Santo do Dia, 31 de março de 1966
A D V E R T Ê N C I A
Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério tradicional da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.
As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.
Hoje é festa do Bem-aventurado Boaventura Tornielli, Confessor. Da ordem dos Servos de Maria; sua relíquia se venera em nossa capela.
Há aqui uma pergunta: “Qual deve ser a atitude das pessoas que querem estudar e assimilar o conteúdo da obra “Revolução e Contra-Revolução [RCR]”?
Tenho impressão de que há duas coisas a serem vistas aqui: uma é quanto à inteligência e outra quanto à vontade, a considerar do plano natural. Evidentemente que no plano sobrenatural nossa plena compenetração da RCR depende da devoção a Nossa Senhora e de conseguirmos graças para isso. Porque como veremos daqui a pouco, a RCR é – a seu modo – um tratado do amor de Deus, pois conduz ao amor de Deus, o qual é um dom sobrenatural que não podemos conseguir a não ser com as graças do Divino Espírito Santo e, portanto, por meio da oração, dos sacramentos, dos meios sobrenaturais.
Entretanto, consideradas a questão do ponto de vista natural, podemos dizer algo sobre esse assunto. Penso que se deve dizer, quanto à inteligência, o seguinte: os senhores tomem, por exemplo, esta sala. Pode-se dizer que suas paredes são verdes, tem uma tal ou qual dimensão, com suas cortinas, com suas janelas, como são as cadeiras, as mesas, o chão, o teto, a iluminação, enfim, pode-se acrescentar uma série de coisas.
Mas uma pessoa que queira compreender a sala não deve formar apenas uma opinião a respeito de cada um dos elementos que a constituem, mas deve fazer uma opinião a respeito do conjunto chamado sala, pois esta é um conjunto. Sala – na expressão tomada na linguagem corrente – não é constituída apenas pelas paredes, mas é o conjunto de toda a decoração e todo seu ambiente. Então, quem compreender esse conjunto chamado sala e for capaz de fazer um juízo a seu respeito, este a entendeu.
O mesmo se dá com o universo. O universo, se os senhores quiserem, é uma imensa sala feita por Deus para que dentro dela viva o gênero humano. E quem quiser compreender o universo, não deve ter uma opiniãozinha a respeito de uma estrela, de uma formiga, de um homem, da chaminé de uma fábrica e da marca de um automóvel. Mas em vez de se contentar em ter uma série de opiniões fragmentárias, é preciso que tenha um pensamento de conjunto a respeito de todo esse conjunto de elementos que se chama universo.
E há algo mais próximo de nós: é este mundo com o gênero humano habitando nele, a vida do homem na terra, com as regras que ela obedece, as condições que ela lhe oferece, a origem e a finalidade que ela tem.
Isso é algo necessário para o homem entender, se quiser compreender qualquer coisa. Em outros termos, ter uma noção de conjunto de todos os aspectos dos homens vivendo sobre a terra, e que nos faz compreender tudo. E todas as coisas só são compreensíveis a partir disso, e quando não se faz isso, elas são incompreensíveis.
Helen Keller (1880-1968)
Os senhores imaginem, por exemplo, a Helen Keller. Os senhores devem ter ouvido falar dela. Uma vez fui introduzido no mundo de Helen Keller por uma exposição de “x”. Eu nunca tinha ouvido falar dela, mas é mais uma coisa tremenda, se é que me lembro de todos os dados que me passaram. Trata-se de uma norte-americana, que ficou cega e surda aos 7 anos de idade, após uma doença. De maneira que para se comunicar com o mundo externo, ela dispunha apenas do sentido do tato.
Então conta a alegria que ela teve quando conseguiu, por primeira vez, tomar contato com alguém de fora. E foi através de uma coisa, de outra, de um dado e de outro, foi compondo uma noção de conjunto do que seria esse mundo, do qual estava quase completamente segregada. E de tal maneira uma noção de conjunto, que ela fez uma conferência no Teatro Municipal daqui de São Paulo, onde ela foi guiada até o bordo do palco e fez uma exposição completa. Esta era de uma pessoa que tinha inteiramente conhecimento e contato com o mundo exterior.
Quer dizer, ela possuía noção do conjunto, de como as coisas são, de como se engrenam, e não apenas uma noção avulsa.
Os senhores imaginem, por exemplo, que alguém tivesse conseguido dar a ela a noção de formiga. Depois lhe desse, por exemplo, a de água, e depois de carinho e ficasse só com essas três noções na cabeça. Ela, que não era louca, poderia enlouquecer… Por que o que fazer dessas três noções? Depois de ter martelado isso durante algum tempo, afundava na loucura, se ela fosse uma pessoa mais ou menos consequente.
Ora, acontece que uma porção de pessoas passam pela vida tendo uma porção de noções de águas, formigas e carinhos, mas não têm uma noção de conjunto da existência, não compreendem um certo eixo de noções nos quais a vida se estrutura. E por causa disso são pessoas que passam pela vida à la girafa pegando fogo, com crises, com problemas, com estertores, com manifestações de loucura, com abatimentos, com prostrações, com entusiasmos bobos também. Por quê? Porque essa noção de conjunto, de encaixar essas coisas de maneira a ficarem compreensíveis e a gente se compreender a si próprio também, isso lhes falta.
Ora, essa apetência da noção de conjunto e pelos seus mais altos aspectos, se chama virtude da sabedoria. Quer dizer, é a virtude pela qual a pessoa procura ter um conhecimento arquitetônico de tudo, e arquitetônico de si mesmo. E, naturalmente, como os conhecimentos mais profundos são os que se têm mais do alto, são as pessoas que procuram subir até Deus, até o transterreno, o metafísico, ou seja para além do físico e do material, para se fazerem uma ideia das coisas.
Quer dizer, não se contentar com aspectos fragmentários da vida, mas procurar ter um espírito arquitetônico sapiencial, por onde a gente compreende que há uma necessidade viva – como o ar para os meus pulmões – para meu pensamento, em aprender a ter uma noção de conjunto das coisas para explicar tudo, para me explicar a mim mesmo e dar orientação à minha vida. O compreender isso e acordar para a necessidade de sabedoria, isso para mim é a condição fundamental para uma pessoa entranhar-se da RCR como de todas as outras coisas. Quer dizer, sem essa base, sem esse fundo, não há possibilidade de compenetração da RCR.
O que é o oposto a isso?
É certo tipo de pessoa a quem se se pergunta: “Fulano, você vive feliz? – Vivo. – Por quê? – Ah… não saberia dizer. Bom… primeiro, tenho aparelho de barbear. Depois, estou comprando um automovelzinho a prestações. Vivo muito bem em casa, e inclusive há gente que até simpatiza com a TFP. Tenho um bom emprego e uma boa saúde. Eu estou contente”.
Essa impostação é o contrário da sabedoria. É pura sucção animal de felicidade, sucção sem sentido, de uma alma sem nobreza, que faz do gozo pelo gozo a sua finalidade. Não será um gozo desonesto, poderá não ser um gozo pecaminoso, mas há uma razão de pecado na inteira indiferença do resto: não me incomodar em saber nem de onde vim nem para onde vou, contanto que eu tenha essa alegria de viver sorvendo a mamadeira da felicidade eternamente…
Se fosse dado para pessoas com essa mentalidade uma nuvem cor-de-rosa onde pudessem ficar sentadas durante quinhentos anos chupando uma mamadeira, sem cansar, sem sentir tédio, com um gosto sempre novo e numa espécie de sonho acordado sempre agradável, ao cabo dos 500 anos, colocariam a mamadeira de lado e diriam “Quero mais!” e continuariam com aquilo…
É exatamente o gênero de gente cuja alma não tende para Deus. E quando é preciso falar de Revolução, de Contra-Revolução, de problemas, de lutas, de Causa, é uma coisa dificílima! Por quê? Porque só pensam em si, só se preocupam com eles.
Então, quando se tem que falar de um dever, de um ideal, da Causa: “Ah… como é? É claro a Revolução, a Contra-Revolução…”. Fica posto ali, porque só se incomodam com seu aparelho de barba, seus chinelos, a casinha bem arranjadinha… Para eles, toda preocupação de caráter metafísico não é nada.
Como podemos imaginar que gente assim ame a Deus de fato e seja realmente amada por Deus? Porque essa gente ama a si próprio! Não ama mais nada a não ser a si próprio. A duras penas reserva para Deus um cantinho da alma, mas é um cantinho defendido ali. Terço, meditação, comunhão, tudo para conseguir apenas um interessezinho assim pequeno pelas coisas de Deus, e o resto é ele. Quer dizer, Deus tem uma espécie de enclave, uma espécie de gotinha encravada na alma dele e nada do que isso. Tantas almas há em que nem isso existe…
Então, há almas para as quais a sabedoria é uma coisa postiça, é algo em que não é preciso prestar atenção. Eles gostam de ler o magazine, de ver a televisão, de pensar no próprio chinelo, no automovelzinho, leitura de jornais esportivos… é para isso que sua atenção se dirige espontaneamente. Para outros assuntos, sua atenção vai a duras penas.
Há uma regra que não falha: dize-me para onde corre tua atenção, e eu te direi quem és. Se a atenção espontaneamente corre para essas coisas e a duras penas vai para a sabedoria, eu não posso dizer que seja um homem sábio…
Ora, o varão católico é – por excelência – um homem dotado de sabedoria. Nele há, portanto, essa posição da alma de desapego dessa vidinha, de tendência para as preocupações de caráter superior; é isto que realmente constitui o fundo da virtude de sabedoria e o que nos leva para o amor de Deus. O amor de Deus, em última análise, é filho da sabedoria.
Acabei falando da inteligência e da vontade. Os senhores estão vendo que a inteligência deve procurar essa explicação de cúpula; a vontade deve amar esse bem de cúpula, mais do que todos os outros bens.
É muito bonita a frase dos Macabeus quando se levantaram: “É melhor para nós morrer do que viver numa terra devastada e sem honra”. Para eles os bens superiores da vida, a honra da terra, a boa ordem – mas ordem superior segundo superiores princípios da vida terrena – e a terra com honra era a terra organizada segundo a lei de Deus; isso valia mais do que a vida. E se a vida tivesse que ser perdida, valia a pena perder porque não valia a pena viver nessas condições.
O homem que, pelo contrário, tem mania de mamadeira de nuvem cor-de-rosa, esse é diferente: ele gosta de viver nessa terra, ainda que sem honra… E quando se lhe for falar em luta e em combate, sua resposta será: “Ah? Combater? Quer me explicar um pouco porque eu devo morrer por Deus?…” É dificilíssimo conseguir que essa pessoa tenha dez minutos de heroísmo. Por quê? Porque está centrada noutra coisa, a vontade não adere aos bens sapienciais, ela adere aos bens contingentes pequenos, concretos; doutrina não diz nada para ela, espírito não diz nada para ela, explicação não diz nada para ela. Para ela diz apenas o que se refere à matéria, ao corpo. Ou seja, assistir ininteligentemente ao desenrolar ininteligente das coisas da vida. Evidentemente, nessas condições, não pode haver uma pessoa que se entranhe da RCR…
Como adquirir essa sabedoria?
A pessoa que tem uma primeira tendência para a sabedoria, na RCR encontra exatamente o meio vivo de adquirir essa virtude, porque a RCR nos explica o fundo dos acontecimentos de nosso tempo, nos explica qual é o fato dominante em nossa época em função do qual nenhum outro é importante, e para o qual todos os fatos concorrem, ou de um modo positivo, ou de um modo negativo.
Há uma seita herética, gnóstica e trabalha para impor ao espírito humano e à vida humana a conformação contrária às leis que Deus pôs no universo. Essas leis são a imagem de Deus e a gnose procura fazer o contrário da imagem de Deus. Ela procura, por essa forma, fazer com que o universo seja mais dissemelhante possível a Deus.
E o traço mais vivo dessa ação da gnose é o igualitarismo: todo mundo é igual, toda diferença é má, toda hierarquia é um crime e uma injustiça. Quando, pelo contrário, a Santa Igreja nos ensina que toda hierarquia é uma condição para que Deus se espelhe e não haveria possibilidade de manifestação ou de semelhança com Deus a não ser por meio da hierarquia posta por Ele no mundo.
Resultado: temos aí uma luta viva. Tudo quanto se passa em torno de nós é a favor da igualdade ou da desigualdade; e de outra nota: de sacralidade ou de laicismo; outra nota, da fé ou do interconfessionalismo.
Isso tudo a RCR nos explica. E nos dá a explicação de fundo de tudo quanto acontece em nosso tempo. E, por outro lado nos proporciona, no fundo, uma explicação do próprio universo.
De maneira que se formos almas sapienciais, ao estudar a RCR, ao ler, ao analisar as coisas do universo com esses olhos, desenvolveremos em nós a sabedoria. A sabedoria exatamente é um primeiro movimento que nos leva a estudar a RCR. E a RCR estudada, aumenta em nós a sabedoria. E a sabedoria, por essa forma, nos dá o amor de Deus.
Catedral de Notre Dame, Paris (foto P.R.C. – ABIM)