Comentários sobre grandes personagens contemporâneos e muito maiores do que Napoleão Bonaparte

Conversa durante jantar no Êremo do Amparo de Nossa Senhora, 26 de março de 1987

A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras “Revolução” e “Contra-Revolução”, são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro “Revolução e Contra-Revolução“, cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de “Catolicismo”, em abril de 1959.

 

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Os três monarcas a cavalo: o Imperador Francisco I (centro), o Czar Alexandre I e o rei Federico Guilherme III. Aquarela de Johann Ernst Mansfeld e Johann Adam Klein (1816).

 

 

 

Os srs. já sabem que não houve tempo de xerografarem da tradução do [trecho com as Memórias] Metternich. E com isso vai ser feita a projeção de vários quadros de pessoas que estão naquele contexto do Metternich. A projeção será comentada, por todos nós. Palavra livre.

Ah! Está aí o Metternich. Eu chamo, o que eu vou comentar agora é um adendo ao comentário da manhã. Eu chamo a atenção dos senhores para o traje dele. Os senhores notam uma condecoração com faixa vermelha que barra o peito dele da direita para a esquerda, de alto a baixo. Eu não sou entendido em ordens de cavalaria e nem em condecorações, quem sabe se o Mário, decifra o que é aquilo.

(Sr. Mário Navarro: Praesto Sum. Ele está usando o Tosão de Ouro no pescoço. Agora eu não sei, provavelmente a faixa não é, eu nunca ouvi dizer que o Tosão de Ouro tivesse uma faixa daquelas, portanto, a faixa deve ser alguma outra condecoração, eu não sei qual é.)

É, também acho que não é. Bem, ao pescoço está suspenso logo os senhores estão vendo o colarinho dele aberto, não é? Aliás é uma coisa muito feia da moda do tempo: um colarinho aberto e um pano enrolando o pescoço. Era uma fita, uma fita de material com certeza muito fino, de primeira ordem, porque ele todo está muito bem vestido. Mas eu não achava isso bonito. Dava a impressão que era uma camisola por debaixo da roupa.

Agora, o Tosão de Ouro é aquilo que os senhores estão vendo lá. É a mais alta condecoração da Europa. Ela foi instituída por Carlos, o Temerário, e depois passou para a Casa D’Áustria, por herança. A Maria de Borgonha, que era descendente, filha de Carlos Temerário, casou-se  com um Habsburg e isso passou para a Casa D’Áustria. E esses colares eram de ouro maciço.

O tosão, que é um cordeiro, suspenso a um anel, um cordeiro morto, esse tosão era também todo de ouro e não era estritamente da propriedade do condecorado. Quando o condecorado morria, ele deveria devolver, a família deveria devolver o tosão à Ordem do Tosão de Ouro. E se o herdeiro dele não fosse galardoado com o Tosão de Ouro, o que era frequentíssimo, era regra geral, o Tosão passava para outra pessoa. Ele ostenta o Tosão em primeiro lugar porque é a mais alta ordem do tempo dele.

Eu chamo a atenção dos senhores também para os bordados. Os senhores estão vendo que a roupa dele está toda coberta de bordados, bordados cobrindo o peito, bordados no colarinho, bordados nos punhos, onde pode haver bordado, está bordado. Mas a meu ver um bordado muito bonito, de primeira categoria e que não é pesado, não constitui excesso, me parece muito proporcionado, muito a propósito.

Do lado de cima do colarinho ainda tem uma espécie de camisa que passa, que forma uma espécie assim de lenço em torno do rosto. Isso francamente eu não gosto.

* Metternich tem uma fisionomia sutil, com qualquer coisa de ao mesmo tempo muito mole e muito insistente

Agora, a fisionomia. A fisionomia é subtil: o nariz dele, aquele nariz comprido, é um nariz próprio para se meter nas coisas. Não é um nariz de ave de rapina; é um nariz de cheira-cheira.

As orelhas dele, não são certos tipos de orelha carnudas, grossonas ou enormes parecidas com certo tipo de cachorro, parece que chama Dackel, é um, não sei que espécie de cachorro que tem umas orelhas que tampam aqui, isso aqui, medonho. É Dackel, não é?

(D. Bertrand: Dalmatas.)

Dalmatas, é isso?

(D. Bertrand: Dackel é aquele cachorro pequenino.)

Pois é, mas o Dackel tem aquelas orelhaças. Bem, enfim, é o contrário disso. Mas as orelhas são assim umas chapas finas e que terminam com essa parte aqui muito fina, que é também de um homem que ouve muito, que pega, é um xereteador de primeira ordem!

Agora, olhem o olhar dele. Não é o olhar de quem está afeito, que se adestrou para meter medo. Não é um olhar que se adestrou em comandar. É um olhar que se adestrou à conversa amável, afável e se adestrou também para aglutinar, coordenar ou descoordenar.

A boca é pequena, o tom dele é de um homem muito fino, inegavelmente, inegavelmente muito fino.

O penteado – eu estou me demorando tanto no Metternich porque é o homem central da nossa narração, mas é mais do que isso, é o homem central da política europeia no tempo dele, foi da política da queda de Napoleão e post-queda de Napoleão até ele mesmo ser jogado no chão, se não me engano pela revolução europeia de 1848, ele dava as cartas completamente. Mas há qualquer coisa nele, no tom, no estilo dele todo de muito mole e ao mesmo tempo de muito insistente.

E eu me lembro um fatinho que se deu com ele na Inglaterra. Ele saiu da Áustria, fugindo num carro com roupa suja para lavar, roupa branca, que “soit disant” ia levar roupa branca para lavar, para as lavadeiras que naquele tempo existiam nos arredores de todas as grandes cidades, lavavam roupa e vinham para o centro. E pela ideia que eu tenho – não garanto inteiramente – mas quando o carro passou pelas tropas, patrulhas revolucionárias que guarneciam Viena, ainda meteram uma baioneta para ver se não tinha ninguém lá, e ele quieto. Como a baioneta não acertou nele e a baioneta não encontrou ninguém, veio ordem então para trotar e assim se libertou. Foi parar em Londres.

* Conversas de Metternich em Londres com um político exilado

E lá ele se hospedou num hotel em que estava também um grande político francês, expulso também, que era Guizot. Guizot era um grande historiador, grande político; ou era Thiers, um dos dois. Eram grandes historiadores e grandes políticos e estavam no mesmo hotel e às vezes conversavam. Desses ócios que tem os exilados, tem tempo diante de si, uma condição muito agradável a de exilados, hein? Quando tem dinheiro, mas olha que é uma delícia.

Agora, por quê? Porque eles têm tempo livre e conversam de parte a parte, contam coisas. Então, este Thiers ou Guizot, disse a ele:

– Príncipe, eu compreendo por que é que eu, num país convulsionado pela revolução que me levou para cima, que era a revolução de 1830, porque que num país convulsionado assim eu tenha caído. Uma convulsão traz outra. A convulsão de 1830, foi uma convulsão revolucionária e liberal, eu subi. Veio depois uma revolução mais revolucionária, mais liberal, eu caí. Estou aqui. Agora, o que eu não compreendo, é como é que o senhor caiu na Áustria, pois com toda a popularidade que o senhor tem na Áustria e com todo o poder que a família imperial tem na Áustria, como é que isto aconteceu?

Ele ouviu muito calmo e deu esta resposta:

– Ah! a Áustria! Eu nunca governei a Áustria, de maneira que eu não sei as causas pelas quais eu caí na Áustria.

– Como o senhor nunca governou a Áustria?! Governou a Áustria a vida inteira!

– Não, eu entregava para outro governar. Eu procurava governar um pouquinho a Europa inteira…

O que era uma ponta [cutucão, n.d.c.] no Guizot, porque então ele tinha mandado nele também, não é? O Guizot não conta o que respondeu, ele só conta esse pedaço de conversa. Os senhores veem bem a cara dele fazendo política internacional e deixando que na Áustria se preparasse o que fosse. Bem, está acabado o Metternich.

* Quando mais moço, Metternich era de um temperamento irritadiço; soube disfarçar com o tempo

É ele mesmo. Parece-me que mais moço do que naquela fotografia anterior. Também mais vivo, e aqui aparece uma coisa nele que não aparece na fotografia anterior.

É o seguinte: um homem de temperamento nervoso, sumamente irritadíssimo se o tiravam dos gonzos, sabendo-se frágil por alguns aspectos e não podendo levar além de um certo ponto a reação, mas vingativo e conforme o caso levando até liquidar o sujeito. Eu acho que com o tempo, ele aprendeu a disfarçar melhor. Notem o cabelo: o cabelo inteiro é desordem e cheio de cachinhos que a gente vê que ele e os contemporâneos achavam muito bonito ter assim, era a moda.

 Agora, pensem na geração anterior, que usava peruca com cabelo branco. Os senhores podem notar a diferença e a queda entre a ordenação sumamente cuidadosa da peruca com cabelo branco e com um ar nobre que isso dá, e esse negócio assim que já é a Revolução solta. Por enquanto, capilar e romântica; enquanto a peruca anterior era clássica, com a clássica lista no meio do cabelo e depois toda empoada de branco com uma… durante muito tempo tinha uma assim uma continuação, tudo artificial, de cabelo para cá com uma fita grande amarrada e assim saia o marquês à rua.

(Sr. M. Navarro: Ele mesmo usou peruca certamente quando jovem.)

Deve ter usado.

(Sr. M. Navarro: Como é que ele pode passar por essa transformação?)

Eu atraio a atenção do senhor para esse ponto: assim como o   senhores usam paletó e – eu digo os senhores da TFP mais velhos – usam paletó e esse outro pessoal da mesma idade dos senhores  andam em quaisquer farrapos caros que encontram por aí, assim também houve uma geração que se dividiu. Alguns usavam peruca  e todo o traje do Ancien Régime, e os outros usavam já esse traje novo.

* Uma gravura de Mallet representa duas situações sociais antagônicas que coexistiam

Agora, o traje era um símbolo da posição ideológica, quase filosófico-religiosa do sujeito. O Mallet traz uma famosa gravura representando no tempo de Luís XVIII um homem, é, portanto, no tempo de Metternich, um homem atravessando uma rua de Paris, é caricaturizante: no primeiro plano tem um indivíduo com uma tábua e assim com uma roupa de um lixeiro que estivesse de roupa nova, que nunca tivesse servido no lixo e com um chapelão e uma senhora com as modas desse tempo, ultra elegante atravessando a tábua quando um riozinho corria por baixo, um corregozinho. Eram os calçamentos das ruas muito defeituosas ainda e que levava essa profissão: o homem punha uma tábua em cima e vivia disso e quando tinha um córrego assim, ele era que levava as melindrosas do tempo a passarem de um lado para outro, oferecia o braço e elas passavam.

Bem, e mais adiante, passando outro córrego, sem ter ninguém que o ajudasse, um homem de uns 60 para 70 anos assim, vestido à la Ancien Régime, mas com umas pernas muito compridas, muito magras que falavam de uma longa fome e com uma roupa que era ao mesmo tempo pomposa e ensebada, falando ao mesmo tempo de pobreza e de pompa, e com medo de cair e andando assim como uma espécie de gafanhoto em cima daquela história. Eram os dois mundos que coexistiam numa coexistência nem sempre pacífica. Ele, portanto, optou pelo traje assim. Mas note bem que peruca, propriamente peruca, nenhum soberano do tempo dele usava. O Czar da Rússia usava esse cabelo assim.

Quer dizer, é a entrada da Revolução. Luís XVIII usava peruca, mas também…

Bem, avante!

* Análise de Metternich em idade avançada: contradição na fisionomia

Não me digam que é ele velho? É ele velho? Os senhores notem que o traje se tornou ainda mais revolucionário. É verdade que aquele traje primeiro todo bordado era um uniforme oficial de um cargo público e ele aqui está vestido como um particular, na vida particular. Ele não era mais ministro, ele viveu ainda um bom tempo depois de ter conseguido voltar para a Áustria. Viveu muito prestigiado e com dinheiro, incensado de todos os modos, tratado pela família imperial do melhor modo possível, enfim, viveu nas grimpas.

A cara dele é, a meu ver, contraditória, ele é uma pessoa contraditória, porque a posição do corpo é de um homem que está num inteiro sossego e fruindo um repouso muito agradável. A roupa toda é tão boa quanto a moda do tempo permitia. A gente vê que é uma casimira de primeira ordem etc. Mas há nele um certo sorriso e uma certa atitude no corpo e no modo do braço ser de quem tirou o primeiro prêmio da loteria e no rosto, a expressão do rosto é de quem tirou o bilhete em branco.

Mas não há o olhar do homem de fé que está esperando a eternidade. Essa é a impressão que me dá Metternich, na extrema velhice. Ele talvez teria concluído as memórias nessa ocasião.

* Talleyrand: homem fino, aventureiro, misterioso, um pedaço de vitral do Ancien Régime

Os que sabem quem é este, levantem o braço. O nome dele, Carlos Maurício de Talleyrand Perigord. Príncipe de Talleyrand, Príncipe de Benevento e uma porção de coisas do gênero. A meu ver ele tem qualquer coisa de muito francês na fisionomia e em tudo.

A cara dele os senhores estão vendo que é de traços muito bem constituídos, meio rechonchudo, corado, com restos de mocidade passeando pelo rosto, mas de outro lado com uma maturidade inteira de quem já deu volta em tudo e que sabe como é tudo e que avança seguro para as aventuras mais temerárias, porque a cara dele é de um aventureiro.

Muitíssimo fino e fino de finura francesa. Misterioso, ele usa uma máscara e o próprio olhar dele ainda tem um véu qualquer por onde não se percebe no fundo o que é que ele está pensando.

Esse conjunto causa agrado de ver, enquanto pedaço de vitral do Ancien Regime. Causa horror quando a gente pensa que ele é bispo da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Bispo apóstata que acabou recebendo da Santa Sé uma redução ao estado laical com licença de casar-se e que – os senhores vão ficar surpresos – mas por razões que eu não conheço bem e não sei se foram conhecidas, casou-se com uma mulher hindu, que parece que trouxe muito dinheiro para ele. Mas, ele explicou várias vezes ao longo da vida dele, que um dinheiro de uma só mulher não bastava para nada. Para fazer o gênero de carreira que ele estava fazendo, era preciso gastar tanto dinheiro, que ele gastava fortunas inteiras e ainda não chegava.

* Talleyrand não era um homem de pensamento como Metternich, ele era uma espécie de “capoeira” da política

Como era que ele arranjava o dinheiro para isso? Os senhores estão vendo que não é trabalhando, não é? Ele não era um homem de pensamento profundo como o Metternich, não era um estadista como o Metternich, era propriamente um “capoeira” da política. Ele era um desses diplomatas, escoladíssimos, a que um governo pode dizer: “Vá a tal país, ou receba aqui tal pessoa e obtenha dela tal coisa – coisa absurda – que ela arranque um olho da cara e jogue no chão”. Eu estou falando linguagem simbólica. Eu notei que a brutalidade da metáfora chocou.

Mas, ele chegava, começava a tratar, agradava, deixava a pessoa satisfeita. Depois da pessoa adquirir confiança nele, quando ele adquiria confiança, ele tinha a palavrinha, o ditinho, o fatinho que ia compondo na cabeça do sujeito o panorama que ele queria. E sem nenhum pouco as grandes exposições bonitas, como essa de Metternich para Napoleão, ele era um sugestionador e ia dando volta no sujeito, embrulhava o sujeito.

Ele serviu muito a Napoleão. Como serviu a toda forma de governos que houve na França no tempo dele. Quer dizer, ele não tinha fidelidade a ninguém, a nenhum rei, a nenhum regime, a nenhum princípio. Ele era apenas o mais entusiasmado dos “talleyrandistas” que havia na França. Aos seus próprios interesses, ele foi fidelíssimo.

Ele se havia da seguinte maneira: quando ele percebia que o governo a quem ele estava servindo ia cair, ele rompia com o governo, mas discretamente, ele fazia o governo mandá-lo embora, para não chamarem de oportunista, de político. Ele era um oportunista, mas naquele tempo isso ficava muito feio. Isso hoje faria uma grande popularidade, mas naquele tempo não fazia. Oportunista, político, cachorro, ele não queria ser chamado disso. Então ele dava o jeito que ele podia. Ele se fazia ir embora e ficava numa espécie de exílio.

Quando o governo novo chegava, podia ser um governo cujos partidários ele tinha ajudado a achatar antes de vencer, hein, estava ele ali recebendo… Agora, como ele era um diplomata prodigiosamente útil para qualquer governo, o governo ainda achava melhor contratar. E por isso ele se fez contratar por todos os governos. Só houve uma ocasião em que ele não quis composição, foi no Terror. Quando começaram a cortar a cabeça de tudo quanto era nobre e… ele achou que positivamente estava ficando sem graça o jogo. Ele não podia ir para nenhum país da Europa. Todos os países eram mal vistos como aliados da Revolução. Então ele fugiu para os Estados Unidos.

Mas ao que parece sem tempo de levar dinheiro, porque nos Estados Unidos ele viveu modestamente – penúria não -, mas modestamente.

* “É pena que um tão grande homem tenha tido uma tão má educação”

Esse homem teve ditos célebres na vida dele. São tantos, atitudes célebres são tantas que se poderia fazer e deve haver provavelmente, um anedotário das coisas de Talleyrand. Por exemplo, quando ele percebeu que Napoleão ia cair, ele começou a fazer fronda a Napoleão. Napoleão ficou furiosíssimo, e daí começa uma cisão entre os dois. E um dia estava numa reunião de ministros e outras coisas lá, no Palácio das Tulherias de Napoleão, morava lá, e Talleyrand entrou. Cumprimentou e foi ficar em pé, apoiado junto a uma lareira, porque ele era muito manco e precisava apoiar-se em alguma coisa.

E lá ficou ouvindo a conversa com essa impassibilidade assim. Ele tinha uma voz feia, em falsete. Napoleão sapecou uma descompostura nele, mas onde disse as piores coisas possíveis para ele. Ele estava apoiado na lareira e continuou com essa cara impassível durante todo o tempo. Quando terminou a descompostura, ele saiu mancando e disse só com a vozinha em falsete quando ele estava perto da porta: “É pena que um tão grande homem, tenha tido uma tão má educação.”

* “Monseigneur, nós estamos fartos de glória, traga-nos a honra”

Bem, outra dele foi por ocasião da queda de Napoleão, a restauração dos Bourbons, era a dinastia que tinha sido deposta com Luís XVI, e vinham os irmãos do Luís XVI que subiam. Subiu o Luís XVIII, irmão que vinha imediatamente depois de Luís XVI na ordem das primogenituras; e um outro irmão, que usava o título de Conde d’Artois, que vinha depois, era o terceiro. E que depois foi rei. Luís XVIII não tinha filhos.

Então, o Conde d’Artois estava na fronteira: entra ou não entra na França? E declarou que ele só entraria caso ele recebesse um bilhete de Talleyrand. O Talleyrand tinha feito todas as misérias com a casa real francesa.

O Talleyrand pegou um pedaço de papel assim, rasgou e escreveu só isso: “Monsenhor – em francês se diz “Monseigneur”, para os príncipes de casa real se diz “Monseigneur “– nós estamos fartos de glória! Traga-nos de volta a honra!” Assinado: Talleyrand.

Não podia estar mais bem apanhado o negócio. Porque glória, as vitórias de Napoleão tinham trazido a ele. Mas era um desonrado, um ladrão do que era dos outros. A vítima espoliada, voltando, podia trazer a honra, podia trazer o direito. E era o modo de dizer que o tempo de Napoleão tinha caído, e que tinha chegado a era dos Bourbons…

* Uma justificativa que Talleyrand costumava citar para fazer perdoar sua tomada de atitude face aos revolucionários

“…Príncipe, eu mandei perguntar se ele se lembra da noite de tanto de tanto, nosso encontro secreto”. O Conde d’Artois não mandou resposta. Mas é conhecido qual é esse encontro secreto. A revolução estava fervendo, e o Talleyrand procurou esse Conde D’Artois, e disse a ele:

– Monseigneur, tudo ainda pode ser salvo. Mas é preciso empregar a força, passar os cavalos em cima desses revolucionários, isto tudo não passa de uma canalha, em pouco tempo a casa real pode estar senhora da situação de novo! Diga isso ao Rei, porque também sem isso nada se salva.

Diz o Conde d’Artois para ele:

– Então não se salva nada, porque meu irmão, o Rei, não quer usar esses métodos.

– Monseigneur, então eu vou tomar o meu rumo.

Saiu e aderiu aos revolucionários. Mas ele apresentava isso como uma justificação da atitude dele. “Uma vez que vocês não quiseram se salvar, eu me salvei. Eu teria preferido agir do lado de vocês. Vocês não quiseram, eu me salvei”. É a argumentação de um sem-vergonha. Ele era, naturalmente, entrosado no mais alto grau!

No tempo de Napoleão ainda, ele gastando torrentes de dinheiro como ministro do exterior de Napoleão, e frequentando à toda hora a corte de Napoleão, que era uma corte luxuosíssima. Havia umas princesas do Ancien Régime que tinham voltado. Não eram princesas da casa real, de uma casa abaixo da casa real – Casa de Lorena – mas era uma altíssima casa. E essas princesas eram pessoas idosas, que toda noite depois do jantar se encontravam na casa de uma delas, e como tinham pouco dinheiro, faziam apenas umas duas ou três qualidades de pãezinhos, ainda do tempo do Ancien Régime. Jogavam um  pouco de loto, jogos que se usavam naquele tempo –– um jogo que os senhores não sabem do que se consiste, eu já não sei, “Víspora”, e outras coisas do gênero.

E o Talleyrand apreciava no mais alto grau a conversa das pessoas que tinham pertencido à antiga corte, porque a corte de Napoleão era pesadona, sem graça… E toda noite Talleyrand saía mais cedo das festas de Napoleão, ia de carruagem e tudo para a casa pobre dessa princesa, onde os pãezinhos quentes o esperavam com os maiores cuidados possíveis. Eles ficavam comendo aquilo e conversando até tarde, duas horas, três da manhã, conversas do Ancien Régime. Era a hora em que Talleyrand descansava! E eu confesso que eu compreendo isso a mais não poder…

* Com o molho da comida escorrendo sobre o rosto, Talleyrand continuou a conversa como se nada lhe tivesse acontecido

Passou-me agora pela lembrança mais uma coisa interessante  de Talleyrand e fugiu-me da… se eu lembrar ainda conto. Eu conto em todo caso uma de que estou me lembrando e que é famosa. Caiu Napoleão e subiu o rei Luís Felipe, do qual nem todos nós aqui somos admiradores. Admiramos muito dois descendentes dele [referindo-se a Dom Luís e a Dom Bertrand, n.d.c.], e queremos muito, mas o avô menos, bem menos…

Então Talleyrand foi mandado como embaixador da França junto à Inglaterra. E o rei da Inglaterra o convidou para um grande banquete. Entraram os servidores, durante o banquete, trazendo aquelas travessas de prata enormes, com molhos etc., etc., e parece-me, não tenho certeza, que ele estava ao lado do rei. E que o homem enquanto servia o rei, tanto se preocupou em servir bem o rei, que deixou cair molho em cima da cabeça de Talleyrand! Na hora precisa em que o rei estava dirigindo a palavra a ele e ele respondia.

Bom, todo mundo com os olhos em cima para ver o que aquele leão das boas maneiras iria fazer. Ele deixou o molho escorrer impassível, na cabeça, continuando a conversar com o rei. E só foi se arranjar quando terminou o jantar, e entrou para dentro. Com aquela cara tranquila…

* * *

Bem, podemos passar adiante! Vamos passar outra figura, porque nós passamos a noite inteira só comentando duas da coleção interessantíssima. O que nós podíamos fazer agora é o seguinte: para terminar o jantar passar algumas figuras comentadas muito mais rapidamente. De maneira que os senhores veem mais gente. Bem, mas afinal vamos lá projetar mais alguma coisa.

* Comentário sobre Francisco I da Áustria, num quadro, com o Czar e o imperador da Prússia

São os três monarcas, não é?

(Sr. Sepúlveda: Exato. O Czar Alexandre I, o do centro o imperador da Áustria Francisco I e o da direita é Frederico da Prússia.)

O quadro eu não sei por que… diz aí quem pintou o quadro?

(Sr. -: Não senhor.)

Porque dir-se-ia que o quadro foi pintado por um pintor austríaco! [aquarela de Johann Ernst Mansfeld e Johann Adam Klein (1816), n.d.c.] No centro, mas no centro e ligeiramente à frente está o imperador da Áustria. Vestido de cores claras, ele aparece aí como ele era: um rosto longo, parecia feito de marfim, com um corpo de um jovem ainda, mas a cara de quem tinha sofrido muito. Mas uma facilidade de mover-se e um domínio sobre o cavalo, completo. A não ser pela cara de grandes sofrimentos passados que deixaram cicatriz, ele não tem nada nele que indique o homem quebrado por circunstância nenhuma.

A roupa dele é de um cor-de-rosa muito claro, o uniforme dele. O cavalo é branco, e o penacho branco, como dos outros dois monarcas, ele usa um bicórneo. E o bicórneo tem um penacho, como eu acabei de dizer, branco com um galão dourado.

Há qualquer coisa nele e na apresentação dele que parece dizer o seguinte: “Eu sou a legitimidade! O direito sou eu! E embora o Sacro Império esteja extinto, a liderança de direito, de história, de missão, essa liderança continua comigo”.

Tanto é que o pintor pintou os dois outros monarcas em função dele, deixando a ele uma muito discreta dianteira, mas… sobre as duas maiores potências da Europa continental. E, portanto, uma espécie de liderança da Europa, que ele de fato tinha. E isso era o fruto das boas batalhas de alguns generais dele, mas também, o fruto da política do Metternich.

De um lado e de outro os personagens são mais “napoleônicos”. Representam mais a força do que o direito. E enquanto as cores claras do imperador Francisco falam ainda do Ancien Régime, as cores dos uniformes dos outros falam mais de uma era de brutalidade que vem entrando. São os charmes do passado que resistem em morrer e se afirmam poderosos ainda mesmo diante das brutalidades do futuro que entram.

Realmente, a Áustria representava dentro do mundo germânico o pináculo da civilização. Aliás, diante de toda a Europa ela estava, com a França, na dianteira de tudo o que se chama civilização. A Rússia representava um futuro, mas um futuro nebuloso, que ia se formando por cima de uma multidão de gente, vivendo numa multidão de terras, com uma multidão de gelo, com uma multidão de riquezas, com uma multidão de incógnitas, dentro dos mistérios tenebrosos e meio mágicos da I.O. [igreja ortodoxa greco-cismática, n.d.c.]

E o rei da Prússia era o soldadão protestante, que representava a força bruta militar. E a esse título era um homem do fato consumado: “eu decidi, eu fiz, etc.”. Não era um homem que representasse o direito, como o imperador Francisco representava.

Os senhores estão vendo que tudo isso está simbolizado quase que involuntariamente, mas fazendo-se o “Ambientes e Costumes”, é a conclusão a que se chega.

* O cavalo branco era considerado a montaria ideal para um personagem lendário

Eu termino esse comentário chamando a atenção dos senhores para uma coisa muito significativa.

No Ancien Régime, e subindo  até a Idade Média, grande número de personagens lendários usavam cavalos brancos. O cavalo branco era considerado a montaria ideal para um personagem lendário, mítico, extraordinário. O Rei D. Sebastião, que os sebastianistas esperavam em Portugal que voltasse, o Rei D. Sebastião esperavam que voltasse cavalgando do mar para a terra. Cavalgando como? Na bruma, montado num cavalo branco!

Os senhores veem como foi bem adequado que representassem o cavalo branco. Mas notem a atitude até dos cavalos! Os cavalos dos dois têm qualquer coisa de revolucionário. Os dois reis tem um certo trabalho em domá-los. O cavalo do Imperador Francisco representa a fidelidade popular, tradicional.

Representa – eu já tenho contado várias vezes esse fato, que é um fato lindo – é o povo de Viena que, numa vez que ele voltou para Viena derrotado por Napoleão, e escangalhado, ofereceu a ele uma festa para consolá-lo! Esse é o cavalo branco!

Agora, não é um cavalo abobado, não é um cavalo sem vida, nem substância. Não é um cavalo para cretino. É um cavalo para rei legítimo! Em que o rei é pai do povo, e o povo é filho do rei!

[Projetam slide de quadro de Napoleão]

Eu tenho só um comentário: o veludo é de muito boa qualidade!

Nota: Para mais comentários a respeito de Napoleão, veja-se, por exemplo, o artigo “Vargas e Bonaparte“, no “Legionário” de 30 de outubro de 1938.

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