu quarto é preciso passar pela capela”… O que era verdade, porque o caminho para ir ao quarto dela passava pela capela. Mas os senhores estão vendo o que quer dizer: ou casa comigo ou nada, ou eu fico imperatriz ou você não tem nada. Ele daí a pouco pediu ela em casamento, casaram-se, e como ela era uma pessoa muito bonita e bem inteligente, ela fez muito, brilhou muito e marcou o tempo dela enormemente, teve muita popularidade etc., etc.
O marido foi derrotado numa guerra com os prussianos, foi preso pelos prussianos na fronteira e proclamado deposto, e ela teve que fugir. Fugiu do modo o mais escondido que pode haver. Era um dia de relativa tranqüilidade, o comércio não estava funcionando porque havia perigo de revolução, etc., a cidade meio vazia, e ela se perguntou: fugir para onde? E mandou um cocheiro dela tocar para o consultório do dentista norte-americano dela, um tal de Dr. Evans.
Ela bateu na porta, apareceu o Evans, disse:
– Mas, majestade o que é isso?
– Eu vim pôr à prova sua amizade, eu queria ficar no seu consultório até fazer noite para depois eu poder fugir.
Ele foi muito correto e atendeu em tudo etc., e realmente chegando a hora ela fugiu e conseguiu alcançar o litoral norte da França de onde ela embarcou para a Inglaterra.
Há um palácio, não longe do palácio do Napoleão o pequeno, um palácio chamado Palais Royal, morava uma outra princesa, inteiramente diferente desta. Feia não era, mas era de um aspecto decente, comum.
Essa sim, de casa real autêntica, vítima da política, para atender as vantagens da Itália onde o pai dela era rei, ela teve que aceitar de casar com um primo de Napoleão, um homem de orgias e de indecências, que chamava também Napoleão. Napoleão Jerônimo chamava-se, mas que o povo apelidou de plom-plom, Napoleão plom-plom.
Essa princesa tinha qualidades tão super eminentes que o processo de canonização dela já está engajado, e se não me engano ela já é bem-aventurada, chama-se Clotilde, a bem-aventurada [Maria] Clotilde de Sabóia [1843-1911].
Quando a Revolução começou a ferver, pôs fora Napoleão, começou a perseguir os príncipes… príncipes…, os pseudo-príncipes da família pseudo-imperial, começou a persegui-los.
Então entraram no palácio dessa princesa, uma beleza de palácio chamado Palais Royal, entraram e disseram a ela: – “Madame, é preciso sair depressa, etc., etc., porque vão agredi-la”.
Ela teve essa resposta: – “Eu, fugir?! Fiquem sabendo que eu sou filha de rei e entrei nessa cidade como filha de rei, em carro de gala, aclamada pelo povo. E não vou sair escondida; o povo pode fazer de mim o que quiser. Mande vir uma bonita carruagem, eu vou me vestir com traje de gala e vou acompanhada de toda escolta de uma princesa de casa real. E vou atravessar esse povo revolucionário de qualquer jeito, se quiserem me matar me matem, mas eu duvido, porque eu sei quem sou e sei o respeito que imponho”.
Ela saiu no meio do povo com o carro de gala, com o esquadrão – mas é um esquadrão só de aparato, dois homens na frente e dois atrás, um destacamento acompanhado – via-se de longe que era uma princesa que vinha. O povo todo proclamando “viva a República”, ela chegou perto do povo e deu ordem para os cavalos atravessarem. Todos os homens tiraram o chapéu. Era uma época em que os homens todos na rua estavam sempre de chapéu. Havia uma coisa chamada civilização. Os senhores querendo, um dia eu explico o que é…
Ela atravessou e chegou até as muralhas de Paris, lá ela foi percorrendo o território da França até chegar à Itália, aclamada e respeitada por todo o mundo. Por que? Porque era autêntica, ela representava em algum sentido a Contra-Revolução, mas representava até o fim. A imperatriz Eugênia… o resultado, ela sentiu que tinha que fugir; a outra não era bonita, era comum, tinha o aspeto normal, não era imperatriz, era uma simples princesa etc., etc., atravessou o povo enfrentando, e varou.
Isso é por que? É para os senhores verem a força que tem a Contra-Revolução quando é autêntica. Mas para isso é preciso ter amado muito.
Os senhores me dirão: amado muito ou é preciso ter compreendido muito? A gente pode amar algo que não entende?
A minha resposta é simples: a gente pode entender algo que não ama?…
Quer dizer, o amor dá à inteligência umas percepções, dá à inteligência uma luz que a falta de amor não dá. E quem ama, [entende]; quem entende sem amar acaba não entendendo.
Então meu caro Péricles, mais ou menos toda essa exposição se prende às suas perguntas, mais ou menos, não muito literalmente, mas é que eu achei mais útil de expor a propósito das suas perguntas. Se ficou alguma coisa não exposta sobre a qual haja alguma coisa a acrescentar, eu tenho ainda um bocado.
Meu Rodrigo!
(Pergunta: O senhor poderia fazer uma ligação entre isso que o senhor acabou de expor e a questão da torcida?)
O torcedor não ama, porque ele se ama a si próprio. O homem precisa ter muito, muito domínio sobre si para, estando em jogo, não vibrar desordenadamente. Porque é toda a personalidade humana que entra em jogo.
O senhor imagine, por exemplo, que vem alguém dar uma notícia, dizer o que os jornais do dia publicaram, por exemplo, meu Pilares me lê todo o dia o que os jornais do dia publicaram de mais interessante e que ele tenha tido tempo de ler. E assim eu aproveito o meu tempo de manhã cedo, do lanche, para tomar logo informação das principais notícias.
Agora, imaginem que venham algumas notícias internacionais muito importantes, mas uma notícia a meu respeito também. Não é uma notícia que eu tenha que fixar a atenção, porque é questão polêmica, que eu vou ter que fazer uma polêmica, uma discussão, defender-me; mas é uma notícia elogiosa. Está para nascer o jornal que publique uma notícia elogiosa a meu respeito, está para ser fundado… Mas enfim admitamos que isso suceda.
O homem lê uma notícia: arrebentou a terceira guerra mundial, o Pilares, e lê também a notícia a meu respeito. Se eu não tiver bastante domínio de mim mesmo, eu vou sair pensando mais na notícia que saiu a meu respeito do que a que saiu…
Os senhores imaginem que saísse, por absurdo…
Mas, por que isso? Por que essa torcida? É porque está em jogo ele. No outro prato da balança está “apenas” o gênero humano… Que alcance tem isso, o gênero humano? Agora, ele?!
Então nesse dia ele vai passear pelo centro da cidade onde tem conhecidos, já antegozando todo o mundo. “Ó fulano, chegue cá, um abraço, eu gostei de ver, você hoje reduziu o jornal… Não, é preciso mesmo entregar os pontos, uma sociedade que tem um tal rapaz nas suas fileiras não tem conversa, olhe aqui está mais adiante [fulano que] pediu para ser apresentado a você…”
À noite, quando chega a hora desse rapaz dormir, os senhores acham pouco provável que ele tenha dificuldade em conciliar o sono? Lembrando e torcendo, torcendo e lembrando? Por que? Porque nós nos amamos inteiramente a nós, e amamos pouco aquilo que nós devemos amar. A torcida vem disso. O egoísmo é torcedor por definição.
Bem, chegou o último gole…