Como tirar proveito da própria imaginação? Ela pode prestar serviços incomparáveis! Seus perigos

Almoço, Eremo do Amparo de Nossa Senhora, 8 de março de 1990

 

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

[Perguntas]
Isso é uma coisa vasta como uma tese de concurso… É muito complicado.
* Capacidades da imaginação
A imaginação é uma potência da alma, que faz com que o espírito reproduza ou combine imagens. Ela recompõe a imagem do que uma vez já se viu. Por exemplo, imaginar uma coisa do tempo de criança: o Natal. Neste caso é um ato de memória, em que se procura fazer voltar ao espírito a imagem do que se viu, uma festa de Natal a que se assistiu em criança.
Acontece que, quando se representa uma cena assim, se a evoca levado pela necessidade ou pelo gosto. Eu compreendo que um escritor, impelido pela inevitabilidade de ganhar dinheiro, queira recordar o Natal de seu tempo de criança. Recebeu uma encomenda do jornal onde trabalha: “escreva um artigo sobre o Natal no seu tempo de infância”. Ele não terá outra coisa a fazer senão imaginar, quer dizer, da memória chamar à vida de seu espírito os fatos que não existem mais; e representá-las. Esta é uma forma de imaginação.
Normalmente, dá-se logo uma outra ação: à medida que se vai imaginando, fica-se atraído por uma coisa, outra e outra que se lembra. E, de repente, vem à ideia o seguinte: tal fato que se deu assim, como seria mais bonito se fosse de outra maneira! Então, faz-se uma criação, ou seja, gera-se uma coisa que não existe, e mete-se no meio das recordações do Natal que houve.
Por exemplo, como eu gostaria de, numa festa de Natal, ter podido oferecer um lindíssimo colar de pérolas a Dª Lucília. Eu me arrepiaria de gosto de poder fazê-lo. Mas, nunca tive dinheiro para realizá-lo. Em geral, uma criança, na época do Natal, não tem dinheiro. Quando o tem, é um mais velho que manda a criança oferecer. Nisso, ela não acha graça, pois percebe que está dando o presente de um outro.
O prazer é, quando a criança é rica, e lhe dizem: “Este presente foi comprado com seu dinheiro. Você quer dá-lo à sua mãe?” – “Quero! Então, me dê cá, ponha numa salva de prata”. E diz: “Mãezinha, aqui está o que eu comprei para a senhora!”
Então, a partir desta primeira cena – falsa, que não se deu – a imaginação pinta algo novo. Ela pode não criar só um fato, mas uma sucessão deles, como: “Eu ofereço-lhe as pérolas. A minha mãe, abraça-me e beija-me, muito carinhosamente. E diz-me – seria uma frase muito dela – ‘Eu gosto muito dessas pérolas. São lindas! Mas gosto mais do carinho com que você me ofereceu.’ E retiro-me cheio de contentamento.”
Eu posso dar “n” caminhos a essa imaginação, até criar uma noite de Natal que não houve, e escrevo um artigo: “A noite de Natal que não tive.”
Podia ser. Não estou mentindo, pois estou até contando que não houve. Vamos dizer que terminasse assim: “A mais bonita noite de Natal, que não houve, da minha vida foi no último ano da existência dela. Quando o meu amor a ela tinha chegado ao auge, minha noite de Natal representava, no pináculo, o que eu pudesse representar de belo…” Eu não estou mentindo, mas criando, com certo senso artístico, qualquer coisa que não houve.
* O perigo do egoísmo na imaginação
É legítimo a gente fazer uma coisa dessas?
A resposta é: conforme o tema e o espírito de quem está fazendo, pode não ser apenas legítimo, mas até santo. Também, pode ser ilegítimo e – na maior parte das vezes – o é.
Por quê? Porque quem se põe atrás do gostoso, não quer saber mais de ninguém, nem de nossa mãe, mas só daquilo que lhe dá prazer. A imaginação se deixa tomar facilimamente pelo egoísmo. Se nos pomos a imaginar, logo, logo estamos no centro da fantasia. Não é esta ou aquela pessoa coberta de méritos, e a quem queremos bem, que fica no centro do sonho, mas somos nós.
Assim, somos nós que mandamos jogar Napoleão no mar. Depois, chega-se à Europa, onde se recebe prêmios e condecorações de todos os monarcas. E fica um dos homens mais famosos do mundo, porque jogou Napoleão aos tubarões.
Mas, isso não basta, será preciso ter mais outra coisa, porque a megalice [orgulho, pretensão] é insaciável. Não há o com que ela se contente, e diga: “Agora chegou de riqueza ou grandeza para mim”. Isso nunca um indivíduo o diz.
* Exemplo: um sonho delirantemente vaidoso
Então, sonha, por exemplo com o seguinte:
Veio um anjo, enquanto ele estava dormindo, que lhe diz: “Fulano, você é um homem tão extraordinário que merece que lhe conte uma coisa. Napoleão desembarcou agora em Portugal. Agarrou-se à cauda de um tubarão, que o levou até lá, onde desembarcou. Está descansando uns dias numa casa de um pescador, para tomar fôlego. Ao mesmo tempo, já está tramando com ajuda de um partido a seu favor que há em Portugal. Quando tiver uma tropazinha organizada, toma esse país, depois a Espanha e, por fim, entrará na França.
Então, você fica incumbido da função de, da parte de Deus, revelar a todos os monarcas da Europa que Napoleão está em Portugal.
Logo lhe perguntamos: “Mas onde está ele? Preciso de o descobrir lá.” – “É em tal cidadezinha, perto de tal lugar, em tal rua e número etc.” Acordamos, e imediatamente corremos para uma escrivaninha, toma nota do lugar para não esquecer, e escreve uma carta circular aos reis da Europa:
“Meus bons amigos – de igual a igual – o tirano que há anos está oprimindo a Europa, e que foi, num ato de justiça e força, atirado por mim ao mar, o que mereceu a vossa humilde gratidão – que, eu acho, não esteve na altura do serviço que prestei; mas, enfim, já foi alguma coisa – desembarcou em Portugal.
“Tomando em consideração o que me disse um anjo – pelos méritos extraordinários de minha pessoa, que me quis comunicar a mim e não a vós, e, mais ainda, deu-me a honra de ser o representante dele junto a vós – anuncio-vos em seu nome que vosso inimigo, contra o qual sois fracos, está de novo de pé!
“Portanto, ou vós contais com a minha força – e, logo, vireis aqui reverentemente suplicá-la – que, talvez, eu vos conceda, ou estareis aniquilados. Dou vos o prazo de, dentro de alguns, estardes aqui, no meu castelo, e se não estiver muito ocupado, vos receberei. De contrário, vos acolherei no dia seguinte. E, aí, começaremos uma nova cruzada contra esse monstro.
“Nessa cruzada, já vos previno, o Godofredo de Bouillon serei eu! Mas, bem estais vendo, e não será preciso dizer-vos, vou deixar pequena a figura daquele, porque farei coisas perto das quais as humildes façanhas do defensor do Santo Sepulcro, que estarreceram a terra porque eu ainda não era nascido, não serão nada perto da minha epopeias.
“Preparai-vos, para, por vossa vez, vos estarrecerdes e me admirardes mais. Que vossa admiração, assim, chegue pelo menos ao décimo do que me deveis!
Assinado: “Fulano.”
* O caminho da extravagância: começa numa loucura, acaba numa torpeza
Isso, por exemplo, é uma coisa boa ou má? É péssima!
Um indivíduo se entrega a um tal pensamento que, em si, é mau. É péssimo, porque logo a seguir começa a imaginar como deve estar vestido para receber os reis; como vai ser o protocolo em que vai dignar-se a receber os reis. No meio desta fantasia, quando menos ele esperar, entram as damas da corte. E com elas, tudo o resto… No fim, vai acabar sonhando com a “fassura” [mulher de má vida] vizinha à casa dele.
Este é o caminho da extravagância. Isto é, começa com uma loucura, e acaba numa torpeza. Nesse sentido, os franceses têm muita razão em dizer que a imaginação é a louca da casa.
* A imaginação a serviço da virtude
Visto assunto de outro lado, a imaginação pode ser usada para um fim santíssimo. Por exemplo, um de nós tem que fazer uma meditação segundo a escola de Santo Inácio de como foi a cena da Anunciação.
Então pode concebê-la como o Beato Angélico: um claustro pequeno. Nossa Senhora rezando nele, inteiramente sozinha. Um quadro lindo. Ao imaginar assim, não tinha nenhum documento que o autorizava a pensar nisto, naquilo e naquele outro. Ele criou. Foi uma criação.
Santo Inácio quer que se imagine a Anunciação, fazendo nós uma criação. Uma obra guiada pelo seguinte: como poderia imaginar a Anunciação de modo a que me tocasse mais ao coração? O que quereria na minha recomposição de lugar – ele chama a essa concepção recomposição de lugar – representar de modo a me estimular mais?
Vou dar aos senhores duas hipóteses extremas. Poderia fazer uma série delas.
Uma seria: um quadro que salientasse a grandeza e a majestade da cena da Anunciação. Então, Nossa Senhora presente não num claustrozinho minúsculo, numa espécie de jardinzinho interno, e tendo perto dela um jarro, do qual nasce um lírio ereto – tudo muito encantador, cheio de ingenuidade e de inocência – mas, para uma alma que se deixe impressionar mais pela grandeza do que pelo encanto ou outro tema, num edifício enorme…
* A Anunciação do Anjo a Nossa Senhora
Vamos imaginar que Nossa Senhora estivesse rezando debaixo de uma colunata enorme, no meio de um espaço vazio. A colunata fosse muito majestosa, e que o ar d’Ela, de Rainha, se fosse acentuando cada vez mais, à medida que a Sua contemplação fosse crescendo. No fim, espargisse uma majestade tal que nem se ousasse olhar para Ela.
Os Anjos começariam a aparecer e a cantar em torno d’Ela cânticos que A glorificassem. Enquanto os anjos cantassem, Ela começasse a ficar toda transparente e radiosa de luz. Quando essa esplendidez tivesse chegado ao auge, apareceria alguma coisa no ar, e de que saísse um Anjo. Este com uma majestade enorme, comparada à de qualquer pessoa; minúscula em relação à d’Ela. Algo vai se passar…
O “algo vai se passar” deve insinuar que vai acontecer o fato mais importante que até então se tenha dado na História da humanidade. Mas, não se sabe o que é… Um Anjo fala, e Ela com toda a Sua majestade toma um ar recolhido e humilde, porque está falando um Mensageiro de Deus. Como imaginar a mais nobre das rainhas, posta na mais humilde das atitudes?
O Anjo fala, e Ela, em Sua humildade se perturba. A Rainha majestosa, mais do que o sol, está perturbada… Sente-se pequena. Não entende o que há. O Anjo explica-Lhe. Ela entende, e diz: “Faça-se em Mim segundo a vossa palavra.” Neste momento, há um quadro com mero jogo de luzes e cores… Não se vê nada: é meramente um Mistério. No meio desse jogo de luzes e cores, o Verbo se fez carne e habitou entre nós.
Como eu gostaria de saber pintar, para dar uma réplica a essa porcaria de histórias em quadrinhos de hoje em dia. Fazer em vários quadros sucessivos a História da Anunciação, segundo o que acabei de representar, desde o primeiro até o último.
Isto é fruto da imaginação. Produto reto. Obra que se fosse feito por uma santo, se poderia dizer santa. Como os senhores veem a imaginação pode prestar serviços incomparáveis.
Mas qual é o meio de ela prestar serviços incomparáveis? Aqui é que se fecha a história.
Pode ser… Eu termino numa palavra só o que estou dizendo, para não deixar truncado, e depois passamos adiante.
* Uma escola de imaginação
Então, como se aprende a fazer um quadro assim? Compreendendo-se que tudo quanto se vê tem um significado simbólico para a nossa alma. Devemos saber entender o que significam as coisas. Se o soubermos, poderemos compor um quadro cheio de sentido. Se não soubermos, nunca comporemos um quadro. Ficaremos como uns bobos, sem saber criar nem o quadro do Céu nem do Inferno.
Devemos saber o que as coisas significam, e, a partir disso, saber representá-las.
Eu dou um exemplo: este teto. A maior parte dos senhores tendo sido educada nos tempos de hoje, deve achar deste teto mais ou menos o seguinte: são umas tábuas velhas, ressequidas, que ainda prestam serviço, colocadas umas junto às outras, impedindo de cair a chuva, e que proporcionam uma avenida larga, de passeio, para os gambás. Vale a pena…
Um de nós, mais velhos, e, portanto, mais habituado a observar, vê nessas tábuas mais coisas. Pintavam-nas de azul e branco e também as portas e janelas, em geral, no tempo colonial. Tempo em que o Brasil e os outros países da América do Sul eram colônias de Portugal e Espanha, respectivamente. Nas metrópoles pintavam muitas vezes os tetos com combinações de cores assim claras, agradáveis de ver e repousantes. É uma clareza que tem uma certa inocência, representando os restos de inocência de alma que havia ainda nos povos anteriores à Revolução francesa.
Incontestavelmente, estas tábuas não estão bem juntas, porque houve uma certa preguiça em fazer este teto. Não entendo de carpintaria, mas eu pelo menos tenho isso como líquido: a preguiça escorre como goteiras das frestas deste teto. Portanto, num teto pode-se verificar a preguiça como a força de trabalho.
Uma pessoa, se quiser representar a preguiça num quadro que faça, lembra-se do teto do êremo do Amparo de Nossa Senhora. Também, se se quiser lembrar da inocência, lembre-se combinações de cores como esta…
Presta ou não presta uma certa ajuda compor? Se for pintor, auxilia até a pintar quadro. Se não for para pintar, é para ser crítico. Olha-se e diz-se: “Este quadro está mal concebido”, e apontam-se os defeitos, os lados pelos quais não representam a realidade, e como deveriam ser retratados de outro modo. É a crítica do quadro.
Não é verdade que a visita a um museu de pintura muda completamente de aspecto? Não é verdade que nestas condições se adquire uma arte muito maior do que arte de pintar? É a arte de representar nós mesmos coisas. É a arte na qual somos pintor e público ao mesmo tempo dos quadros interiores que um dia vamos apresentar a Deus no dia do Juízo: “Plinio, com que sonhavas?”
Isto é o que diz respeito ao Céu, e é para atrair as almas para lá. Uma pessoa quando medita, assim, sobre coisas do Céu, fica com menos medo da morte, com mais coragem de viver. Contudo, não pode ter como ponto de partida mentiras.
* Meditação sobre o Juízo: o julgamento dos semelhantes incute medo
Agora, os senhores viram um fato minúsculo:
Ele começou a trinchar o pato e ficou indeciso. O novato que estava com ele aconselhou-o a ir cortar lá dentro. Ele, então, disse: “Fulano está aconselhando a ir cortar lá dentro. O senhor dá-me licença, eu vou cortar lá dentro”. E foi.
Não foi o que se deu, mas o que vou dizer fica a um milímetro: começou a cortar o pato. Brasileiro não pode ver fazer qualquer coisa sem deixar de prestar atenção no que, antes, o prendia. Então, duzentos olhares veem como ele está cortando o pato, não o deixando à vontade. Imaginem-se de frente para lá, cortando um pato diante de todos, que estão atentos, para ver se está sendo bem feito o trabalho ou não. Eu garanto que o pato sai mal cortado, tal é a força de impacto que tem sobre um homem o julgamento de seus semelhantes.
* E o julgamento de Deus?
Qual vai ser a força de impacto, quando estivermos só diante de Deus? Nossa vida inteira vai ser representada. Deus na Sua majestade infinita, na Sua perfeição sem nome, no Seu poder completo, olhando para mim enquanto os fatos são representados… É ou não verdade que se uma pessoa pudesse fugir, fugia? Afundava! “Senhor, indicai-me uma nuvem para dentro da qual possa me refugiar, porque não ouso suportar o vosso olhar.”
Este é um pequeno fatinho que nos faz temer o Juízo de Deus.
Por exemplo, para quem tem uma tentação contra a castidade, uma solução soberana: “O que vai fazer agora, Deus vai ver; e você vai ter que aguentar o Seu olhar.”
– “Está bem. Mas eu estarei perdoado.” Replicará a pessoa sob o olhar de Deus.
* Como devemos nos arrepender de nossos pecados!
São Pedro quando se encontrou com Nosso Senhor depois da Ressurreição já estava perdoado. Mas, a vergonha, o perdão… “Senhor, como posso fazer para obter o vosso perdão?” E chorou até o fim da vida. Como deveremos chorar o pecado para o qual somos solicitados naquele momento? Um mau olhar só… Só, hem! “Só”, hem! Só um mau pensamento! Uma coisa é positiva: foi cometido, virá na presença de Deus! E, eu, que não tenho coragem – não sou como o Jimenez que tem – de cortar um pato diante dos outros, eu vou descascar diante de Deus o abacaxi que fiz.
Não julgam que esta é uma reflexão útil para uma porção de coisas?
Circunstâncias e situações? É uma coisa evidente.
* Meditação sobre o Inferno: a podridão
Agora, o Inferno.
Houve tempo em que eu fazia reflexões dessa natureza, que me produziram muito bem. De todos os estados possíveis no Inferno, e que são eternos, o que me causava mais terror era o da podridão. Ainda que se represente uma pessoa queimando no fogo – fogo eterno que queima até a medula dos ossos; e, mais ainda, queima a alma também; o fogo eterno tem meios de queimar a alma – com sofrimento terrível, a mim, pessoalmente – outros sentirão, talvez de um modo diferente – a ideia de ver-me, em minha carne, depois de ressurrecto, no Inferno, e todo podre, como um morfético, causava um horror extremo.
Mas, a morfeia não é nada em comparação com a podridão do Inferno. De todo o meu corpo, a todo o momento, saem as matérias mais porcas que possa haver, saem até das glândulas oculares o que pode haver de mais mal cheiroso e abjeto. A minha carne se torna de um esverdeado esbranquiçado, horrendo, viscoso, de um brilho que causa terror. Eu me movo e a minha pele parece que vai rachar.
Por quê? Porque estou podre. Por todo o lugar em que passo, espalho um terror de asco. Por toda a parte há reclamação e injúria, porque enchi de lepra tudo onde estive. Percebo que não é nem uma doença da pele, nem do corpo. Pega a pele e o corpo, mas como fruto da doença da alma. Sou uma alma leprosa, porque cometi tais, tais e tais pecados. Eu sou a lepra dentro do Inferno. Por toda a eternidade, sou o asco.
Aqueles que passam perto de mim, os demônios piores agarram-nos e jogam em cima de mim, porque terão um pouco da sensação de terror do que é tocar em mim, tão horrendo eu fiquei. Eu sou um tormento no Inferno para todos.
O mais atormentado do Inferno por mim sou eu próprio.
Cada qual, agora, imagine a podridão como lhe toca mais. Depois se imagine assim. Esteja certo de que tudo o que imaginou fica no rodapé da realidade. Tudo quanto há no Inferno é tão superior a tudo o que há de tormento e horroroso na Terra, que não podemos sequer ter uma ideia.
* São João Bosco e o Inferno
São João Bosco teve uma das famosas visões dele sobre o Inferno, em que lhe apareceram as muralhas dele. Eram sinistras, altas. Muralhas de prisão feias e cheias de malevolência, horrorosas. Quentíssimas! Uma figura que o acompanhava, e que provavelmente era um Anjo, disse-lhe: “Chegue perto”. Do lado de fora, hem! Ele disse: “Eu não ouso.” – “Deus está mandando!” Ele aproximou-se. O Anjo ordenou-lhe: “Toque com a sua mão na parede do Inferno”. Se não me engano, até chorou para não querer tocar. Mas, tocou.
No dia seguinte, estava com a mão inflamadíssima!
Este era o lado de fora do Inferno. Isso não é o que tocam às almas penadas. Estas estão do lado de dentro. É apenas do lado de fora!
Imaginem esse fato por toda a eternidade.
* Conforme o pecado, assim o castigo
Não é só o leproso do inferno. Conforme o castigo, há famílias de almas, inteiras, que são a podridão. Outras, o tormento da dor que não acaba mais!… Outras, a fome. Outras, o não poder dormir nunca: o cansaço tremendo! Talvez seja este o Inferno dos preguiçosos…
A situação daqueles que pecaram com diferentes sentidos. Os que estejam no Inferno, por pecado do olhar, terão dores nos olhos de arrebentar, de uivar, de urrar… Se pudesse, arrancava os próprios olhos. Não há remédio. Aqueles olhos martirizam-no de dor pela eternidade inteira!
Um outro pecou de tato: ficou podre.
Aquele outro pecou de gula: ficou de uma obesidade hipopotâmica. É a gargalhada do Inferno inteiro. Não consegue carregar o seu próprio peso. É como um porco no chiqueiro, que chega ficar cego, porque as pálpebras se colam numa na outra. Comeu, comeu, comeu até rebentar!
Ou então, o castigo é o daquela alma que escreveu a “Carta do Além” – coisa belíssima em que se devia meditar – em que diz que tinha tanta fome, que tinha vontade de pegar numa estrela feita de pão, e comê-la inteira. Não bastaria. Depois de terminar de comer, a fome dela estava intacta por toda a eternidade. Daí, as várias coisas sucessivas.
* O castigo dos igualitários
Pode-se imaginar os que pecaram de igualitarismo, e que por causa disso ficaram de uma vulgaridade nojenta. São os mais grotescos e plebeus, os mais risíveis dentro do Inferno. E daí para fora.
Os que não quiseram prever as coisas, porque tiveram medo de enfrentar o futuro, poderão ser castigados a andar com a cabeça voltada para o lado das costas, porque ficaram tortos para todo o sempre.
Depois disso, além dos tormentos de rotina, haverá os da extra-rotina. De vez em quando, Deus manda um sopro de dor passar por cima do Inferno, e aumentar ainda mais tudo quanto estão sofrendo. Uivam, uivam, uivam! Mas a coisa é tal que, quando cessa, eles não têm alegria, porque são incapazes dela.
* O tormento pelos pecados contra a sabedoria
(…) ter um inferno que fosse um tormento da demência. Não o de uma demência comum, como a de um pobre louco que está internado, e que muitas vezes não tem consciência de seu estado, e começa a representar. Mas seria a de uma pessoa que sabe que está posto na presença de sonhos demenciais, que não valem nada e são uma porcaria; são uma continua glorificação dele, mas fátua e de palhaçada, de porcaria.
Imagino que seja castigado do seguinte modo: tinha thau e recebera a visita da sabedoria. Ele não quis recebê-la, por isso está sendo punido com a demência. Ele mesmo sabe que tudo quanto lhe vem à cabeça é demência, é inútil e não vale nada. Não pára um instante de se lhe representar coisas por amor das quais ele rompeu com o thau.
Por exemplo, a sabedoria disse-lhe: “Aprecie tal aspecto de alma da TFP”. Ele estava indo para a escola ou para a faculdade, e passou perto um colega que tinha influência sobre ele, que lhe disse uma cretinice qualquer. Ele achou-a muito prestigiosa. Entrou na escola e repetiu-a como se fosse dele. Embarcou na falta de sabedoria…
Dessa forma, poderemos imaginar mil coisas pelas quais nós pecamos contra a sabedoria, e rompemos com a TFP.
Alguém me dirá: “Não rompemos com a TFP só pecando contra a sabedoria, mas contra a pureza também”. Eu sei! sabedoria, em última análise, aqui, quer dizer juízo. Quem tem juízo tem recursos extraordinários para não romper contra a castidade. Quem não tem, peca.
Bem, meus caros…
* O sofrimento para o pecador de suportar a superioridade
[Aparte]
A causa é a seguinte.
Está na alma do pecador que ele vendo uma superioridade sobre ele, lhe causa tal tormento que os maiores tormentos que venha a sofrer, ainda são menores – assim ele imagina – do que aceitar aquela superioridade. E daí acontece que, tendo que suportar, prefere ficar num lugar horrendo, mas onde ele não suporte essa superioridade, do que num lugar em que tenha que permiti-la.
* Exemplo: Philipe Égalité que votou pela condenação do próprio primo, Luís XVI
Um caso característico nesse sentido – os mais novinhos talvez não tenham ouvido falar do caso; eu menciono, data vênia de D. Luís, é o do Philipe Égalité.
Era primo do rei e homem riquíssimo. O rei era Luís XVI, antes da Revolução francesa portanto. Era o homem de maior riqueza imobiliária da França – no tempo em que a riqueza era constituía sobretudo em ter imóveis –, era o homem de maior riqueza imobiliária. Ao mesmo tempo, tinha uma situação social tão e tão elevada, que no primeiro baile que Maria Antonieta dançou em Versailles, no primeiro minueto quem foi escolhido para par dela foi ele. Tal era a categoria elevada dele!
Por outro lado, tinha o título de primeiro príncipe da casa real francesa. Estou simplificando, para não entrar em muitos pormenores. Portanto, abaixo do rei e de seus irmãos, todo o mundo lhe devia reverência, mesmo os mais altos. Levava uma vida de festa e de pagodeira. Contudo, teve inveja de não ser ele o rei. Então, quis destituir o rei para ficar ele o rei. Preferiu correr todos os riscos da Revolução Francesa a suportar que um outro fosse rei. E chegou ao ponto de votar a morte do rei, para lhe suceder.
No dia em que se devia votar sim ou não pela morte ou prisão do rei, na hora de ele sair de casa, um filho dele, o menor, estava à espera dele no jardim. Quando ele passou, pediu-lhe: “Papai, por favor, por favor, não vote a morte do rei!” Ele prometeu ao filho: “Não voto!” – “Papai, me promete?” – “Prometo!” Foi à Assembleia e votou a morte do rei.
Quando voltou para casa, o filho dele – coisas de criança – foi correndo para ele, perguntando-lhe: “Papai, papai, não votou na morte do rei, não foi?” Ele afirmou: “Não se aproxime de mim, porque não sou digno que uma pessoa limpa me toque”. Ele sabia o crime que estava cometendo. Queria correr os riscos horríveis, que deram na prisão dele e na sua decapitação. Não lhe deu a coroa. Sabia que corria esse risco, mas ele resolveu corrê-lo e até o fim chegar lá. Porque ser decapitado, para ele, era uma coisa menos horrível, do que ser, por assim dizer, o primeiro abaixo do rei na corte.
Na alma do homem revoltado, a inveja pode despertar tormentos que o levem a pedir o Inferno. Esta é a história.
* Exemplo de um ricaço que preferiu o inferno a abandonar a concubina
Já contei aqui um caso que me contou um padre. Ele foi assistir a um ricaço, numa casa de São Paulo, moribundo. Ele sabia que estava moribundo. Confessou-se.
E o padre, antes de lhe dar a absolvição, disse-lhe: “Eu ouvi dizer que mora nesta casa com uma concubina. Para eu dar a absolvição ao senhor é preciso que, antes, ela tenha deixado a casa. Não basta o senhor assumir o compromisso de romper com ela, mas é necessário que ela tenha deixado a casa.” Ele hesitou várias vezes, e acabou por dizer: “Então eu não vou receber a absolvição.” O padre ainda lhe disse: “Note que o senhor está morrendo. De um momento para o outro, estará no Inferno por toda a eternidade por causa dessa mulher. O senhor morre, e ela pega outro.” O moribundo: “Eu sei. Mas eu não quero que ela saia.”
O que é isso? Por um defeito culposo, a privação daquela pessoa parece para o pecador uma espécie de absoluto, do qual ele não quer se desligar. Ele sabe que não é, mas tem a ilusão que é. Tem conhecimento de que a ilusão é mentirosa. Mas romper com ela é lhe tão doloroso que não faz. É um pouco o caso do Philippe Égalité e de outras coisas do gênero.
Não sei se eu…
(Aparte: Uma pessoa quase que erige uma outra coisa no lugar de Deus.)
Erige mesmo!
* Não querer reparar a calúnia que ele difundiu
Vamos a um caso mais corrente. Imagine que um confessor diga a um penitente: “O senhor está se acusando de ter caluniado tal pessoa. O Sr. teria obrigação, antes de morrer, de desmentir o que disse. Por isso, deve convocar, vinte, trinta, cinquenta pessoas que têm relação com o caso, aqui em torno de sua cama, com toda a urgência, e contar que o senhor é que fez a mentira. O senhor é culpado de tal pessoa inocente estar há quinze anos na prisão, enquanto passou quinze anos se regalando, sem pensar no coitado que estava preso. Esta infâmia é a sua!”
É lhe difícil o caso de uma pessoa que diga: “Isso eu não faço!”?
São todos os amigos cheios de prestígio do clube dele, seus parentes influentes… É uma coisa fácil de se imaginar.
Vamos andando…

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